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domingo, 15 de setembro de 2019

A Judaização do protestantismo

Coisa que muito chama a atenção atualmente é a progressiva “judaização” do protestantismo pentecostal. Como quase tudo nessa estranha religião, trata-se de um fenômeno importado de sua matriz cultural, o protestantismo pentecostal americano. Mas mesmo aqui — ou talvez até especialmente aqui — o fenômeno é facilmente perceptível. Do apoio incondicional à extrema-direita israelense ao uso e abuso de parafernália judaica (solidéus, xales de oração e mesmo a barba gigante que ora esconde as fauces de Edir Macedo, passando por candelabros de sete braços sobre o “altar”, o sopro de berrantes de chifre de cordeiro e o que mais vier) nos cultos, o protestantismo parece interessado em tornar-se uma versão facilitada do judaísmo rabínico para uso do gentio.
De onde vem este fenômeno? Por que a esta altura do campeonato o protestantismo pentecostal foi-se encontrar na sinagoga? A razão principal, creio eu, está na similar ausência do divino. O judaísmo antigo, o judaísmo do tempo do Cristo, tinha no Templo e em seus sacrifícios o seu centro. Em outras palavras, era-se judeu por levar animais para serem sacrificados no Templo, e levavam-se animais ao Templo por se ser judeu. O judaísmo era inseparável do Templo; tudo o mais da Lei de Moisés era perfeitamente discutível, se não na sua essência (guardar o sétimo dia, por exemplo) mas, pelo menos, no seu modo (o que significava então para cada agrupamento religioso judaico — fariseus, saduceus, essênios, etc. — guardar o sábado? O que se era obrigado a fazer, e o que se era proibido de fazer?).
Depois da Encarnação do Verbo e de Seu sacrifício salvífico, todavia, o Templo tornou-se desnecessário, e Deus permitiu que os romanos o destruíssem. Com isso, o judaísmo perdeu seu centro e foi obrigado a reinventar-se como religião, a dar-se outro centro que não aquele que o havia movido por séculos. Das várias reinvenções, as que tiveram mais sucesso foram a cristã — que trazia e traz em si a mensagem central de o Templo ser desnecessário por o sacrifício não-salvífico de animais ter sido substituído pelo sacrifício incruento de Nosso Senhor Jesus Cristo na liturgia dominical — e a farisaica, que levou à construção, ao longo dos séculos, do judaísmo rabínico. Assim como substituímos o Templo que não salva pela Missa que salva, no lugar do Templo, para os fariseus e seus descendentes espirituais, passou a estar a sinagoga.
É como se a igreja fosse destruída mas a sala de catequese não. O rabinato, que no passar dos séculos acabou também perdendo a sua “sucessão apostólica”, não havendo hoje mais rabinos que possam afirmar-se possuidores de um título (ainda que apenas) de professor objetivamente transmitido através das gerações, tomou o lugar do sacerdócio. O descendente de Aarão, na liturgia sinagogal, vê-se restrito a alguns poucos atos que reafirmem a sua dignidade sacerdotal, mormente a bênção. Não há muito mais que a memória, na verdade; trata-se de uma religião da memória, de uma religião que tem por mandamentos cumpríveis os rituais da igreja domiciliar e a reunião dos homens adultos para uma oração desprovida de valor salvífico; o sacrifício do Templo, por menos valor que tivesse, estava ainda anos-luz além do que hoje se tem na vida religiosa judaica, em termos de transcendentalidade.
Enquanto isso, na Igreja, persiste o sacerdócio segundo a ordem de Melquisedeque, com pleno valor salvífico e uma hierarquia completa, que pode tanto afirmar a veracidade de uma afirmação de Fé ou Moral quanto manter e ordenar toda uma hierarquia territorial que se expandiu na medida em que cresceu o mundo conhecido. Temos Bispos, temos padres, e, principalmente, temos a Real Presença de Deus Nosso Senhor no Seu Santíssimo Sacramento. Qualquer católico em qualquer lugar ou momento nestes quase dois mil anos sabe onde está Deus. Qualquer católico pode e deve colocar-se em oração e adoração diante do próprio Cristo, que não é um símbolo. Simbólico era, no judaísmo antigo, o Santos dos Santos do Templo, sempre completamente vazio. Seu simbolismo era o de um Deus além, de um Deus invisível e impalpável, mas contudo presente ali.
