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quarta-feira, 13 de março de 2024

Aulas magnas por togados “magnos”

 

A politização, ao mesmo tempo incrementada e confessa do mundo universitário, me pareceu um dos legados dos eventos de Maio; um dos menos duvidosos e dos menos prazenteiros.” (Raymond Aron)

Vai bem longe o tempo em que a abertura do ano universitário simbolizava promessas de aquisição de conhecimentos acadêmicos pelas novas gerações. A reverência aos cabelos brancos dos mais velhos e experientes, assim como os discursos sobre assuntos que, de tão atemporais, haviam resistido ao mofo dos séculos, marcavam aquele rito de passagem de mentes verdinhas para uma vida adulta intelectualmente ativa. Nos cursos jurídicos, a abordagem de temas instigantes, tais como o surgimento do constitucionalismo, os institutos do direito civil legados pelo gênio romano ou o desenvolvimento do sistema punitivo fascinava os jovens mais argutos e proporcionava aos docentes – pelo menos àqueles dignos do título – a certeza de que o saber por eles acumulado não viraria pó. Porém, com a massificação do ensino superior e a crescente adesão de professores ao apelo fácil de ideologias de rótulo humanista, mas de essência autoritária, toda aquela sacralidade viria a ser pisoteada como algo nocivo, muito ancien régime, a ser radicalmente substituído pelas “luzes” de novos guias sociais.

Dois dias após a grande manifestação do dia 25 de fevereiro, o ministro Alexandre de Moraes inaugurava o ano letivo da faculdade de direito do Largo de São Francisco na USP (SP)[1]. Em fala que mais parecia dirigida a uma turma de pugilato que a um centro acadêmico, Moraes iniciou sua preleção com a referência a uma recente luta de boxe, para afirmar que “nós não podemos baixar a guarda… Não podemos dar uma de Bambam contra Popó – que durou 36 segundos. Nós temos que ficar alertas e fortalecer a democracia. Fortalecer as instituições e regulamentar o que precisa ser regulamentado.” Obsidiado pela regulação das redes sociais, seguiu alertando os alunos sobre algo por ele designado como “manual do ditador” e definido, pelo douto juiz, como sendo o modus operandi daqueles que “[atacam] a imprensa livre – emparelhando as notícias verdadeiras com as fraudulentas, colocam em dúvida a credibilidade do sistema eleitoral e, agora, não podem deixar aqueles que têm o papel de garantir o Estado Democrático de Direito, não podem deixar que eles tenham independência.” Em plena cátedra, conceituou como condutas ditatoriais – e, portanto, merecedoras de reprovação e de penas! – o que não passa do legítimo exercício constitucional da liberdade de expressão.

Aquele discurso havia sido uma indisfarçável resposta ao ato realizado em São Paulo, na antevéspera, durante o qual centenas de milhares de indivíduos haviam manifestado seu protesto contra a série de abusos judiciais, embora, no palanque, apenas o pastor Silas Malafaia os tivesse mencionado explicitamente[2]. Ainda assim, a reunião pacífica dos indignados contra aqueles que pouquíssimos ousaram nominar gerou reações em cadeia por parte do estamento togado. De fato, a defesa despudorada da mordaça, em um universo acadêmico que deveria primar pela pluralidade e pelo fomento ao debate entre divergentes, foi o prelúdio usado por Moraes para a edição das novas resoluções do TSE para as eleições deste ano. Como havia prenunciado diante dos acadêmicos da USP, Moraes e seus pares tornaram a “legislar” e, sem um voto popular, implementaram trechos inteiros do chamado PL da Censura, que havia sido embarreirado no parlamento[3]. Afinal, para “regulamentar o que precisa ser regulamentado”, vale tudo, inclusive desconsiderar os princípios constitucionais da separação de poderes e da livre manifestação opinativa.

Na semana seguinte, coube ao ministro Barroso desempenhar o papel de “queridinho” do meio acadêmico[4]. Em aula inaugural na PUC/RJ, o togado aproveitou a ocasião do dia internacional da mulher para autoproclamar-se um militante feminista de longa data e, pasme você, caro leitor, para escancarar sua postura pró-abortista. Deixando de lado o dever imposto a qualquer magistrado de abster-se de comentar matérias ainda sob sua apreciação, como é o caso do aborto, Barroso conclamou os ouvintes a uma mobilização pela descriminalização da prática – e ousou fazê-lo entre os muros de uma universidade privada e católica, cuja profissão de fé a tornaria, pelo menos em tese, avessa a condutas atentatórias à vida desde a sua concepção.

