quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Necromancia Jurídica: uma Constituição morta muito louca

 


O observador mais atento dos tribunais brasileiros terá percebido que um espírito muito diferente se encarnou nos juízes de nossa época. Tornou-se possível extrair qualquer verdade da leitura de nossa Constituição: da proibição da castração de cachorros à criação do crime de transfobia, passando por outras tantas exóticas divinações.

A mistificação do constitucionalismo seria cômica, se não fosse trágica e estivesse rasgando o tecido social brasileiro, destruindo tudo que nosso povo considera importante e perpetuando uma crise constitucional.

Nossa tese é que vivemos uma revolução disfarçada onde o ativismo judicial transformou-se num regime, no qual as decisões judiciais em geral e a interpretação constitucional em particular são o verdadeiro e único poder.

E que isto só se tornou possível porque a Constituição de 88 na verdade morreu, mas seu cadáver anda sendo usado para emitir cheques em nome do povo brasileiro, da democracia e do estado democrático de direito, tal qual Tio Paulo e seu empréstimo post-mortem no Bradesco.

Constituições não têm certidão de óbito, então demonstrar a morte das ideias que lhes davam vida e sustentação é o mais próximo que podemos chegar de uma. E a história da concepção, nascimento e falecimento desse fantástico documento começa muitos anos atrás, num Brasil que usou o direito penal para reprimir a dissidência política durante os anos 60/70/80.

Não que isso seja exclusividade brasileira, a agitação revolucionária sempre foi criminalizada e gerou prisões. Basta saber onde Stalin conheceu Lênin. A história é sempre a mesma, o regime usa a força contra aqueles que querem à força derrubá-lo, e o Direito Penal organiza e justifica seu uso pelo Estado.

A persecução criminal deixa traumas, e, quando o grupo dissidente chega ao poder, trata de tentar garantir que não será perseguido novamente. Poderíamos estar falando (e falaremos) do Brasil, mas o melhor exemplo disso é a constituição americana.

Todos conseguem imaginar que, aos olhos da Coroa Britânica os heróis da independência americana eram subversivos e revolucionários. Os quais, além de uma guerra de independência, tiveram de travar batalhas no campo do direito penal. O que muitos não sabem é que as garantias penais do Bill of Rights têm o intuito de proteger a dissidência política, não o criminoso comum. E o fazem com veemência, seja através do direito ao silêncio, da livre expressão ou da garantia à propriedade de armas.

Apesar de fascinante, a história da constituição americana só nos é relevante na medida em que descreve o sentimento do constituinte de 88. Ao contrário de sua irmã, a carta brasileira fez muito mais que tentar prevenir os erros do passado, e talvez por isso tenha falhado.

Perseguidos que foram, os constituintes de 88 criaram um sistema de garantias penais demasiadamente forte. Tão robusto que levou a justiça criminal brasileira à paralisia. Durante 25 anos foi impossível conduzir um processo penal de importância no Brasil, sem que em algum momento ele fosse anulado por desrespeitar uma das diversas garantias constitucionais inscritas no texto de 88 (ou criadas pela jurisprudência do Supremo).

Ironicamente, foi a publicação do acórdão do Caso Mensalão pelo próprio STF que deu fim a esse capítulo. Uma sentença catártica condenando 25 membros do mais alto escalão político, escancarando a corrupção do sistema e a falsidade das garantias penais contra suposta persecução política. De quebra fez desmoronar a base moral e ideológica que sustentava a constituição.

Exatos dois meses se passaram até que o povo emitiu e carimbou a certidão de óbito do regime. O local foi o teto do Congresso Nacional, a data o dia 17 de junho de 2013 e a causa mortis falência múltipla dos órgãos. Foi também esse o início da longa batalha do establishment político contra a realidade, que se estende até os dias de hoje.

Onze anos depois, muitos atores têm exercido com louvor seu papel destrutivo nesse ciclo da vida nacional, mas a necromancia constitucional implementada pelo Supremo Tribunal Federal merece uma crônica própria. 

Cada brasileiro tem uma decisão absurda do STF favorita. Para os mais antenados às notícias do dia, o bloqueio do X chama a atenção. Para os amantes do processo penal, a polícia secreta criada pelos inquéritos de Alexandre de Moraes são o auge. Há quem diga que a criação de tipos penais por analogia são o maior absurdo jurídico da história do direito penal material. São tantas as possibilidades! Temos também a relativização da imunidade no discurso parlamentar, a instalação de UTIs em aldeias indígenas e a proibição de operações policiais em favelas. É difícil escolher...

