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terça-feira, 5 de novembro de 2024

O STF em debate: O amigo do rei

 

Foto oficial dos ministros do STF, com a composição atual completa Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF

Após a apresentação do excelente trabalho Custo da insegurança jurídica, trazido pelo professor José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da FecomercioSP, durante evento realizado na sede da entidade, em conjunto com o Conselho Superior de Direito, que tenho a honra de presidir, fiz aos presentes algumas considerações, que compartilho com os amigos leitores.

A primeira foi sobre a filosofia do atual governo e a presente composição do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Temos, indiscutivelmente, por parte do governo do presidente Lula, uma certa resistência à economia de mercado e, ao mesmo tempo, uma crença, mais do que meramente ideológica, convicção conformada por visão pessoal e não pelas regras de mercado, de que a economia funciona melhor com as empresas estatais. Nestas ele tem colocado não especialistas, mas seus amigos, que pensam da mesma forma.

Vemos a campanha feita pelo governo no sentido de reestatização de determinadas empresas e, ao mesmo tempo, a forma como cargos de empresas estatais, principalmente a Petrobras, têm sido, novamente, loteados, como eram no passado. Sabemos perfeitamente que, quando a empresa não pertence aos donos, nem aos acionistas, ou a ninguém em particular, torna-se campo fértil para a corrupção.

Essa mentalidade também levou à indicação de ministros do Poder Judiciário. A realidade, hoje, no TST, é que nós temos 27 ministros, dos quais 14 estão nitidamente alinhados com a filosofia do presidente Lula, e 13 ministros favoráveis à economia de mercado, os quais atuaram para que a reforma trabalhista fosse concretizada, razão pela qual a resistência do TST a seguir a reforma obriga o Supremo Tribunal Federal (STF) a ser também uma espécie de revisor das decisões tomadas pelo TST.

Aquela observação com a qual o professor José Pastore iniciou, de que muitas vezes o juiz se coloca diante do problema entre decidir de acordo com a lei ou de acordo com o humanismo, é algo que tive a oportunidade de expor ao ministro Luís Roberto Barroso, em evento na FIESP. A função do Supremo e do Poder Judiciário é respeitar a lei, mesmo que ela não agrade.

Recordo-me de uma decisão do ministro José Néri da Silveira, em relação a um conflito de terras entre os estados do Acre e de Rondônia. Eu havia elaborado parecer favorável ao estado de Rondônia, e o relator, para decidir sobre aquele trecho de terra importante, que envolvia 30 mil habitantes, dos quais o Acre cuidava há muito tempo, transcreveu meu parecer em seu voto.

O ministro dizia o seguinte: “Eu gostaria de dar razão ao estado do Acre, ele sempre cuidou da polícia, etc., mas o que está no texto constitucional me obriga a decidir de acordo com a lei, não com a minha preferência”. Assim, ele garantiu as terras para Rondônia, em conformidade com o artigo 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Durante o evento na FIESP, o ministro Luís Roberto Barroso me disse mais ou menos o seguinte: “Professor, quando nos trazem um problema que o Congresso não solucionou, temos uma situação muito séria e precisamos resolvê-la. Às vezes, a solução não encontrada pelo Congresso obriga-nos a decidir como acharmos melhor”.

Apesar de nossa amizade, livros escritos em conjunto e respeito mútuo nos debates, expliquei ao ministro que a função de legislar é do Congresso e, se ele agir mal, caberá aos eleitores elegerem novos parlamentares, mas o papel do Poder Judiciário não é legislar. Por mais que uma decisão humanista possa parecer necessária, o juiz não pode decidir legislando.

Hoje, vemos o STF se auto-outorgar poderes, decidindo de forma diversa do Congresso, e, quando o Legislativo ou o Executivo não agem, o Supremo intervém, conforme a visão autoformada de seus ministros, o que, a meu ver, apesar da qualidade intelectual dos magistrados, não é o que dispõe a Carta da República.

Quem gosta de História, extremamente bem documentada no Antigo Testamento, percebe que o pior período de Israel foi quando governado por juízes. Se analisarmos aqueles quase três séculos, veremos o grito do povo e a sensação de que estavam sendo mal administrados, a ponto de irem ao profeta Samuel para pedir um rei. Eles queriam ser como outros países e não aguentavam mais os juízes. Apesar das considerações de Samuel de que os reis poderiam ser piores, os juízes foram afastados.

É que os juízes não têm contato com o povo. Na democracia, os eleitores escolhem seus representantes, enquanto os juízes, que passam por concursos, não têm essa relação direta com a população. Dou muito mais valor a um juiz de primeira instância, seja federal ou estadual, que passa por um concurso exaustivo, do que a magistrados que, por melhores que sejam, precisam fazer campanha de amizade e contar com excelente relacionamento com o presidente da República.

Existem aspectos poéticos, líricos e românticos na ideia do “notável saber jurídico”. Não é algo que se equilibra simplesmente com títulos de professor, doutor ou mestre, mas está muito além disso. A verdadeira relevância não é a titulação, mas ser “amigo do rei”. Um juiz de primeira instância sofreu muito para chegar lá, enquanto um ministro precisa apenas ter boas relações com o presidente.

Hoje, no Supremo Tribunal Federal, temos três ministros que vieram da magistratura e oito que não vieram. São profissionais competentes, mas amigos do presidente. Apesar de eu respeitar e admirar esses ministros, com alguns dos quais escrevi livros, essa mentalidade tomou conta do nosso Poder Judiciário, gerando a insegurança jurídica e as distorções que constatamos na excelente apresentação do professor José Pastore, que não serão facilmente reformadas.

Carl Schmitt, em seu livro Conceito do Político, dizia que as ciências e artes são conhecidas pelas oposições. Na moral, estudamos a oposição entre o bem e o mal; na estética, entre o belo e o feio; na economia, entre o útil e o inútil; e na política, entre o amigo e o inimigo. O que Schmitt disse sobre o conceito de política, é verdade.

No meu livreto Uma breve teoria do poder demonstro que aqueles que assumiram o poder, só podem ser dele afastados, porque não abrem mão do poder. É o caso do Maduro, atualmente.

