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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

“O Regresso”, a natureza selvagem, e o valor da vida humana



leonardo-dicaprio-o-regresso-cinema.jpgNão é desarrazoado imaginar que o sucesso do filme O Regresso faça com que os casacos de pele voltem a ser um item da moda — e, naturalmente, reacenda a controvérsia sobre isso.
Por todo o filme, a maioria dos homens veste casacos de pele.  É claro que não são itens adquiridos em lojas chiques, mas sim os despojos de animais mortos no Oeste genuinamente selvagem e desabitado dos EUA.  O ano é 1823, e os cenários são os estados de Wyoming e Dakota do Sul — gelados, inabitados, e insanamente perigosos tanto para o homem quanto para a natureza.
As condições físicas apresentadas no filme são inacreditáveis.  Embora filmes ainda não sejam capazes de fazer você sentir na pele a sensação do congelamento — felizmente, assisti ao filme dentro de uma sala de cinema aquecida, sentado em uma cadeira reclinante e de couro, bebendo vinho e comendo uma Caesar Salad —, a fotografia é impactante e chega muito perto de fazer você realmente se sentir congelando.
Quando o protagonista, que está literalmente morrendo de frio, consegue vestir a pele arrancada de um urso, abrindo nela um buraco para sua cabeça, o espectador consegue sentir o seu alívio.  Em outra cena, também prestes a morrer por causa do frio, ele arranca a cabeça do seu cavalo, retira todas as entranhas do animal, e passa a noite dentro da carcaça.  Várias noites.
A cena mais memorável do filme envolve uma luta de vida ou morte contra um urso.  Esse é um material digno de Oscar.  Os produtores do filme disseram que não queriam que o urso parecesse bravo ou malvado.  Eles apenas queriam que ele se comportasse como um urso se comportaria quando estivesse protegendo suas crias, um recurso que acaba por intensificar a dramaticidade da cena.
E como eles sabiam como é um ataque de urso?  Eles analisaram um apavorante vídeo em que um urso de verdade ataca um homem em um zoológico da Alemanha.  Todos os movimentos e ritmos do urso foram minuciosamente examinados.  A equipe do filme utilizou métodos de alta tecnologia para fazer com que a cena fosse a mais real possível.  E o resultado é de cair o queixo.  Os detalhes são cativantes — como o ar da respiração do urso congelando assim que ele sai de suas narinas.
O valor da pele
Na época em que filme é ambientado, vestir pele não é uma questão de luxo, mas sim de pura necessidade — pelo menos para os caçadores e comerciantes naquela terra perigosa.  É o que eles têm de vestir para permanecer vivos.  É também o seu meio de vida.  Com efeito, a pele (bem como o couro que vem junto com ela) tem mais valor do que a própria vida humana.  Ao longo da história, ela foi universalmente utilizada para fazer vestimentas e, à medida que o tempo foi passando, para satisfazer a crescente demanda por chapéus nas cidades e em grandes centros populacionais.  (Um motivo por que os chapéus caíram em desuso, mesmo nos países de clima frio: as pessoas passam a maior parte do tempo dentro de edifícios com aquecimento central).
Todo o propósito das perigosas expedições àquelas terras selvagens era o de conseguir o maior volume possível de pele de animais, levar de volta às bases, transportar para as cidades e vender.  Em um determinado momento do filme, um dos caçadores menciona que eles estão carregando uma fortuna em peles.  Com efeito, um estudo da história econômica do comércio de pele naqueles anos parece confirmar a autenticidade da afirmação.
O valor da vida
Ao longo do filme, várias pessoas morrem.  A morte é encarada com uma alarmante indiferença.  Os nativos que matam os caçadores de pele não têm nenhuma consideração pela vida deles.  E os próprios caçadores, ao perderem mais da metade dos homens em sua expedição, demonstram uma assustadora ausência de sentimentos.  Sua principal preocupação é apenas coletar as peles e ir embora o mais rapidamente possível do perigo.