Mas não precisamos concordar sobre o mais bonito gol de Pelé para saber que ele foi um grande jogador. Nem precisamos determinar qual a mais arbitrária das decisões supremas para saber que o tribunal tomou para si poderes que não são seus. E podemos ainda estar de acordo que a pragmática classe jurídica muito pouco fez além de submissamente adaptar-se às novas regras do jogo; ainda que agora joguemos futebol com regras de handebol.

A maior parte dela se prostrou diante da magnitude do problema, e alguns foram além, entrando numa espécie de Campeonato Brasileiro de Adulação Jurídica, esporte no qual advogados competem para ver quem mais lisonjeia, em troca de e acesso e ascenso, um Supremo Ministro.

Talvez eu tenha entendido mal, e isso tudo seja uma astuta forma de combinar o personalismo brasileiro com os clamores por segurança jurídica. Temos hoje total certeza de que ao acessar o Supremo com a causa e causídico certo, tudo é possível. Desde a já tradicional anulação de sentenças criminais, até a criação das mais heterodoxas e detalhadas políticas públicas.

Mas toda boa festa chega ao fim. Se tem sido a suprema necromancia que preservou o cadáver de nossa constituição, será o odor dessa putrefação que levará o regime ao descrédito. A cada tentativa de substituir-se à constituição, a juristocracia brasileira evidencia sua própria falência. Enquanto isso, no mundo real, longe de Brasília, para cada Bolsonaro inelegível surgem dez Pablos Marçais.

Só nos resta torcer para que o necrochorume do cadáver não polua o país inteiro, vocalizar o absurdo em que vivemos e repetir as palavras do coveiro do regime, Eduardo Cunha: que Deus tenha misericórdia dessa nação.

Esmagando a ilusão de democracia

 Nestes tempos politicamente turbulentos, a "ilusão de democracia está desaparecendo em todo o mundo", como um especialista escreveu recentemente. Há uma sensação crescente no Ocidente de que a "democracia" não está funcionando bem, mas ainda não há um reconhecimento completo e claro desse fato. 

O "ideal" ou "ilusão" da democracia vem de equívocos generalizados sobre esse sistema político, apesar das claras dúvidas dos mais ilustres pensadores políticos do passado. Os equívocos mais importantes sobre a democracia são que os representantes eleitos são geralmente leais e desinteressados, e que o eleitorado é geralmente informado e racional em relação à política.

David Hume escreveu em seus famosos Ensaios (1777) que a democracia não pode ser "representativa" porque todas as sociedades são "governadas por poucos". O sociólogo Robert Michels então definiu, em seu trabalho inovador sobre partidos políticos (1911), o que ele chamou de "lei de ferro da oligarquia", mostrando metodicamente que todas as organizações maduras, sem exceção, tornam-se oligárquicas (ou seja, governadas por minorias).

Para os primeiros movimentos democráticos do século XIX, a democracia representativa geralmente não era percebida como verdadeiramente democrática; o modelo ateniense era o ideal. Como observou Robert Michels, foi somente quando as impossibilidades práticas da democracia direta em larga escala se tornaram evidentes que o conceito de representação política ganhou legitimidade. Com o tempo, esse conceito se tornou sinônimo de "democracia".

Montesquieu considerou em O Espírito das Leis (1739) que a principal justificativa para o sistema representativo não é apenas que a pessoa média não tem tempo ou interesse para se envolver na vida política, mas que é incompetente para fazê-lo. Tocqueville alertou em A Democracia na América (1835) que uma das ameaças potenciais à democracia é que as pessoas podem ficar tão absorvidas pela busca de oportunidades econômicas que perdem o interesse pela política.

Na verdade, a maioria não tem nem o interesse nem a motivação para se envolver profundamente na política. Os eleitores entendem implicitamente que seu voto é apenas uma pequena gota em um oceano de votos e, por si só, não fará diferença no resultado da eleição. Também tem sido argumentado por alguns que não apenas os eleitores não têm interesse e motivação, mas também não têm tempo e capacidade de pensar racionalmente sobre política, como o teórico político James Burnham resumiu em seu trabalho essencial, Os Maquiavélicos (1943):

A incapacidade das massas de funcionar cientificamente na política repousa principalmente nos seguintes fatores: o enorme tamanho do grupo de massas, o que o torna muito desajeitado para o uso de técnicas científicas; a ignorância, por parte das massas, dos métodos de administração e governo; a necessidade, para as massas, de gastar a maior parte de suas energias na mera geração de um sustento, o  que deixa pouca energia ou tempo para adquirir mais conhecimento sobre política ou realizar tarefas políticas práticas; a falta, na maioria das pessoas, de um grau suficiente daquelas qualidades psicológicas - ambição, crueldade e assim por diante - que são pré-requisitos para a vida política ativa.