Nas democracias, o eleitor tem esse poder, mas nas ditaduras, não. Quando um juiz assume o cargo, seja por concurso ou nomeação, ele sabe que permanecerá lá e no momento em que se auto-outorga poderes, é difícil removê-los.

O trabalho nas faculdades e escolas é crucial para que uma nova geração enfrente esse desafio. Aos 89 anos, essa luta não é mais minha, mas de vocês. Este é o grande drama do Brasil e a verdadeira batalha que enfrentamos. A essa altura, uma batalha que não será fácil. Há de termos, entretanto, uma democracia com harmonia e independência dos Poderes, cada um nos limites constitucionais que lhe foram concedidos.

Ives Gandra da Silva Martins

IDENTITARISMO

 

No livro Who Stole Feminism? How Women Have Betrayed Women, Christina Hoff Sommers distingue dois tipos de feminismo: o da primeira onda, chamado por ela de “feminismo da igualdade”, em livre tradução, e o da segunda onda, que ela chama de “feminismo de gênero”. Desde que o livro foi publicado pela primeira vez em 1994, também surgiu o que se chama de feminismo da terceira onda. O primeiro tipo de feminismo que Sommers identifica é calcado em valores liberais clássicos, é aquele que de fato colaborou para a extensão de importantes liberdades ao sexo feminino, sendo a base da igualdade legal que hoje indiscutivelmente existe entre homens e mulheres em países democráticos. O da segunda onda, ou feminismo de gênero, por sua vez, abandona o discurso de igualdade e investe em uma retórica radical e misândrica.

Para escrever o livro, Sommers realizou uma extensa pesquisa, chegando em diversos momentos a ir ao olho do furacão. Os relatos acerca dos tipos de devaneios identitários que ela faz são ainda mais assustadores quando pensamos que o livro foi escrito há mais de vinte e cinco anos, ao mesmo tempo em que nos ajudam a entender que toda a maluquice identitária que presenciamos hoje não é uma invenção contemporânea e sim um desdobramento de décadas de um tipo específico de militância.

Por se tratar de uma escritora americana, naturalmente o livro se foca mais nos movimentos desse país. Sommers relata os primórdios do movimento visando à extensão de direitos civis às mulheres nos EUA, como, por exemplo, uma convenção realizada em julho de 1848 visando debater a “condição social, civil e religiosa e dos direitos das mulheres”. A convenção votou e emitiu a chamada Declaração de Sentimentos, tendo Elizabeth Cady Stanton como uma das principais autoras e sendo assinada por 68 mulheres e 32 homens.

A referida declaração foi baseada na Declaração da Independência dos Estados Unidos. Nota-se aqui uma característica muito importante. Sabemos que a Declaração de Independência americana, bem como a Revolução Americana, foram fatores historicamente relevantes para o liberalismo. Sim, a declaração assinada em 1776 não promovia uma liberdade para todos, deixando de fora questões como a abolição da escravidão, que oficialmente só ocorreria quase um século depois, e a igualdade das mulheres. A despeito disso e levando em conta que é preciso contextualizar com a época, tratou-se de um avanço na seara das liberdades civis, fato reconhecido pelas signatárias e signatários da Declaração de Sentimentos. Não se visava, portanto, a reinventar a roda, não se tentava destruir o legado dos Pais Fundadores ou tratá-lo como uma chaga patriarcal; pelo contrário, reconhecia-se, por um lado, a importância desse legado, e por outro, clamava-se sua extensão a outras camadas da sociedade.

O contraste entre a Convenção de Seneca Falls e o que clamam grupos feministas radicais modernos é patente. Uso aqui a questão do feminismo como um gancho, mas a lógica pode ser aplicada a outros movimentos sociais. Historicamente são aquilo que chamamos de democracias liberais que melhor têm garantido coisas como liberdades e direitos civis. No entanto, os chamados identitários, braços mais radicais do progressismo, além de não reconhecer tal fato, se esforçam para destruir aquilo que melhor garante a liberdade de que gozam.

Em uma perspectiva histórica, é possível sim encontrar traços progressistas no liberalismo. Quando John Stuart Mill publica A Sujeição das Mulheres em 1869, defendendo coisas como o direito de as mulheres votarem e trabalharem, não há como não enxergar uma posição de vanguarda na obra. Porém, aqui há uma diferença crucial entre uma perspectiva histórica progressista do liberalismo e os identitários modernos. Prescrever uma igualdade entre homens e mulheres em meio à era vitoriana foi algo audacioso, mas uma audácia que nada tem a ver com as problematizações pós-modernas. Ora, quando tais bandeiras finalmente se transformam em realidade – sim, eu sei que isso não aconteceu da noite para o dia – e são contempladas com a justiça que merecem, o impulso seguinte é conservá-las, aperfeiçoando-as se necessário, mas longe de defender uma lógica de progresso perpétuo que pudesse vir a romper com a igualdade intencionada no princípio. É justamente o oposto do que querem os identitários.

Para o identitarismo não há herança, não há princípios, não há bases sociais a serem preservadas; tudo é obra do opressor e cabe ao oprimido ocupar o seu lugar histórico e destruir o que só existe para oprimir. Tudo estaria contaminado pelo patriarcado, pelo “racismo estrutural”, pela “homofobia estrutural”, como uma metástase em um paciente terminal, sem chance de sobrevida, sem esperanças. Eis o cerne do porquê de os identitários se colocarem como inimigos da democracia liberal e dos valores que a caracterizam: nela não enxergam legitimidade, por crerem ser obra do opressor, e por consequência cospem em tais valores, não reconhecendo as benesses que usufruem dia após dia.

Ora, não é que vivamos no paraíso e que todas as mazelas sociais, incluindo as diversas formas de preconceito, estejam extintas, longe disso; mas quem acredita que não estamos em melhor situação hoje e que essas formas de preconceito encontram a mesma penetração em nossas vidas cotidianas que tinham quando diferentes minorias eram, pela letra ou silêncio da lei, alijadas de equiparação com o resto da sociedade, está em negação da história.