Com efeito, o principal enfoque da trama — não é um spoiler; está tudo no trailer — envolve um homem (Leonardo DiCaprio) ferido mortalmente que é abandonado à própria sorte pelos colegas porque se tornou um fardo pesado demais para ser carregado em uma maca durante a expedição.  Incrivelmente, ele sobrevive e volta para se vingar.  Durante sua batalha pela sobrevivência, ele tem de se sustentar utilizando apenas os elementos da natureza selvagem, comendo búfalo cru, pegando peixes com as mãos, curando suas feridas com pólvora, e por aí vai.  (Veja aqui algumas destas cenas).
O que tudo isso significa?
Por causa de toda a fartura e abundância com a qual nos acostumamos, possibilitadas pelo capitalismo, histórias sobre privações em terras inóspitas e confrontos com a natureza selvagem são realmente intrigantes.  Filmes que nos levam a pensar sobre questões como sobrevivência, moralidade, economia e política tornam o entretenimento ainda mais completo.  Neste quesito, o filme é perfeito.
A primeira coisa que vem à mente é o movimento pelos direitos dos animais — mais particularmente, omovimento contra o uso de casacos de pele.  Em algumas cidades, as pessoas que ainda se arriscam a utilizar casacos de pele já se acostumaram a ser repreendidas verbalmente e até mesmo a serem atacadas com sangue falso jogado por ativistas ambientalistas.  Seja você contra ou a favor do uso de peles hoje, o fato é que houve uma época em que se opor a matar animais e utilizar sua pele era algo totalmente impensável.  Estando sujeito ao estado bruto da natureza, temos de fazer a única escolha possível: vida para os seres humanos e morte aos animais.
Filmes ambientados em terras inóspitas, porém em épocas mais recentes, como é o caso de O Regresso, são particularmente intrigantes porque não retratam exatamente uma selva em épocas primitivas e hobbesianas.  Os comerciantes e caçadores já tinham armas, facas e alimentos, todos os quais existiam porque já havia uma divisão do trabalho mais ampliada.  Tais pessoas eram completamente civilizadas em todos os sentidos que conhecemos.  A vida nas cidades já era uma realidade.  A humanidade já havia há muito superado seu estado primitivo.
No entanto, os homens que faziam aquelas expedições imediatamente se descobriam remetidos de volta às condições mais brutais da natureza.  Eles enfrentavam o risco da extinção.  As opções eram matar ou morrer.
As cenas na natureza crua e bruta são incrivelmente belas, mas também profundamente perigosas.  Uma tempestade mais forte podia aniquilar todos.  Um ataque de urso era o fim da expedição.  Até mesmo pequenos ferimentos podiam se tornar letais.  A fome e o risco de morte por inanição eram uma constante. 
O mais interessante é que, se você realmente parar para ouvir a conversa dos ambientalistas modernos, terá a impressão de que a natureza, se deixada em paz, não apenas é algo extremamente belo como também incrivelmente caridoso, nos provendo automaticamente com todas as nossas necessidades.  A realidade, no entanto, é totalmente oposta.  A natureza tem de ser constantemente domada e repreendida para que possamos sobreviver.  Poucos de nós poderíamos sobreviver na vasta imensidão selvagem e desconhecida de uma floresta por muito tempo.  A natureza não é amigável ao homem.  Nunca foi.  Por isso, ela deve continuamente domada.  A própria existência da humanidade depende da subjugação da natureza, a qual deve ser constantemente domesticada e adaptada aos nossos conformes.  Se algum dia isso não mais for feito, as selvas irão retomar as cidades.
Mesmo com Leonardo DiCaprio sendo um famoso ativista ambientalista, eu diria que este filme não é exatamente o melhor veículo de propaganda para o ativismo verde.
A questão mais complicada, no entanto, envolve o valor da vida dos outros seres humanos.  Como já mencionado, parecia ser muito baixo.  Por isso, não deixa de ser curioso que os ambientalistas se compadeçam pela pele arrancada dos animais, mas ignorem o fato de que mais da metade das forças expedicionárias era recorrentemente aniquilada em ataques perpetrados pelos nativos da região.  O que houve com os direitos humanos?  Onde está a consideração pela dignidade humana?  Parece que a pele dos animais tem mais direitos do que os humanos.
