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quarta-feira, 2 de março de 2011

Goethe e Dostoievski

 

Ambos os autores tratam do tema do mal, mas de óticas muito distintas, mesmo opostas. Goethe é o poeta que cantou as representações simbólicas do mal em toda a sua amplitude e seu Fausto desenha um desfecho falsamente católico, que é a própria negação da ortodoxia católica.


Goethe é o cronista do nascimento do relativismo moral, dando-lhe uma base teológica que tem raiz no nominalismo. O tema da obra é mesmo cantar o microcosmo, o símbolo por excelência do mal, que perpassa a obra do princípio ao fim. É a estrela da manhã. Não ao acaso o poeta Paul Celan, que viveu os tormentos do século XX e era leitor atento de Goethe, iniciou seu poema Fuga da Morte com versos que não deixam dúvidas: "Leite negro da madrugada nós bebemo-lo ao anoitecer/Nós bebemo-lo ao meio-dia e de manhã nós/bebemo-lo à noite/Bebemos e bebemos"
O leite negro da madrugada é o símbolo máximo de Satã, que pairava nos campos de concentração, onde Celan foi confinado. No Fausto, o símbolo está no quarto gótico do intelectual entediado, no tempo em que ainda a arrogância moderna se escorava na lei da analogia gnóstica ("o que está em baixo é como o que está em cima") para cultuar o mal. Essa lei foi depois abandonada com a declaração da Morte de Deus, por Nietzsche, que inaugurará o século XX, de triste memória. Goethe leva tão longe seu canto ao símbolo satânico que fez Helena, personagem do Segundo Fausto, entrar em conúbio com o "Favorecido" e ter com ele um filho, Euforion, o filho da modernidade. Quem é Helena? É um símbolo que retrata Vênus, a máxima beleza. Helena é a mesma Vênus que é a estrela da manhã e a estrela vespertina, em outro lugar tão lindamente cantada por Samuel Beckett (Mal Visto, Mal Dito).
Dostoievski, especialmente no livro Os Irmãos Karamazov, discutiu também o mal, mas de uma perspectiva cristã. Aliás, dentro do cristianismo há duas correntes que entendem o mal de modo diverso: uma, na linha agostiniana, que teve em João Paulo II um seguidor, o vê como mera ausência do bem, numa visão que chamo intelectualista; outra, conforme os ensinamentos de Paulo VI, e dentro da tradição da letra dos Evangelhos, o vê como personificação ativa que age na história. A minha própria intuição é que o mal não apenas é personificado e age na história, como também aprende no processo histórico e, com isso, potencia sua própria maldade a cada momento. O tenebroso século XX é o reflexo desse aprendizado de milênios.
Se Goethe pressentiu a avassaladora presença do mal em seu tempo, dominando as Letras e a política, tendo aderido incondicionalmente ao signo dos tempos e inimizando-se com a Igreja Católica, o autor russo fez o caminho oposto: denunciou o mal, ergueu a tradição cristã como antídoto, mostrou que a bondade não pode ser derrotada pela maldade. Dostoievski foi um grande psicólogo. Ler ambos os autores em seqüência é uma dádiva pedagógica e uma oportunidade rara. Dostoievski é assim inimigo das novas religiões políticas nascidas com a modernidade e que têm servido para que o mal alcance sua plenitude de morte e destruição.
Quero sentar na primeira cadeira do curso do Professor Élcio Verçosa. Sei da sua competência. Será muito proveitoso.

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