Reconhecer o que foi conquistado e entender que nenhuma liberdade existe em um vácuo ou pode subsistir separada de tantas outras é o primeiro passo para que se possa corrigir qualquer mazela remanescente. Reconhecer tal progresso e herança significa conservar aquilo de fundamental que deve ser conservado e aperfeiçoar, imbuídos com os mesmos princípios e com a contemplação da liberdade, o que deve ser aperfeiçoado. No entanto, os identitários não valorizam tal herança, querem sim destruí-la; exemplo claro disso é o ataque que agora desferem contra estátuas nos EUA e na Europa. Quão contraditório pode ser um grupo que se denomina como antifascista vandalizar a estátua de Winston Churchill? De que forma defenestrar alguém como George Washington colaborará para o combate ao racismo? Nenhuma. Sim, o general e primeiro presidente americano era proprietário de escravos e a escravidão é uma instituição indefensável, mas será que é possível demonizar com uma ótica contemporânea alguém que possuía escravos no século XVIII e com isso apagar todo o mérito de sua biografia? Obviamente não.

Os que vandalizam estátuas e demonizam figuras históricas que colaboraram para a liberdade contemporânea são os mesmos que advogam a novilíngua identitária com seus impronunciáveis e ininteligíveis pronomes neutros; que, defendendo uma lógica de construção social, uma exacerbação irracional e anticientífica do conceito da tábula rasa, questionam a legitimidade de tudo, até mesmo do sexo biológico; que se queixam de pretensas apropriações culturais, paradoxalmente tentando reverter o intercâmbio cultural que moldou nações e que costumava ser ponto de honra para progressistas, entre outros exemplos de revisionismo.
Fosse todo esse devaneio meramente o produto de militantes, circunscritos a suas próprias bolhas de militância, e nos restaria a zombaria como recurso suficiente, mas fato é que tais devaneios estão encontrando cada vez mais penetração institucional. No momento em que trabalhava nesse artigo, por exemplo, me deparei com a notícia de que a Universidade de Edimburgo, na Escócia, decidiu, ainda que em caráter temporário, retirar o nome do filósofo escocês David Hume de uma de suas torres. A decisão foi motivada por uma petição de estudantes pelo fato de que David Hume, que viveu de 1711 a 1776, ter escrito textos considerados racistas.
Se seguirmos a lógica desses estudantes, que não veem problema em tentar defenestrar um dos maiores filósofos britânicos por coisas que escreveu no século XVIII, teríamos que começar a incendiar livros, quando não bibliotecas inteiras, no afã de apagar da história tudo aquilo que possa ferir sensibilidades modernas. Teríamos que não apenas apagar o registro de figuras ilustres e famosas, como Hume, mas a história em si. Sob a decisão da Universidade de Edimburgo, por exemplo, o historiador britânico Sir Tom Devine diz que “Pelo critério dessa decisão estúpida, toda a Escócia naquele período merecia condenação moral”.
Esse tipo de julgamento anacrônico é um sintoma do caráter reacionário do identitarismo. Por reacionarismo costumamos entender o desejo de resgatar valores devidamente superados. Os identitários fazem o movimento inverso, o que pode fazê-los parecer rivais do reacionarismo, o que é verdade apenas até o ponto em que tentam implantar o seu próprio reacionarismo. Ao invés de tentar inverter a roda da história, dão um passo além e tentam destrui-la de uma vez.
A revolução cultural que ambicionam tem um padrão próprio, pois eles não agem como se estivessem tentando fazer uma revolução. Agem como se ela já estivesse concluída e como se seus códigos morais fossem a lei vigente, questionada apenas por “reacionários” que por isso devem ser marginalizados. Isso fica muito claro quando presenciamos casos de “cancelamento”, que costumam ser nada mais do que a marginalização de alguém que ousou falar a “coisa errada”. A despeito do barulho dos identitários, os cancelamentos acabam demonstrando que sua revolução só está completa dentro de suas próprias bolhas, fato comprovado por só serem capazes de cancelar aqueles que empunham total ou parcialmente bandeiras progressistas e que aceitam se submeter aos tribunais das redes sociais. Ressalto: não basta ser progressista, é preciso também ser subalterno(a) – e há progressistas acordando para a loucura do identitarismo, mesmo tendo, muitas vezes, colaborado para alimentar a coisa.
Dizer que isso acontece em maior escala dentro das bolhas identitárias e que a sociedade, de uma forma geral, é avessa, ou ao menos indiferente, a isso, pode dar um certo alento, mas como o caso da Universidade de Edimburgo demonstra, o identitarismo tem encontrado penetração institucional e não só há razão para se preocupar, como também há para resistir.
Para que uma das universidades mais antigas da Escócia (fundada em 1583) aceitasse marginalizar Hume, bastou o murmúrio de alguns estudantes. Ora, é tão fácil assim dobrar instituições que, por sua natureza deveriam resguardar a história do pensamento e seus protagonistas? Possuem os militantes identitários tanto poder assim? Acredito que a resposta reside na covardia daqueles que têm o poder de dizer não para a loucura e dizem sim para agradar a patota politicamente correta, o que, como consequência, lhes dá poder. Mas por que dizem sim? Porque pensam ser a única resposta possível às palavrinhas mágicas: “me ofende”. Como a criança birrenta que percebe que diante da leniência dos pais sempre conseguirá o que quer, os identitários aprenderam que chorar – não raro literalmente – é o segredo para conseguir o que se quer. “Essa geração é muito sensível”, alguns dirão. Se os millenials e centennials são mais sensíveis do que gerações anteriores, eu deixo para a psicologia responder, mas mesmo que isso seja verdade, sou cético sobre o quanto dessa sensibilidade é real e o quanto é forjada.
Quando o militante percebe o poder de se dizer ofendido, invariavelmente passa a usá-lo como uma arma para subverter tudo aquilo que deseje que funcione à sua própria maneira. Aqui os identitários encontram um estímulo para simularem sensibilidades, para derramarem lágrimas de crocodilo. Por que isso? Porque aquelas figuras patéticas que se contorcem publicamente em exercícios retóricos de autodepreciação, pedindo desculpas por coisas como ser branco(a) ou hétero, ou tentando escapar de cancelamentos após terem fugido da cartilha, encontram como resposta não a aceitação do pedido de desculpas, mas ainda mais menosprezo. Não que quem se coloca de joelhos diante de autoritários não mereça as consequências, mas os que pisam ainda mais naqueles que, devotos a suas pautas, se colocam a seus pés, estão longe de ter empatia; têm é regozijo pela sensação de poder, exercendo-o com o sadismo comum aos bullies, que é exatamente o que são.
Colocar tudo na conta da sensibilidade é subestimar o inimigo, não enxergando que isso não passa de um exercício de poder, e um exercício que visa a alçar voos cada vez mais altos. Não é só contra o arbítrio estatal que o liberal deve se voltar, mas contra o de todos aqueles que se valem de táticas autoritárias e atacam as coisas mais fundamentais, em especial, a liberdade de expressão, mesmo porque o arbítrio estatal é aquilo a que visam em última instância. Alguém dúvida do que fariam se pudessem exercer o poder sem contraponto?
Os jovens – por vezes não tão jovens – idealistas, defensores das minorias, denunciadores dos “discursos de ódio”, igualitaristas, socialmente conscientes e moralmente superiores, destruiriam aquilo que chamamos de democracia liberal, relativizariam a liberdade de expressão a ponto de torná-la proibitiva, baniriam livros, músicas, filmes, lotariam prisões com supostos perpetradores de discursos de ódio, defenestrariam a ciência que trouxesse verdade incômodas, ao mesmo tempo em que patrocinariam toda sorte de bobagem acadêmica que promovesse a desconstrução da nova era e nos dividiriam em castas de identidade, sem pudor de defender a supremacia de umas sobre outras. Isso, é claro, é uma exacerbação, mas como exercício mental julgo totalmente válido imaginar como seria o exercício do poder daqueles que, com tanta veemência, querem moldar a sociedade ao seu bel-prazer.