Quando os tempos são difíceis, a moralidade cede
Tudo isso nos faz pensar: como as condições econômicas afetam nosso sentido prático de moralidade?  Baseando-se no que testemunhamos em épocas de guerra e de pobreza extrema — o Grande Salto Para a Frentechinês é o exemplo mais premente —, conceitos como direitos humanos são os primeiros a ser abolidos tão logo as provisões materiais acabam.  Isso talvez signifique que a noção de direitos humanos foi uma das últimas a ser adotada na história da evolução social.
Afinal, antes de necessidades básicas como comida, vestuário e abrigo serem atendidas, seres humanos agindo de acordo com a mais alta moral da dignidade universal o fazem sob o risco da própria sobrevivência.  E se você não tem a segurança para agir moralmente, então é impossível que uma norma ética surja e se torne uma característica persistente e confiável.
Qual fenômeno ocorreu ao longo da evolução social que fez com que o valor da vida humana fosse mais apreciado?  Você pode dizer que foi a religião ou a filosofia.  Mas ainda assim, se a condições materiais não forem propícias para fazer com que as pessoas tenham bons motivos para valorizar seus semelhantes, como poderemos supor que as normais mentais farão o serviço?
Digamos que tenhamos um sistema em que cada um de nós precisa de terceiros para melhorar nossas próprias vidas.  Sem a sua produção agrícola, eu não consigo me alimentar.  E sem a minha criação de ovelhas, você não consegue se vestir.  Repentinamente, temos um interesse um no outro.  Eu passo a ver você como um investimento, e você passa a me ver da mesma maneira.  Sua vida se torna valiosa para mim; e a minha, para você.
Quanto mais as pessoas passam a integrar este sistema de especialização e divisão do trabalho, mais o valor da vida humana se torna uma característica inerente à própria sociedade.  O mesmo vale para a propriedade privada: quanto mais necessitamos que os direitos de propriedade de terceiros sejam respeitados para que possamos prosperar, mais estes terceiros estarão dispostos a respeitar a nossa propriedade.
Em O Regresso, os personagens não estão fazendo transações comerciais entre si. Eles fazem parte de um grupo expedicionário que irá interagir apenas temporariamente.  Fora isso, são apenas bocas a serem alimentadas.  À medida que a comida começa a escassear, essas bocas se tornam custos em vez de ativos.  A ética é um luxo que se torna um passivo.  Repentinamente, o líder da expedição é abandonado à própria sorte.  Seus companheiros simplesmente seguem em frente.
Jamais retornemos
Uma das piores características de uma economia rica e desenvolvida é o quão pouco valor as pessoas dão à incrível bonança que as cerca, a qual nos foi legada à custa de muito trabalho, genialidade e riscos incorridos pelas várias gerações que nos precederam.
E não se trata apenas de bens físicos.  Pense na questão moral: a maneira como veneramos os direitos humanos, a maneira como brincamos com a ideia de que a natureza é caridosa e benevolente, a maneira como desdenhamos os casacos de pele.  Tais preocupações são belíssimas e é realmente uma dádiva que possamos nos dar ao luxo de tê-las.  E só podemos nos dar a esse luxo por causa do complexo e intrincado sistema de divisão do trabalho, propriedade privada e transações comerciais que a humanidade conseguiu estabelecer ao longo dos séculos.
Qual frágil é esse arranjo?  Muito.  Ele pode desmoronar a qualquer momento.  Guerras, inanições, pandemias, pestilências — condições extremas que interferem em nossa capacidade de sermos valiosos para os outros e eles, para nós.
O Regresso é um lembrete assustador — e como precisamos deles! — de como nossa vida é boa.  Que vestir casacos de pele seja um ato hoje controverso e desdenhado por várias pessoas mostra o tanto que evoluímos materialmente.

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