“’Denegrir’ é uma palavra que o movimento negro e as pessoas que têm letramento racial não usam de forma nenhuma. Ou, por exemplo: ‘Saímos desse buraco negro’”, disse a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, em novembro de 2023, no programa ‘Bom Dia Ministro’, da emissora estatal EBC.
Dias depois, Marina Silva, chefe da pasta do Meio Ambiente, repreendeu o senador Plínio Valério (PSDB-AM), presidente da CPI das ONGS, por ele ter falado o termo “caixa-preta”. “Essa é uma forma pejorativa de se dirigir às pessoas pretas. Preta sou eu, que estou aqui do seu lado.”
Surgido no meio acadêmico americano, e divulgado no Brasil por meio de cursos e cartilhas, o conceito de letramento racial vem ganhando força entre governos, universidades, empresas e outras instituições.
Até o Tribunal Superior Eleitoral tem um livreto próprio sobre o assunto, intitulado “Expressões racistas: por que evitá-las” e lançado em 2022, quando o ministro Alexandre de Moraes ainda presidia aquela corte.
Mas essas iniciativas nem sempre se limitam a recomendar o banimento de determinados vocábulos. Seu conteúdo costuma incluir afirmações consideradas problemáticas, que simplificam uma questão complexa – além de servir como instrumento de imposição ideológica.
Para a socióloga Geisiane Freitas, pesquisadora das relações raciais e de gênero no país, a ideia de letramento racial faz parte do que chama de “guerra semântica”.
“É o domínio da esquerda na linguagem. Porque a guerra cultural também acontece nesse campo”, afirma a coautora (com Patrícia Silva) do livro ‘O que Não te Contaram Sobre o Movimento Antirracista’.
Na opinião do historiador Higor Ferreira, esses cursos e cartilhas deveriam, em tese, ajudar o público a “avaliar criticamente as experiências raciais no decurso do tempo”. No entanto, seus conteúdos passam distante desse objetivo.
“O que se entende por letramento racional muitas vezes acaba tangenciando uma análise que está muito mais comprometida em afirmar a presença do racismo do que avaliar por que aquelas palavras ou expressões são racistas”, diz o criador da conta do Instagram Questão de História.
Ferreira também ministra o curso ‘Analisando expressões raciais’, em que desmistifica termos considerados preconceituosos – como “criado-mudo”, “disputar a nega”, “fazer nas coxas”, “boçal” e “meia-tigela”, entre outros.
Um exemplo é a palavra “cecê”, que seria uma sigla para “cheiro de crioulo”.
“Isso é objetivamente falso. Cecê, ou C.C., é ‘cheiro de corpo’, uma tradução do inglês B.O., body odour. A sigla era usada na propaganda de uma marca de sabonete americana que fez muito sucesso no Brasil nas décadas de 40 e 50”, afirma.
Outro erro das cartilhas é associar a expressão “encher o bucho” aos escravos mineradores do século XVIII, obrigados a preencher os buracos nas paredes das minas, supostamente chamados de “buchos”, com o resultado de seu trabalho diário.
O professor explica que já havia um uso histórico para o termo “bucho”, inclusive anterior ao contexto da mineração brasileira – e que se refere ao “estômago ou ventrículo dos animais”.
De acordo com Higor Ferreira, mesmo se “cecê” e “encher o bucho” realmente correspondessem ao sentido apresentado nos livretos de letramento racial, seria compreensível que seus significados mudassem com o passar dos anos.
“Faz parte da dinâmica da língua. Além disso, se uma ofensa precisa de legenda para ser compreendida, é porque se trata de uma ofensa fraca”, diz Ferreira, que é visto como “não aliado” pelos esquerdistas por questionar e investigar esse tipo de expressão.
Ele acredita que o foco em vocábulos classificados como ofensivos reduz o problema racial brasileiro a uma questão de linguagem.
“Você começa a perceber que a luta antirracial vira um fetiche para essas pessoas. Por não falarem essas palavras, elas se sentem esclarecidas, virtuosas e não se movimentam politicamente mais para nada. Não se preocupam mais com saneamento básico, educação, saúde, mas se tem alguém dizendo ‘encher o bucho’.”
Marina Silva: "'Caixa-preta' é uma forma pejorativa de se dirigir às pessoas pretas. Preta sou eu".
Historiador questiona o que é "combater o racismo"
Grande parte das cartilhas de letramento racial lançadas no país também traz enunciados que, no mínimo, deveriam ser explicados – e, no entanto, são apresentados como verdades incontestáveis.
Uma frase quase sempre presente no encerramento dos livretos diz: “Uma pessoa não é racista somente quando ofende pessoalmente outra pessoa, mas também quando não reconhece seus privilégios e não faz nada para combater o racismo e mudar a estrutura da sociedade”.
Para Geisiane Freitas, essa afirmação simplesmente não se sustenta, pois parte de premissas questionáveis como a da dívida histórica e do racismo estrutural.
“O processo de escravidão no nosso país foi tão complexo que até mesmos negros tinham escravos negros. Privilégios existem? Sim. E é evidente que, se alguém parte de uma posição social melhor, tem mais suporte para os percalços da vida. Mas algo que aconteceu há mais de cem anos já foi bastante diluído pelo próprio tempo”, diz.
No entendimento de Higor Ferreira, o problema dessa afirmação está numa pergunta simples: o que é combater o racismo?
“Já ouvi gente dizendo que não é obrigada a explicar, porque todos têm meios de aprender. Quem levanta esse debate deve pautar o que deve ser feito. Do contrário, vão achar que a solução é pedir desculpas por ser branco.”
O professor cita o movimento abolicionista do século XIX, segundo ele o maior de nossa História – e que trazia propostas bem claras. “O que é ser antiescravista? A pessoas daquela época sabiam dizer.”
No fim das contas, tanto a socióloga quanto o historiador concordam em um ponto: a questão racial é mais uma das várias pautas sequestradas pela esquerda.
“Não entendo por que a direita se abstém de discutir temas raciais num país como o Brasil. Vale a pena falar sobre isso”, diz Geisiane.
Higor concorda, e percebe que determinados setores mais alinhados ao campo conservador – especialmente grupos cristãos – estão começando a entender que esse não é um “debate revolucionário de classe”.
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