De todos os traços citados, que acredito que caracterizariam o exercício do poder destes engenheiros sociais, aquele que acredito que é hoje o mais evidente e institucionalizado é a criação de castas de identidade. Uma das razões pelas quais sou contrário às chamadas ações afirmativas é que, primeiro, nunca confiei na promessa de que elas teriam uma duração temporária – políticos que tentarem mexer na coisa tendem a receber a pecha de racistas/machistas/homofóbicos/fascistas –  e, segundo, sempre soube que não parariam por aí, abarcando cada vez mais as assim chamadas minorias que, cedo ou tarde, aprenderiam a clamar o seu quinhão.

Um dos exemplos mais recentes disso, em termos de institucionalização, foi a recente decisão do TSE que estabeleceu um percentual obrigatório da divisão do fundo eleitoral para negros. O que o tribunal fez foi estender aos negros o mesmo tipo de alocação dos recursos que já havia sido estabelecida para as mulheres. Como era de se imaginar, não parou por aí e, tudo o mais constante, não irá parar. Parte-se do princípio que tais minorias são subrepresentadas e que, sendo um valor caro à coletividade aumentar a sua presença em diferentes espaços, tais tipos de políticas se justificam. Essa lógica já é problemática e com frequência baseada em interpretações estatísticas enviesadas quando estamos falando de universidades ou concursos públicos – como o uso dos pardos como curingas -, por exemplo, mas, quando entramos na seara eleitoral, estamos diante de algo extremamente antidemocrático, além de um convite a corrupção; se não há candidatos suficientes de um determinado grupo, interessados em concorrer, os partidos serão compelidos a, paradoxalmente, contratar laranjas para poder cumprir a lei.

Porém, o estabelecimento de cotas na divisão de verba eleitoral é apenas um objetivo intermediário, pois o objetivo-mor, como é fácil de se supor, é picotar o voto popular e estabelecer cotas dentro do parlamento. Exemplo claro disso é o Projeto de Lei nº 5250/2019, que tem Tabata Amaral (PDT-SP) como coautora. O projeto estabelece uma cota feminina no Senado: nos anos em que ocorresse renovação de dois terços da casa, metade das vagas seria reservada para mulheres.

Tabata e os proponentes de projetos como esse normalmente fazem comparações com outros países, alegando, por exemplo, que o Brasil estaria atrás de países como a Arábia Saudita, Iraque e Afeganistão, em termos de paridade de gênero no parlamento.  Tal comparação, se bem analisada, longe de nos causar espanto por uma suposta misoginia das instituições brasileiras – mulheres brasileiras estão legalmente em posição de igualdade para concorrer aos cargos que bem entenderem -, demonstram ainda mais a irrelevância e desvio de foco deste tipo de política. Alguém ousaria dizer que as mulheres brasileiras estão em pior situação do que as sauditas, que até 2017 não podiam dirigir? Estariam em pior situação do que as mulheres afegãs, muitas vezes condenadas ao anonimato e a não poderem colocar  seus nomes nos registros de nascimento dos próprios filhos? Viveriam as mulheres iraquianas, que podem ser legalmente punidas por seus maridos, em melhor situação do que as “pobres brasileiras”, que ocupam tão poucas cadeiras no parlamento?

Ao colocarmos tais fatos em tela, resta claro que esse tipo de abstração nada tem a ver com a real situação das mulheres, bem como a mera exposição de números pode ser enganosa, sobretudo quando delas se tentam desenhar políticas que podem afetar a própria democracia. Pior, tenta-se pintar o país como um lugar de intolerância e misoginia, o que, pura e simplesmente, não é verdade.

Novamente, uso o caso como um gancho, mas podemos extrapolar a lógica para clamores análogos. Se aceitarmos compor parte do parlamento por meio de cotas para mulheres, porque também não para negros? Mas os homossexuais também sofreram muita homofobia ao longo do tempo, então porque não uma reserva de vagas para eles também? Mas se os homossexuais sofrem com o preconceito, o que dizer então dos transexuais? E quanto aos índios, os verdadeiros povos nativos? Ora, mas não adianta considerar tudo isso e ignorar a desigualdade social, então porque não cotas de renda? Mas se vamos falar de desigualdade social, não podemos deixar a desigualdade regional de lado, então por que não alocar também as vagas priorizando os estados mais pobres? Estou certo de que o leitor já entendeu aonde quero chegar: na morte da democracia.

