Parece não haver mais limites para a ação da Funai e da ONU na demarcação de terras indígenas e palestinas, como se o Brasil e a Palestina fossem imensos territórios virgens suscetíveis de qualquer reconfiguração territorial.
“… se almejou reparar uma injustiça com a criação de outra injustiça”
Diante de portarias editadas no mês de julho deste ano, o poder executivo concede à FUNAI possibilidade de estabelecer territórios autônomos para a população indígena no estado de Mato Grosso do Sul. Para isso foram criados grupos de trabalho para “identificação de terras tradicionalmente ocupadas pelos grupos indígenas”.[1]
Em artigo publicado[2] no jornal Estado de São Paulo, o professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield alerta para o perigo de “reconfiguração territorial”, pois o Brasil poderia estar sujeito a
“portarias e atos administrativos do Poder Executivo que criariam ‘nações’ que, doravante, conviveriam com ‘outros Estados’. Não estaria longe o dia em que essas ‘nações’ passariam a tratar a ‘nação brasileira’ em pé de igualdade, solicitando, inclusive, reconhecimento internacional e autonomia política”.
A criação de áreas autônomas colocaria em risco a médio e longo prazo não somente a integridade nacional, como também em curto prazo a garantia do Estado de Direito. Segundo Rosenfield,
“há uma ameaça real que paira sobre toda essa região, criando uma insegurança jurídica prejudicial aos produtores, aos trabalhadores, aos investimentos e à própria autonomia do Estado de Mato Grosso do Sul”.
Não há dúvidas quanto a isso. Ainda mais quando sabemos que a região tem atraído o interesse de especuladores internacionais do porte de um George Soros, que “investiu” mais de 1 bilhão de dólares na região.[3]
Mas vamos agora comentar a análise de Rosenfield, traçando um paralelo com a criação do Estado de Israel.
Quando o professor Rosenfield escreve que
“se trata de uma área extremamente fértil, povoada, rica em recursos, com produtores lá instalados há décadas, com títulos de propriedade e uma situação perfeitamente estabelecida”
não podemos deixar de fazer uma analogia com a história recente dos palestinos. A Palestina não é rica em recursos naturais, mas seu povo habitava aquela região não “há décadas” como no caso dos produtores mato-grossenses, mas há muitos séculos antes da criação de Israel.
Continuando,
“de repente, o que se considerava uma situação estável, segura, se vê subitamente em perigo graças a atos administrativos da Funai, que passa a considerar esse Estado como um molde aguardando uma nova forma, imposta de fora”
Através da Declaração de Balfour[4] e dos atos da organização mundial (ONU) do pós-guerra, aconteceu a criação do Estado de Israel em 1948. Nós poderíamos então reescrever o parágrafo acima desta forma:
“de repente, o que se considerava uma situação estável, segura, se vê subitamente em perigo graças a atos administrativos da Funai (ONU), que passa a considerar esse Estado (Estado Palestino) como um molde aguardando uma nova forma, imposta de fora (pelo grande capital apátrida)”.
O paralelo com a saga palestina é inevitável:
“Imagine-se um Estado que pode ser repentinamente amputado de um terço de seu território, o qual passaria à legislação federal indígena (israelense) graças a portarias e estudos ditos antropológicos (religiosos). O poder concentrado nessas poucas mãos é francamente exorbitante. Não se trata de uma questão pontual, relativa, por exemplo, a uma aldeia indígena (a um grupo judaico) em particular, mas de uma questão que envolve um conjunto macro, que atinge fortemente o direito de propriedade, base de uma sociedade livre, e a configuração territorial de um ente federativo. Da forma como as portarias foram publicadas, elas podem acarretar uma demarcação que produziria, entre outras consequências, desemprego para os trabalhadores dessa região, a anulação de títulos de propriedade, a perda de arrecadação tributária, a retração de investimentos, a desvalorização das terras legitimamente adquiridas e uma completa desorganização territorial”.
A criação do Estado de Israel trouxe uma série de problemas para o mundo, pois se almejou reparar uma injustiça com a criação de outra injustiça. Em entrevista à revista Der Spiegel, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, descreveu bem esta situação. O prof. Rosenfield também abordou o tema:
“O paradoxal é que a Funai (ONU) diz fazer “justiça” e o “faz” com os recursos alheios! Não se repara uma “injustiça” criando outra!”
De um problema localizado temos suas consequências disseminadas por toda parte.
“Engana-se quem pensa que se trata de uma questão que afeta somente os produtores rurais. Trata-se de uma questão muito mais ampla, que concerne a todos os cidadãos sul-mato-grossenses e, através destes, os cidadãos brasileiros em geral (e também dos povos do mundo)”.
E da mesma forma o problema palestino atinge a todos, pois ele abriu um precedente perigoso para as relações nacionais e internacionais entre os povos.
Quem até agora acreditava que o Brasil estava imune aos problemas internacionais, recebe uma pequena, mas contundente amostra de como vivemos integrados na mesma biosfera, arcando com eventuais efeitos de nosso inocente ufanismo.
Continuando, o artigo do Prof. Rosenfield:
“… há hoje uma tendência antropológica (religiosa) e política de fazer outra leitura, claramente inconstitucional, como se uma portaria e um estudo antropológico (religioso) valessem mais do que a Constituição (Direito Internacional). Assim, passam à identificação de um processo de demarcação conjugado no passado, para o qual qualquer “prova” passa a valer, apagando toda a História brasileira (palestina)”.
Hipoteticamente, considerando que os judeus tinham de fato a prerrogativa de terem ocupado primeiramente as terras palestinas dos tempos bíblicos, teríamos:
“É de todos conhecido, por relatos históricos (religiosos) e quadros, que se tratava de regiões tradicionalmente ocupadas por indígenas (judeus). Se fôssemos seguir esse argumento à risca, chegaríamos à conclusão de que estamos diante de terras indígenas (judaicas), que deveriam ser demarcadas. Até poderíamos dizer que as provas seriam mais contundentes do que aquelas relativas à região sul do Estado de Mato Grosso do Sul (à região da data da criação de Israel). O que pensa a Funai (o ONU) fazer? Expropriar essas cidades? O que faria com as suas populações, seus empregos, suas propriedades, suas escolas, seus hospitais, seus postos de saúde, suas ruas e seus parques? Criaria ela uma “nova nação” nesses territórios “liberados”?
Futuro campo de refugiados no Mato Grosso do Sul?
Seguindo essa lógica perversa e imposta, eles poderiam mandar essas populações para campos de refugiados no próprio Estado do Mato Grosso do Sul, ou expulsá-los para o Estado de São Paulo, Goiás e outros, ou até mesmo para países vizinhos.
Sugestão para a preservação de “reservas” indígenas
Caso os mato-grossenses não respeitassem as novas determinações da FUNAI, o governo federal poderia talvez mandar construir um muro ao entorno das reservas indígenas a fim de garantir a autonomia dos índios.
O entendimento da dinâmica mundial é condição sine qua non para estabelecermos objetivos e planos de ação que garantam a autodeterminação dos povos. Desvincular um problema do outro e não abordar todas as particularidades desta dinâmica é miopia estratégica e irá, inevitavelmente, condenar a priori qualquer boa intenção de mudança.
Marcelo Franchi
[1] Notícias da Funai
[2] Denis Rosenfield, Mato Grosso do Sul, Jornal Estado de São Paulo, de 4 de agosto de 2008
[3] “Especulador do álcool”, Notícias UOL, 05/06/2007
[4] Declaração de Balfour
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