Dirijo-me não aos políticos demagógicos de sempre, que, por predileção ideológica ou oportunismo fisiológico, agora tentam mais uma vez vender gato por lebre, mas aos cidadãos comuns, trabalhadores, muitos dos quais têm se deixado iludir e, é forçoso dizer, manipular, nos últimos dias, com uma proposta cujo teor e consequência não parecem vislumbrar de fato.
Primeiramente, não há nade de errado em pretender trabalhar menos horas e até menos dias por semana. Sou o primeiro a felicitar os que defendem que devemos sim ter uma vida fora do trabalho e que viver só para trabalhar é degradante. Buscar um bom equilíbrio entre vida e trabalho significa ganhar um valor por hora suficiente para garantir tranquilidade e tempo livre para as atividades de lazer, para o exercício físico e intelectual, bem como para os estudos e capacitação visando ao progresso profissional e financeiro. Aquiesço inclusive com os que dizem que a redução da jornada é uma tendência “natural” no mundo. Agora, aqui está a chave da questão: tendência natural, não artificial. Há uma diferença muito significativa entre um gradual aumento do equilíbrio entre vida pessoal e trabalho, com redução de horas trabalhadas, o que só pode ser viabilizado pelo aumento da produtividade nas modernas economias de mercado, e uma redução artificial, feita na canetada.
Os defensores da proposta de Erika Hilton têm se mobilizado nas redes sociais defendendo o fim da jornada 6X1. Ocorre que, ou não leram o projeto, ou estão simplesmente apelando ao sentimentalismo alheio, insistindo em que todos aqueles que se opõem ao projeto são pessoas sem coração. “Imagine alguém ser contra as pessoas poderem descansar 2 dias por semana”. Meus caros, antes de ir panfletar, seja nas ruas ou nas redes sociais, de partir para o ataque, desperdiçando seu precioso tempo livre brigando, poderiam começar por ler o que estão defendendo.
A proposta da deputada Erika Hilton não é sobre a jornada 6X1, ainda que ela use demagogicamente esse apelo. A única referência a isso está na justificativa, não na PEC em si. O que se propõe é o estabelecimento de uma jornada 4X3, sem mais. Dizer que o projeto simplesmente dá um dia a mais de descanso é puro desconhecimento. Embora o texto não seja claro sobre a questão, a justificativa é, bem como tem sido a demanda dos que se mobilizaram em apoio ao projeto, que tal redução da carga horária de trabalho não viria acompanhada de uma proporcional redução salarial.
Se lerem o projeto, e estiverem minimamente familiarizados com a matemática básica, rapidamente lhes saltará aos olhos um erro crasso e imperdoável. A PEC estabelece “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana (…)” Ora, se o limite de horas diárias não pode exceder oito horas, e a jornada máxima permitida passará a ser de quatro dias por semana, então temos que a carga horária total semanal será de trinta e duas horas e não trinta e seis. A nobre deputada pretende fazer uma alteração tão brusca e profunda das relações de trabalho no Brasil, com inelutável impacto econômico para todos (não apenas os celetistas), e sequer é capaz de fazer uma conta básica? E, antes que apareça alguém me chamando de “capacitista”, lembro que todos temos à nossa disposição calculadoras em nossos celulares e computadores. Além do mais, para que servem os assessores parlamentares? Da última vez em que consultei a tabuada, quatro vezes oito eram trinta e dois. Mas sei lá, em tempos como estes, talvez o trinta e dois tenha passado a se identificar como trinta e seis.
Como a deputada já conseguiu reunir o número de assinaturas necessárias para dar seguimento ao projeto, tal contradição numérica terá que ser enfrentada. Se mantida a carga horária máxima de trinta e seis horas semanais com quatro dias de trabalho, então o limite de horas diário terá que passar de oito para nove horas. Se se insistir em manter o limite diário de oito horas, mas com carga semanal de trinta e seis, então será necessário estabelecer uma jornada de 5×2 ao invés de 4×3, nem que com um limite de quatro horas no quinto dia de trabalho para completar a carga máxima semanal. Se se insiste em manter a jornada de 4×3 (coração do projeto) e o limite de oito horas diárias, então não tem jeito: a carga horária máxima permitida por semana teria que ser de trinta e dois ao invés de trinta e seis, com consequências ainda mais salientes.