Um defensor de tais políticas pode alegar que estou exagerando, que a coisa nunca seria extrapolada a esse ponto. Ora, mas ao se reconhecer que tal extrapolação seria maléfica e, repito, a morte da democracia, reconhece-se que mesmo as doses menos cavalares não são boas a ponto de serem amplificadas. Se um Congresso composto majoritariamente à revelia do voto popular, visando a satisfazer abstrações de identitaristas malucos, não seria algo virtuoso, uma única vaga alocada dessa forma também não seria, sendo o nível de impacto na democracia a única variável. Não se trata de um remédio com alguns efeitos colaterais, mas com benefícios que os compensem; trata-se de veneno, pura e simplesmente.

Não tenho dúvidas de que o conjunto de devaneios identitários apresentados nessa série de artigos encontra proporcionalmente muito mais rejeição do que aceitação no seio da sociedade. Não falo aqui da sociedade como uma massa homogênea, mesmo porque não é necessária homogeneidade de pensamento para se rejeitar o identitarismo – para tal basta o bom-senso. Se isso é verdade, por que então temos a impressão de que cada vez mais o identitarismo ganha força e, como demonstrado, encontra penetração institucional? Justamente por seu caráter antidemocrático e por ter aprendido a galgar a rota do poder por cima dos escombros da covardia. Aliás, temos aqui um paradoxo da ótica de combate à sub-representação, preconizada por estes justiceiros sociais, ótica essa que tudo quer alocar com base na identidade, mas nada com base na recorrência de ideias e princípios. Trata-se de uma visão, antes de tudo, elitista da sociedade.

O identitarismo, como substituto pós-moderno da luta de classes, significa a luta de identidades, se preocupando mais com abstrações do que com os problemas do mundo real. O preto que mora na favela e não tem acesso a saneamento básico, muito provavelmente não está preocupado se a loja de móveis vai colocar criado mudo ou mesa de cabeceira no catálogo. Não, quem toma as dores e sequestra a representatividade é o militante bem alimentado de classe média.

Além do caráter antidemocrático e da covardia de alguns, também concorre para a ascensão do identitarismo o fato de que ele é lucrativo. O que mais explicaria a passividade com que muitos militantes, por vezes integrantes de certas minorias, aceitam o que em outros tempos poderiam ser consideradas migalhas de condescendência? Vimos recentemente o caso da professora americana que mentiu durante anos ser negra. Ora, o assombroso da história não é ela ter mentido, mas alguém ter acreditado. O incentivo dela para mentir foi o lucro, que pode vir de forma monetária, ou na forma de prestígio. O incentivo para a comunidade acadêmica fingir credulidade foi um misto de covardia e crença cega na validade da autoafirmação de identidade. Como alguém pode achar normal vislumbrar um futuro em que afirmar identidades pode ser mais ou menos lucrativo? Não é justamente para o oposto disso que deveríamos caminhar mais e mais?

O liberalismo não é só a defesa da liberdade, mas também da igualdade. Igualdade aqui, obviamente, nada tem a ver com igualdade material, no sentido marxista. Em uma democracia liberal as leis e normas são erigidas de forma cega, no sentido da impessoalidade. O bom legislador não enxerga cor, sexo, raça, orientação sexual, credo, não cria exceções ou distinções para grupos. O liberal, do mesmo modo, não enxerga identidades; enxerga, antes de tudo, indivíduos. Isso não quer dizer que não reconheça as identidades, apenas que não aceita a hierarquização da sociedade com base nelas. O liberalismo é, por princípio, incompatível com a visão segmentada da sociedade que defendem os identitaristas. Tudo aquilo de virtuoso, como a igualdade de sexos e a igualdade racial, para o que os identitaristas nada contribuíram e de que apenas foram tributários, toda a herança de igualdade, de impessoalidade, que não compreendem e tentam destruir, todo o arcabouço daquilo que chamamos de democracia liberal, que sempre foi um processo e não uma imposição, significam  tudo de meritório que já conquistamos na seara da igualdade e dos direitos, ao mesmo tempo em que apontam para o caminho no qual devemos nos manter e aperfeiçoar.

A melhor forma de combatermos o radicalismo identitário é nos mantermos firmes na defesa da liberdade, da igualdade e da individualidade. Por individualidade, não me refiro a características tomadas coletivamente como definidoras de seus integrantes. É puro oportunismo a tentativa de tornar a supremacia de identidades como algo aceito no liberalismo. Você pode, obviamente, afirmar a identidade que bem entender, mas jamais usar tal identidade para delimitar o comportamento alheio, tampouco para tentar arrancar fatias mais polpudas de recursos escassos.

Rejeitar o identitarismo não significa oprimir quem quer que seja, como tentam nos convencer aqueles que justificam seu radicalismo como o meio necessário para romper fantasmagóricos grilhões. Se grilhões não há, é justamente por termos, em uma perspectiva histórica, rejeitado a ideia de supremacia de grupos de qualquer natureza. Incapazes de demonstrar objetivamente as opressões de que tanto falam, apelam para as opressões estruturais, que existiriam nos detalhes, escancaradas no enraizamento, mas visíveis apenas aos olhos dos oprimidos. A verdade é que, a despeito de toda essa retórica de desconstrução, que transforma brancos em racistas necessários, homens em machistas necessários, héteros em homofóbicos necessários, e por aí vai, episódios como o apartheid, a eugenia nazista ou a opressão que muitas mulheres ainda sofrem sob a batuta da sharia em países islâmicos, causam a mais profunda repulsa na maioria esmagadora da sociedade. Nossos valores não comportam o tipo de opressão que nossos caros identitários dizem ser a regra e, se isso não acontece, não é por mérito deles, mas por mérito daqueles e daquelas que agora tentam apagar da história.

Não devemos permitir que a liberdade, assim como a igualdade, se torne uma palavra prostituída nas mãos daqueles que por ela não têm nenhuma consideração. Expor o autoritarismo do identitarismo não é difícil, mas o esforço passa por denunciar e combater a covardia dos que permitem o sequestro da virtude por pessoas medíocres que conseguem as coisas na base do grito e das lágrimas de crocodilo. Embora não exclusivo, porque não podemos nós também querer sequestrar a virtude, este é um esforço particularmente relevante e imprescindível para os liberais, que, pelo conjunto do que defendem, devem se manter eternamente vigilantes diante dos assaltantes da liberdade, e  não pode haver dúvidas aqui de que o identitarismo é inimigo da liberdade.