A cortina do Santo dos Santos, contudo, com mais de 30cm de espessura, rasgou-se de alto abaixo quando do sacrifício do Deus feito homem, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. E este mesmo sacrifício continua presente de forma incruenta sobre nossos altares. Na sinagoga, contudo, o sacrifício — qualquer sacrifício — está ausente. Não há mais sequer a lembrança do Santo dos Santos, sobre o qual está hoje provavelmente uma mesquita muçulmana. O mesmo que ocorre na sinagoga, contudo, a mesma ausência, é o que salta aos olhos no protestantismo pentecostal, filho bastardo da neo-sinagoga de Calvino.
Enquanto nós continuamos tendo a Real Presença de Nosso Senhor entre nós, os protestantes não têm nada: nem a Igreja — Seu Corpo Místico, como nos ensina São Paulo — substituída por miríades de agrupamentos a modo sinagogal, e plenamente humanos, nem o Santo Sacrifício da Missa, nem o sacrário em que Deus repousa, oculto mas realmente presente. O resultado é o que Harold Bloom aponta como uma fixação no curto período de tempo em que o Ressuscitado estava na terra, andando entre os discípulos, mas sem que houvesse ainda Sua Igreja ou mesmo Sua Ascensão. Paradoxalmente, o protestantismo pentecostal coloca-se de fato numa simulação da Igreja pré-pentecostal, da Igreja em que a Presença do Senhor operava-se de modo miraculoso, mas não costumeiro. Eles não têm, não aceitam ter, a Igreja em toda a sua glória. Não têm, nem aceitam ter, a unidade doutrinal, sacramental e hierárquica que advém justamente de Pentecostes. Eles choram a Ascensão, que percebem como abandono por parte de Deus. Após a Ascensão, na visão deles, não haveria mais o Cristo entre nós. Eles não O veem, e por não O verem tornam-se incapazes de amá-l’O.
O que eles têm, na prática, são grupos de pessoas que se reúnem para exercitar uma mera oralidade: leitura da bíblia, sermões, cantorias… Tudo ali é a mera fala humana, que toma o papel central que no cristianismo pertence de direito não à fala humana, mas ao Verbo divino. Sem o Verbo realmente presente, sobra um vazio tremendo; fala-se muito d’Ele, mas Ele não está ali. É como uma festa cujo convidado especial, cujo homenageado, está ausente. Não há Jesus, por mais que se olhe em todas as direções.
E é isso que leva, por um lado, ao profundo imanentismo que caracteriza essas denominações religiosas — culto da prosperidade em tal dia da semana, culto da cura em tal outro, etc. — e, por outro, à sacralização do que não é sagrado, numa espécie de imanentização do escatológico que se opera principalmente pelo culto à Israel segundo à carne, ao povo judeu igualmente afastado de seu Templo, igualmente vendo-se dia após dia em reunião, a cantar “no ano que vem em Jerusalém”, mas sem ter absolutamente nada que vá além daquilo, do meramente imanente. É neste horizonte imanentista que a “ressurreição” de um Israel imanente, geopolítico e completamente carnal, torna-se motivo de esperanças escatológicas.
Para o povo judeu — Israel segundo a carne — o ressurgimento de um Estado de Israel é indubitavelmente fonte de esperanças apocalípticas. Esperam eles que do Estado se passe ao principal: a retomada dos sacrifícios de animais num Templo reconstruído. Ora, sabemos hoje que se foi pela vontade de Deus que o Templo fosse destruído, não há motivo para que ele seja reconstruído. Ao contrário, até: seria a abominação da desolação de que nos fala o profeta. Mas o protestantismo pentecostal, de tão afastado e tão perdido em relação ao Mistério sacral do Cristo, mesmo a retomada dos sacrifícios da Antiga Aliança parece boa coisa.
A identificação com Israel que havia entre os antepassados doutrinais do protestantismo pentecostal — os puritanos, que se percebiam como a verdadeira Israel e identificavam suas perseguições nas mãos dos episcopais ingleses com o exílio egípcio do povo judeu, relendo assim sua migração para os futuros Estados Unidos como uma libertação mosaica — foi substituída no pentecostalismo moderno por outra teoria, tão delirante quanto, segundo a qual haveria várias “dispensações” da graça divina, com a religião mosaica coexistindo com a cristã. O papel principal do judaísmo nesta teologia de araque, contudo, seria o de reocupação da terra que foi do povo de Israel antigo, que então entraria numa guerra com os vizinhos islâmicos, guerra essa identificada com a guerra de Gog e Magog, após a qual viria a “dispensação” final, com o retorno glorioso de Nosso Senhor e a conversão dos judeus.