O maior problema do projeto é a possibilidade de que a redução da jornada de trabalho pretenda manter os salários nominalmente inalterados. É de se pensar que as consequências disso seriam lógicas para qualquer um, mas recordemos que estamos tratando com quem assassina a matemática básica. Considerando a possibilidade de uma carga horária de 36 horas semanais, teríamos uma redução na canetada de 8 horas em relação ao limite de 44 horas que temos hoje. Isso representaria uma redução de 18% da força de trabalho em uma única tacada. Se o limite for de 32 horas, então a redução seria de 27%.
Imaginemos alguém que hoje ganhe um salário mínimo trabalhando 44 horas semanais. Sendo o salário mínimo atual de R$ 1412, temos um valor por hora de R$6,42. Se sua carga horária for reduzida para 36 horas, mas ele mantiver nominalmente o mesmo salário, então ele passaria a ganhar R$7,84 por hora, o que equivaleria a um reajuste salarial de 22%. Já para uma carga de 32 horas, seu ganho por hora passaria a ser de R$8,82 e o reajuste salarial seria de 37%. Se você vê nisso uma razão a mais para defender o projeto, pensando no quão seria maravilhoso se todos (os celetistas, ao menos) passassem a trabalhar em uma jornada de 4×3, sem redução salarial, com um reajuste de até 37% na hora trabalhada e, o melhor, mantendo seus empregos, peço desculpas de antemão pela grosseria, mas você precisa amadurecer.
Ora, a redução da jornada com manutenção dos salários aumentaria os custos das empresas, e é inevitável que ao menos parte desses custos sejam incorporados aos preços. A verdade é que, ao contrário da crença popular, não necessariamente as empresas conseguiriam repassar todo o aumento de custos aos preços, já que a demanda de seus produtos e serviços é afetada, nem sempre de forma proporcional, e temos que muitos seriam demitidos. Não obstante, os que perderiam seus empregos teriam ainda mais dificuldades para encontrar outra ocupação no mercado formal, o que levaria a um aumento da informalidade. Basta que pensemos que 95% dos CNPJS no Brasil são pequenos negócios, o que inclui microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte, para vislumbrar como um aumento tão significativo dos custos seria impactante para a geração de emprego. Por fim, convém pensar na substituição do trabalho humano por máquinas e inteligência artificial. Muitos podem argumentar que isso já está acontecendo. E está mesmo: de forma paulatina, muitas funções estão sendo substituídas pela automação e pela IA, em um processo de destruição criativa natural. O que é irônico é que, justamente no momento em que tantos trabalhadores estão ansiosos com essas mudanças, muitos decidam apoiar uma PEC que ajudaria a acelerar o processo. Se, para fazer a substituição de uma determinada função, antes desempenhada por uma pessoa, por uma máquina, ou pela IA, o empresário faz um cálculo econômico em que considera o custo de cada um, um aumento artificial do custo do trabalho humano, por uma canetada estatal, só poderia concorrer para tornar a alternativa não humana mais atrativa.
Neste momento, não é preciso ir além, o que seria inverter o ônus da prova. A própria deputada, proponente da proposta, admite que não dispõe de estudo econômico algum para medir seus impactos. Argumenta que quis fazer uma “provocação”. Ora, isso chega a ser maldoso, para não dizer leviano. O que estão fazendo é explorar a ingenuidade de uma parcela significativa da população.
Os defensores da coisa certamente responderão que o aumento da produtividade e do consumo compensariam a redução da jornada com manutenção dos salários. A pergunta é: estão dispostos a colocar a coisa em prática para “testar”, certos de que não haverá retorno depois do fracasso certo e das irrenunciáveis consequências? O trabalhador não é cobaia para ser usado dessa forma, para ser aliciado com esse tipo de narrativa, sedutora, mas enganosa. Pois o ônus da prova está com eles. Que demonstrem, por qual passe de mágica, por meio de qual alquimia, que um país cuja produtividade cresce módicos 0,1% ao ano, e que está basicamente estagnada desde os anos 80, será capaz de comportar uma redução de jornada sem redução proporcional de salários.
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