Gabriel Wilhelms

sábado, 2 de novembro de 2024

A farsa da direita

 Os resultados das eleições suscitam várias interpretações e especulações quanto ao futuro. Há boas e más notícias. Entre as boas estão a derrota fragorosa da esquerda: dos 1.762 candidatos a prefeito lançados por Psol, PCB, PCO, PSTU, UP, PCdoB e PT, apenas 271, ou 15%, foram eleitos. A rejeição ao PT continua bastante forte, apesar da montanha de dinheiro gasto nos dois turnos da campanha. A “esquerda de blazer” — o PSDB — parece ter afundado definitivamente. Houve certo crescimento da chamada direita, o que não era comum em eleições municipais, em que valia mais o poder da máquina e sempre foi pequena a importância de temas nacionais e ideológicos.

Mas a grande força no âmbito municipal, que conseguiu fazer quase 900 prefeitos, continuou sendo o “centrão”. Que, como se sabe, não pode ser classificado como de DIREITA ou de ESQUERDA, já que invariavelmente pende em direção ao lado para o qual o vento sopra em cada momento político, em troca de emendas e prebendas. Ora, isso significa que esse grupo é que, no fundo, continuará no leme do chamado “sistema”, como vem acontecendo desde a assim denominada redemocratização, ainda em meados da década de 1980. Quarenta anos de solavancos deveriam ser mais do que suficientes para demonstrar que isso não foi bom.

Para quem pensa em um Brasil novo, moderno, com um Estado enxuto, equilíbrio entre os três Poderes e respeito à economia de mercado, o fortalecimento desse centro fisiológico é uma péssima notícia. Discursos dos caciques do “centrão” foram habilmente apresentados como declarações de amor ao antirradicalismo. Na retaguarda da fala do prefeito eleito na capital paulista (quando agradeceu ao governador do seu Estado pelo apoio recebido afirmando que “o equilíbrio venceu todos os extremismos”) não é difícil perceber que estamos correndo o perigo real de retorno à chamada estratégia das tesouras. Nessa estratégia, PT e PSDB (ou seja, esquerda rústica e esquerda requintada) se revezavam no poder e iludiam o eleitor, sob os holofotes amigos da imprensa, levando-o a crer em uma disputa real entre esquerda e direita.

Em outras palavras, sob o pretexto de que é preciso evitar a “polarização”, estamos recaindo no conto do vigário da “direita permitida”. Uma direita que se apresenta como direita, mas que no fundo é um acampamento fisiológico habitado por nômades. Ou, na melhor hipótese, uma esquerda mais sofisticada, na tradição dos “tucanos” que fundaram o PSDB. A direita verdadeira — que a imprensa e o “sistema” chamam insistentemente de “extrema direita” — está sendo jogada para escanteio. E, se cair nessa esparrela, tenderá a ser cancelada. A verdade é que existe um perigo muito grande de que a direita, acreditando ingenuamente que foi a grande vencedora das eleições municipais e que nada será capaz de conter o seu avanço, se deixe iludir pelas raposas de sempre. Por conseguinte, é preciso ficar bem claro que o grande ganhador não foi a direita, mas o PSD, o MDB, o PL e o PP, velhos moradores do acampamento mencionado.

Bolsonaro teve o mérito de fazer com que as pessoas de direita perdessem a vergonha de se assumirem como tal. Muitos até descobriram que eram de direita graças a ele. Antes, se um sujeito fosse apontado como direitista, choraria lágrimas rodrigueanas de esguicho, sairia correndo de vergonha e se enfiaria em um buraco nos cafundós. Já os esquerdistas sempre assumiram a sua condição sem problemas e até com orgulho, embora historicamente defendessem, por simples ignorância, práticas que rejeitariam caso fossem bem informados.

É preciso enfatizar que a verdadeira direita, entendida como o conjunto de ideias que abrange o conservadorismo e a economia de mercado, não pode desaparecer ou se esconder. A polarização de ideias não só não é um mal, mas é necessária e desejável em qualquer democracia. Eliminar a polarização só interessa a quem se beneficia de algum modo com a estratégia das tesouras. Um liberal-conservador verdadeiro — ou um “direitista-raiz” — não pode se deixar dominar pelo “sistema” e muito menos aceitar a balela sedutora da “recivilização”. Se alguém neste mundo louco dos nossos dias é “civilizado”, é exatamente ele.

Por isso mesmo, deve ser firme na defesa dos valores em que acredita e ter bastante claro que não basta a um político ser um gestor eficiente para que seja imediatamente classificado como sendo da direita autêntica. Se a direita “permitida” colocar na Presidência em 2026 um político que seja apenas um bom gestor e não mais do que isso, poderemos seguramente dizer que o Brasil não vai virar uma Venezuela. Mas seremos levados a aceitar que vai voltar, simplesmente, a ser o Brasil que sempre foi. Isto é, vai andar de lado, com fisiológicos no comando político e economistas tucanos buscando o equilíbrio das contas públicas centrado no aumento da arrecadação, e não no corte de despesas e encolhimento do Estado.

Sendo assim, o eleitor da direita autêntica precisa analisar as posições dos futuros candidatos em, pelo menos, quatro áreas: a da economia, a do globalismo e guerra cultural, a da pauta dos costumes e a da crítica à “juristocracia” atual que vem ameaçando a democracia a pretexto de defendê-la.

Guerra cultural e globalismo

Até há pouco tempo, quando se falava em guerra cultural ou marxismo cultural, muita gente dizia que era uma invencionice, pura teoria conspiratória. Contudo, com o advento das redes sociais e graças ao trabalho de muitas pessoas dedicadas, o grande público atualmente tem noção de que a guerra cultural é uma realidade. É uma disputa que vem sendo travada desde a década de 1930, a partir da criação da Escola de Frankfurt e dos escritos de Antonio Gramsci. Intensificaram o conflito entre as visões de mundo em todos os campos culturais, introduzindo valores, linguagem e símbolos revolucionários de maneira paulatina e subliminar. As pessoas comuns, que não se deixam mais levar pela imprensa devota da seita esquerdista e que se informam pelo ambiente livre da internet, sabem muito bem que a direita precisa se contrapor à ocupação que a guerra cultural movida pela esquerda vem fazendo de todos os espaços. Você acredita que um presidente da direita “consentida” vai se comprometer com isso? Não creio.