Em duras críticas à legislação brasileira sobre o tema, o togado incitou a plateia a “uma campanha de conscientização que precisamos difundir pelo país para que possamos votar no STF, porque a sociedade não entende do que se trata”. Além de prosélito e, por isso mesmo, carente da imparcialidade indispensável ao exercício da atividade judicante, Barroso ainda pavoneou sua soberba ao dizer que a matéria envolve algo “que a sociedade não entende”. Do alto da arrogância própria aos detentores de poderes ilimitados, partiu de uma generalização rasa sobre um coletivo de indivíduos supostamente “não entendedores” para avocar, para si, a prerrogativa de agir “em nome do povo, e para o bem deste”. Contudo, como bom representante da intelligentsia brasileira, Barroso não costuma interagir com seres humanos distantes de sua “bolha” e, muito menos, dar ouvidos às convicções e ao conhecimento do tal “povo”, invocado amiúde em folhetins e discursos politiqueiros e, agora, em falas de togados. Assim sendo, qual a sua autoridade para elencar os assuntos dos quais a sociedade entende ou não, ou para definir o próprio conceito de “sociedade”?

A citação em epígrafe contém uma alusão do notável R. Aron aos eventos de Maio de 68. Naquele mês, as insurreições universitárias, iniciadas a partir de reivindicações sobre reformas curriculares, varreram o mundo não-comunista de um canto ao outro, inclusive algumas capitais brasileiras. Derivadas de uma mesma raiz iconoclasta de contestação a valores tradicionais das civilizações e da academia no século XX, todas elas revelavam, segundo Aron, “pelo menos o enfraquecimento da autoridade dos adultos, dos professores, da instituição enquanto tal. A contestação da autoridade na Igreja católica e do comando no exército emana do mesmo estado de espírito. A revolução cultural [da China maoísta], que atinge seu apogeu nos anos 60, forma o contexto, o pano de fundo das perturbações[5].” Tão fundamentalista era o discurso daqueles “insurretos”, que figuras sensatas como Aron eram achincalhadas no debate público pela mera crítica ao radicalismo e à violência da esquerda universitária. Não à toa, data daquele período a publicação do manifesto panfletário intitulado “As Bastilhas de Raymond Aron”, em que Sartre se deleitava na detração de seu ex-amigo de infância.

Entre nós, tanto Moraes quanto Barroso são “herdeiros” do Maio de 68, cada um ao seu modo. Ambos se sentem incumbidos da missão de “salvarem” a democracia contra o pretenso “extremismo golpista”, sobretudo por meio do controle das informações disponibilizadas ao grande público. Em seus constantes atentados contra o império da lei, ambos desrespeitam as normas jurídicas, símbolo maior da autoridade em um Estado de Direito. Ambos se mostram tão incapazes de lidar com a crítica que buscam eliminá-la, a cada dia, mediante a decretação de censura e prisões ilegais de opositores. Ambos recobrem o seu menosprezo às instituições sob a maquiagem farsesca da construção de uma sociedade democrática e pacífica, da qual sejam excluídos os enigmáticos “discursos de ódio”.

Pelo menos desde a ditadura militar, nossa academia vem refletindo a indiscutível hegemonia da esquerda em todos os seus matizes. De uns tempos para cá, parece ter se tornado uma longa manus do aparato judiciário, cujas narrativas, por mais esdrúxulas, são plenamente endossadas pelos pseudo-intelectuais, entre risinhos de puro servilismo. O estrelato dos figurões de toga também nos cursos universitários, como ilustrado por aulas magnas cuja única “magnitude” reside na extensão do mando exercido por seus palestrantes, comprometerá a formação das futuras gerações. Expostos a conceitos propositalmente falseados, nossos operadores do direito do amanhã germinarão sob a crença de que a mera divergência das opiniões de poderosos configura “ato antidemocrático” e, por óbvio, tenderão a castrar o pouco que tiver restado de seu espírito crítico, cuidando sempre para não desafinarem do bando.

As perspectivas não são encorajadoras. Porém, cabe a nós, espíritos livres, um esforço conjunto de resistência contra as múltiplas manobras destinadas a sufocarem as nossas vezes e mentes.

Katia Magalhães - advogada 

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