Estes, evidentemente, não acham muito agradável esta parte da suposta profecia que guia os passos do pentecostalismo. Mas enquanto isso não ocorre, pensam, é bom ter como aliados uma força política que, nos EUA, compõe enorme parcela do eleitorado do partido mais à direita, o Republicano. No Brasil, contudo, com a parcela “evangélica” — leia-se protestante pentecostal à moda americana — do eleitorado tendo subido ao poder com Bolsonaro, corremos o sério risco de termos uma política exterior que simplesmente macaqueie a da direita americana. A mudança da embaixada do Brasil junto a Israel para Jerusalém, a sede efetiva do governo, não é por este eleitorado percebida como a simples questão de praticidade e bom senso que é, sim como uma espécie de reconhecimento por parte do governo brasileiro de um papel escatológico que a teologia neopentecostal deseja atribuir a Israel e, claro, a Jerusalém. A negação da Jerusalém celeste, a cegueira à liturgia eterna que nela se desenrola, leva à escatologização da Jerusalém imanente.
É a ausência real do Cristo que conduz a este estado de coisas. Tudo ganha valor escatológico, do emprego que se procura à cura que não se obtém, do iogurte fabricado por outros “crentes” à expansão das franquias desta ou daquela seita; ao mesmo tempo, nega-se o valor religioso do próprio cristianismo, reduzido pela ausência do Cristo nas seitas a uma simples verborragia a modo sinagogal, sem sacrifício, abandonado pelo Messias quando de Sua Ascensão. A Ascensão torna-se momento em tudo semelhante à destruição do Templo judaico que a sucedeu: é o vazio, é a ausência que define o momento em que estamos, para eles, em que há já séculos que o Cristo está distante, tão distante quanto Deus Pai estava no judaísmo do Templo, com seu Santo dos Santos vazio e impoluto.
Daí a identificação profunda entre o protestantismo pentecostal e a sinagoga. O “Espírito Santo” que veneram não é o de Pentecostes, que organiza e une perfeitamente a Igreja. É, ao contrário, um espírito de fração, um espírito de divisão que leva ao surgimento de miríades de portinhas, de seitas sem passado e sem futuro, que se mantém única e exclusivamente por um presente permanente de oralidade e imanentização do escatológico. “Religião” passa a ser o nome do falar-de-deus. “Graça”, ou mesmo “milagre”, a melhora de condições materiais ou de saúde, obtida pelas “orações fortes” do pastor rico. “Culto” é a cantoria, e o Cristo ausente só é percebido na histeria coletiva, nas melhoras de condições imanentes ou mesmo no falatório supostamente inspirado por Seu Espírito. Nada ali apresenta Deus. Nada ali conduz a algo mais alto. Nada ali existe senão como marca da ausência, como lembrança de um momento pré-Ascensão que não se viveu. Na prática, as denominações pentecostais são sinagogas. Não é de se estranhar que tenham se encontrado de maneira tão completa na negação de Cristo por parte de Israel segundo a carne: sem a Sua Real Presença, que diferença, afinal, haveria entre um e outro?
“Não há mais judeu nem grego” em Cristo. E sem o Cristo, o que mais pode haver senão um retorno às condições do judaísmo do Segundo Templo, com sua hierarquia de judeus, prosélitos e gentio que segue a Lei mosaica? É esta a posição em que se colocam os protestantes pentecostais moderno. Eles se identificam não com os apóstolos, mas com os prosélitos e com o gentio que seguia a Lei mosaica sem dar o passo final da conversão. Israel segundo a carne, para eles, está ainda na frente, e elas meramente a seguem. Afinal, percebem-se abandonados pelo Cristo na Ascensão, e mais ainda fraturados por um Pentecostes que, ao invés de unir, espalha.
Daí os nomes vetero-testamentários que dão aos filhos, daí a parafernália judaica de seus cultos, daí o apoio incondicional deles ao Estado de Israel, daí os termos em hebraico com que salpicam sua “teologia”. Na ausência percebida do Cristo, o que lhes parece fazer mais sentido é unir-se a quem tem na Sua negação a base da religião. Seu sonho seria desfazer a Ascensão, amarrar o Cristo na terra e dar-Lhe um trono de ouro para que o escatológico pudesse ser completamente imanentizado. Como isso não ocorre, contentam-se, então, com uma falsa religião sinagogal em que Deus e Mammon se confundem e Israel segundo a carne toma o lugar da Israel do Espírito.
Carlos Ramalhete

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