Todos já ouviram falar da Agenda 2030 da ONU, do Governo Mundial, da Nova Ordem Mundial, do Fórum de Davos, de George Soros, de Klaus Schwab e dos intentos de controlar a vida de todos os habitantes do planeta. Será que um direitista “consentido” na Presidência vai ter a certeza de que é preciso combater essa maluquice totalitária e a coragem para fazê-lo? Ou vai ajoelhar-se diante desses verdadeiros inimigos da humanidade, alegando que é contra a “radicalização”? Ou, ainda, será que vai peitar os fanáticos do clima e os lunáticos do aquecimento global? Acho que será bem mais fácil ele cair de joelhos para os globalistas.

Costumes

As eleições de 2024 serviram também para reafirmar o que todo o mundo sabe, mas que a imprensa se esmera para esconder: o fato de que o povo brasileiro é conservador nos costumes, que acredita em Deus, que coloca a instituição familiar em primeiro plano, que aceita a igualdade de todos perante a lei. E que, portanto, rejeita o identitarismo desagregador, as manifestações doentias do wokeísmo e todo o rol de confrontações de cariz marxista entre sexos, ideologias de gêneros, raças, religiões, idades, classes sociais etc. Mais uma vez, temos que nos perguntar: o que um eventual presidente ou senador da direita “consentida” fará efetivamente, por exemplo, para abolir definitivamente a tragicômica linguagem neutra? Ou, então, imaginar o que fará caso, em uma solenidade, alguém cante algo como “des filhes desse pove és responsável legal gentil”.

Juristocracia

Por fim, é crucial saber o que um candidato de direita pensa a respeito da juristocracia. Juristocracia é essa nova ordem política que suplanta as fronteiras do puro ativismo judicial e que vem se registrando em vários países, em que o Judiciário assume um papel central na tomada de decisões governamentais, especialmente na interpretação e aplicação das leis, limitando consequentemente o poder do Legislativo e do Executivo. Para um liberal, esse regime político é perigoso, pois enfraquece as constituições, impedindo-as de garantir o desejável sistema de freios e contrapesos entre os três Poderes. O que, sem dúvida, ameaça o Estado de Direito (rule of law) e sufoca a representatividade do povo — que, por definição e imposição constitucional, deve ser a única fonte da qual emana o poder. O que fará um presidente ou um senador da direita “consentida” para restabelecer o equilíbrio e a harmonia entre os Poderes, sem os quais a democracia passa a ser um mero disfarce?

Ainda temos dois anos pela frente até as eleições de 2026. Mas a direita liberal-conservadora precisa pensar seriamente em separar o joio do trigo desde já, o que implica rejeitar os espertalhões da direita “consentida”. O Brasil não pode mais regredir ao circo das tesouras.

ESTRATEGIA DAS TESOURAS:

Existe uma estratégia muito antiga usada pelos políticos chamada Estratégia das Tesouras.
Neste teatro os políticos fingem ser oposição, quando na realidade estão em prol de um mesmo objetivo, deixando a população com uma falsa sensação de escolha.
A estratégia surgiu na Rússia através do Partido Operário Social Democrata Russo, influenciado pelas ideias revolucionárias de Karl Marx. Lênin, líder do partido, sugeriu que fossem criadas duas alas. De um lado, Bolcheviques. De outro, Mencheviques.
Os bolcheviques defendiam a revolução armada, visando instaurar o comunismo imediatamente. Os mencheviques acreditavam que a Rússia ainda precisava industrializar-se antes de se tornar socialista.
A divisão era apenas estratégica. Um teatro armado para dar ideia de oposição quando, na verdade, ambos os lados trabalhavam juntos.

O ativismo judicial no STF e o ataque ao princípio democrático

 


O conceito de Estado Democrático de Direito, consagrado pela Constituição Federal, repousa sobre a inalterabilidade das normas escritas, as quais representam a vontade soberana do povo, expressa por seus representantes eleitos. Essa estrutura busca proteger a sociedade contra a arbitrariedade, garantindo que a interpretação e a aplicação das normas não sejam manipuladas por interesses individuais ou institucionais. No entanto, o recente uso judicial de ordens para banir perfis de redes sociais, especialmente na figura do Ministro Alexandre de Moraes, revela uma preocupante ruptura com esse modelo, ao extrapolar os limites legais na tentativa de moldar a lei conforme interpretações alheias ao texto normativo.

A Constituição Brasileira de 1988 confere à liberdade de expressão um caráter inalienável e estabelece limites claros para restrições dessa liberdade. No artigo 5º, inciso IV, a Carta determina que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Esta cláusula expressa a intenção constitucional de proteger a liberdade individual de manifestação, limitando apenas a forma anônima dessa expressão. Além disso, o artigo 220 reforça a defesa da liberdade ao estabelecer que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação [...] não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” Assim, a Constituição não delega ao Judiciário poder para modificar ou ignorar essas garantias, exceto quando um ato específico de expressão viola outros direitos constitucionalmente protegidos. É por isso que a Constituição requer que tais limitações sejam excepcionais e justificadas. Proibir um perfil inteiro em redes sociais, em vez de limitar a remoção de conteúdo específico, transgride o princípio da intervenção mínima e representa uma forma de censura não prevista pela lei. Qualquer interpretação que justifique tais proibições, portanto, fere o próprio texto da Constituição e se afasta da vontade democrática expressa nos dispositivos legais.