Embora esses insights sobre representação política sejam conhecidos há muito tempo, eles foram suprimidos para manter a ilusão do governo da maioria. "Democracia" tem uma conotação tão positiva no sistema de valores ocidental que é compreensivelmente difícil para a maioria das pessoas aceitar que elas não "governam" em nenhum sentido significativo. Essa realidade é ainda mais difícil de entender porque algumas políticas da minoria dominante consideram, e até devem considerar, a opinião pública majoritária até certo ponto. Se pressionada, a maioria das pessoas admitiria que, embora tenham eleito "representantes", na verdade não têm voz real sobre várias áreas (por exemplo, política externa, monetária e comercial), mesmo que essas áreas tenham um grande impacto em suas vidas.

 

A instabilidade inerente a todos os sistemas políticos

Embora a ilusão de democracia esteja desaparecendo lentamente no Ocidente, não é tanto por causa da percepção das verdades apresentadas acima. Em vez disso, é porque a democracia representativa, como todos os sistemas políticos, é inerentemente instável. Há muito se sabe que as condições mudam constantemente, parafraseando Heráclito, mas não é amplamente compreendido que os sistemas políticos são inadequados para essa realidade básica. Embora a democracia às vezes possa parecer funcionar bem, as intermináveis mudanças econômicas, sociais, demográficas e técnicas na sociedade tornam essas impressões de curta duração.

Independentemente do sistema político, o equilíbrio de poder em qualquer momento entre o Estado e a sociedade, e entre a minoria dominante e a maioria governada, é constantemente perturbado por tais condições de mudança. O aumento aparentemente inexorável de intervencionismo estatal tem um impacto negativo na criação de riqueza e na propriedade privada, forçando a socialização, e levando a um aumento das tensões políticas. Quando o Estado se torna mais burocrático, ele não consegue acompanhar uma sociedade em mudança e, assim, desestabiliza o equilíbrio de poder. Além disso, as tensões políticas também surgem se a minoria dominante empurrar uma agenda política que desconsidera ou mesmo antagoniza a maioria.

A democracia, em particular, está sujeita a constantes oscilações de tensões políticas devido à sua inerente falta de justiça: o lado perdedor de uma eleição (mais da metade em sistemas de pluralidade) não é representado. Como Gustave de Molinari escreveu, a democracia "insiste que as decisões da maioria devem se tornar lei, e que a minoria é obrigada a se submeter a ela, mesmo que seja contrária às suas convicções mais arraigadas e prejudique seus interesses mais preciosos". Fenômenos de votação como a Lei de Duverger e o Paradoxo de Arrow tendem a suavizar a descrição austera de Molinari, mas, ao distorcer os resultados das eleições, dificilmente os tornam mais representativos ou mais justos.

Quando o tamanho e o poder do Estado são limitados (ou seja, o intervencionismo estatista na sociedade é fraco), o histórico do estado como defensor dos direitos de propriedade seria naturalmente considerado mais importante do que se a maioria está ou não representada democraticamente. Por outro lado, quando o poder do Estado é extenso (ou seja, o Estado é fortemente intervencionista), seja em nível nacional ou supranacional, a maioria certamente tem grandes expectativas em relação à democracia, uma vez que a direção da sociedade depende, grotescamente, das decisões de seus poderes executivo e legislativo.

 

Uma redução necessária do poder do Estado

É possível, então, concluir que uma limitação do poder do Estado é necessária para reduzir as tensões políticas na sociedade e introduzir a tão necessária estabilidade, independentemente de o sistema político ser ou não considerado "democrático". Isso requer uma descentralização da tomada de decisões e uma redução do papel do Estado, fortalecendo o livre mercado e os direitos individuais. O resultado seria uma sociedade mais livre, capaz de se adaptar de forma mais natural e harmoniosa às mudanças nas condições. Assim, o que é necessário é "mais liberdade" em vez de "mais democracia".

Infelizmente, a ilusão da democracia levou as maiorias do Ocidente a confundirem democracia com liberdade. Este é um erro significativo porque a democracia não é garantia de liberdade, mesmo que o governo da maioria fosse possível. Pelo contrário, quando foram feitas concessões à maioria, como gastos com bem-estar por meio de redistribuição fiscal, elas tiveram efeitos deletérios na sociedade e reduziram a liberdade econômica. Como disse Tocqueville: "Eu amo muito a liberdade e o respeito pelos direitos, mas não a democracia".

Considerando os equívocos sobre representação política que foram apresentados aqui, é hora de esmagar completamente a ilusão de democracia no Ocidente e substituir a democracia pela liberdade como o mais alto objetivo político a ser alcançado e protegido.