Nesse contexto, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) foi criado para proteger a liberdade de expressão e assegurar que a internet seja um espaço de livre troca de ideias. Segundo o artigo 19, o provedor de aplicação da internet “somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente”. Em outras palavras, o Marco Civil exige que o provedor remova conteúdos específicos após ordem judicial, mas não prevê o banimento total de perfis. Esse artigo é categórico ao limitar a responsabilização e impor a necessidade de especificidade na remoção. A ordem judicial precisa descrever com clareza o conteúdo a ser removido, garantindo que a liberdade de expressão seja restringida apenas no mínimo necessário para proteger direitos alheios. Assim, a prática de remover perfis inteiros, além de estar fora do escopo do artigo 19, desafia o princípio da proporcionalidade, que sustenta a intervenção legal mínima.

Ao confrontar essas interpretações judiciais com o paradigma textualista de Antonin Scalia e Bryan A. Garner, em Reading Law, vemos como a interpretação textualista, ao contrário do “construcionismo” que defende uma leitura aberta e moldável, reforça a importância da aplicação fiel ao texto, sem abertura para extrapolações subjetivas do intérprete. A interpretação textualista se alinha ao princípio democrático, pois preserva o conteúdo da lei tal como foi criado pelo poder legislativo – única instância dotada de legitimidade democrática para alterar ou criar normas. Em contraste, a interpretação do STF, ao impor o banimento de perfis inteiros, distancia-se do texto e cria uma forma de censura que o legislador claramente não contemplou. Essa decisão não representa a “vontade da lei”, mas sim uma construção arbitrária que infringe a liberdade de expressão e afeta o equilíbrio entre os poderes. Scalia e Garner apontam que o distanciamento do texto, muitas vezes disfarçado de “intenção do legislador”, não passa de uma forma de ativismo judicial que despreza o princípio democrático em prol de uma agenda particular.

O respeito ao Princípio da Legalidade reforça que ninguém, nem mesmo o Judiciário, pode atuar fora dos limites impostos pelas normas. O juiz, ao interpretar, deve ater-se ao texto, aplicando-o com base nos significados objetivamente delimitados. O desvio dessas diretrizes, com o argumento de defender valores ou interesses supostamente superiores, compromete a segurança jurídica e desafia a confiança da sociedade na imparcialidade das instituições. A extrapolação interpretativa, especialmente no caso de decisões que afetam liberdades fundamentais, como a de expressão, evidencia uma postura arbitrária. Segundo Scalia e Garner, “os juízes são instrumentos da lei, não autores dela; ao deturparem o texto para impor sua própria interpretação, eles não apenas violam a lei, mas subvertem o pacto democrático”. Esse ativismo judicial desrespeita a divisão de poderes, transferindo para o Judiciário um poder de legislar que ele não possui.

Portanto, as normas jurídicas devem ser aplicadas tal como são, sem ajustes arbitrários ou expansões interpretativas que alterem seu sentido original. No caso dos recentes banimentos de perfis em redes sociais, o STF se afasta do mandato legal ao interpretar de maneira extensiva e subjetiva o alcance de suas decisões. Essa postura é, de fato, um ataque ao próprio conceito de democracia, pois ignora o princípio básico de que a mudança de normas se dá por meio do processo legislativo e não por interpretações judiciais criativas. Se o conteúdo da norma é considerado inadequado ou desatualizado, o caminho correto para a sociedade é a escolha de novos representantes que, em nome do povo, alterem a legislação. Scalia e Garner destacam que essa é a única maneira de respeitar o “jogo democrático”. Assim, ao tomar para si a prerrogativa de “melhorar” o texto, o Judiciário não só desrespeita a lei, como também mina o pacto social que sustenta a democracia.

Trocando em miúdos, as decisões do STF que expandem a interpretação do Marco Civil para justificar o banimento total de perfis em redes sociais são insustentáveis dentro de uma leitura textualista e constitucionalista. Elas representam uma violação da liberdade de expressão e uma subversão do princípio democrático, pois colocam o Judiciário como um legislador substituto, atuando em desacordo com os dispositivos claros e democráticos do texto legal. A resposta a essa postura judicial não deve ser o silêncio, mas a reafirmação dos princípios que sustentam a democracia. A Constituição, o Marco Civil e o princípio da legalidade existem para assegurar que ninguém esteja acima da lei – nem mesmo o Judiciário.

Assim como no mundo distópico de 1984, de George Orwell, onde o "Ministério da Verdade" reescrevia a história para moldar a realidade ao gosto do partido, hoje observamos com preocupação uma tendência similar no Judiciário, onde a interpretação judicial passa a substituir o próprio texto da lei para acomodar interesses momentâneos. Em 1984, a verdade era moldada conforme a conveniência do poder, distorcendo o sentido das palavras para sustentar uma narrativa única e incontestável, sufocando a liberdade dos indivíduos e esmagando qualquer expressão que desafiasse o regime. Da mesma forma, o banimento arbitrário de perfis inteiros nas redes sociais, sob o pretexto de proteger a ordem pública, equivale à censura draconiana imposta pela novilíngua orwelliana, apagando vozes e limitando o debate público. Essa manipulação do texto legal, distanciando-se de seu sentido original, revela um perigoso caminho onde a liberdade de expressão é sacrificada em nome de interpretações subjetivas, ameaçando os pilares democráticos e aproximando-nos daquele cenário distópico, em que o poder substitui a verdade pelo controle absoluto da narrativa.

A academia jurídica brasileira pode fazer troça do textualismo. Muitos de seus integrantes podem afirmar que essa corrente é ultrapassada, inadequada para os desafios modernos e até reducionista frente à complexidade das demandas sociais. No entanto, o desprezo pelo texto legal, expresso por esse mesmo academicismo, revela algo mais profundo e inquietante: o desejo de concentrar poder, o poder de ultrapassar as amarras impostas pelo processo democrático. Ao relegar o texto a um papel secundário, esses juristas abrem caminho para interpretações oportunistas e moldáveis, permitindo que o Judiciário avance sobre a vontade popular e sobre os limites estabelecidos pela Constituição. Esse movimento de relativização das palavras e princípios expressos não é uma inovação ou modernização; é, na verdade, uma forma de capturar o poder de legislar, sem ser eleito para isso. Essa posição enfraquece o pacto democrático e aproxima a justiça do arbítrio, afastando-a da função de garantir a liberdade e a estabilidade para a qual o Estado de Direito foi criado.