No livro Who Stole Feminism? How Women Have Betrayed Women, Christina Hoff Sommers distingue dois tipos de feminismo: o da primeira onda, chamado por ela de “feminismo da igualdade”, em livre tradução, e o da segunda onda, que ela chama de “feminismo de gênero”. Desde que o livro foi publicado pela primeira vez em 1994, também surgiu o que se chama de feminismo da terceira onda. O primeiro tipo de feminismo que Sommers identifica é calcado em valores liberais clássicos, é aquele que de fato colaborou para a extensão de importantes liberdades ao sexo feminino, sendo a base da igualdade legal que hoje indiscutivelmente existe entre homens e mulheres em países democráticos. O da segunda onda, ou feminismo de gênero, por sua vez, abandona o discurso de igualdade e investe em uma retórica radical e misândrica.
Para escrever o livro, Sommers realizou uma extensa pesquisa, chegando em diversos momentos a ir ao olho do furacão. Os relatos acerca dos tipos de devaneios identitários que ela faz são ainda mais assustadores quando pensamos que o livro foi escrito há mais de vinte e cinco anos, ao mesmo tempo em que nos ajudam a entender que toda a maluquice identitária que presenciamos hoje não é uma invenção contemporânea e sim um desdobramento de décadas de um tipo específico de militância.
Por se tratar de uma escritora americana, naturalmente o livro se foca mais nos movimentos desse país. Sommers relata os primórdios do movimento visando à extensão de direitos civis às mulheres nos EUA, como, por exemplo, uma convenção realizada em julho de 1848 visando debater a “condição social, civil e religiosa e dos direitos das mulheres”. A convenção votou e emitiu a chamada Declaração de Sentimentos, tendo Elizabeth Cady Stanton como uma das principais autoras e sendo assinada por 68 mulheres e 32 homens.
A referida declaração foi baseada na Declaração da Independência dos Estados Unidos. Nota-se aqui uma característica muito importante. Sabemos que a Declaração de Independência americana, bem como a Revolução Americana, foram fatores historicamente relevantes para o liberalismo. Sim, a declaração assinada em 1776 não promovia uma liberdade para todos, deixando de fora questões como a abolição da escravidão, que oficialmente só ocorreria quase um século depois, e a igualdade das mulheres. A despeito disso e levando em conta que é preciso contextualizar com a época, tratou-se de um avanço na seara das liberdades civis, fato reconhecido pelas signatárias e signatários da Declaração de Sentimentos. Não se visava, portanto, a reinventar a roda, não se tentava destruir o legado dos Pais Fundadores ou tratá-lo como uma chaga patriarcal; pelo contrário, reconhecia-se, por um lado, a importância desse legado, e por outro, clamava-se sua extensão a outras camadas da sociedade.
O contraste entre a Convenção de Seneca Falls e o que clamam grupos feministas radicais modernos é patente. Uso aqui a questão do feminismo como um gancho, mas a lógica pode ser aplicada a outros movimentos sociais. Historicamente são aquilo que chamamos de democracias liberais que melhor têm garantido coisas como liberdades e direitos civis. No entanto, os chamados identitários, braços mais radicais do progressismo, além de não reconhecer tal fato, se esforçam para destruir aquilo que melhor garante a liberdade de que gozam.
Em uma perspectiva histórica, é possível sim encontrar traços progressistas no liberalismo. Quando John Stuart Mill publica A Sujeição das Mulheres em 1869, defendendo coisas como o direito de as mulheres votarem e trabalharem, não há como não enxergar uma posição de vanguarda na obra. Porém, aqui há uma diferença crucial entre uma perspectiva histórica progressista do liberalismo e os identitários modernos. Prescrever uma igualdade entre homens e mulheres em meio à era vitoriana foi algo audacioso, mas uma audácia que nada tem a ver com as problematizações pós-modernas. Ora, quando tais bandeiras finalmente se transformam em realidade – sim, eu sei que isso não aconteceu da noite para o dia – e são contempladas com a justiça que merecem, o impulso seguinte é conservá-las, aperfeiçoando-as se necessário, mas longe de defender uma lógica de progresso perpétuo que pudesse vir a romper com a igualdade intencionada no princípio. É justamente o oposto do que querem os identitários.
Para o identitarismo não há herança, não há princípios, não há bases sociais a serem preservadas; tudo é obra do opressor e cabe ao oprimido ocupar o seu lugar histórico e destruir o que só existe para oprimir. Tudo estaria contaminado pelo patriarcado, pelo “racismo estrutural”, pela “homofobia estrutural”, como uma metástase em um paciente terminal, sem chance de sobrevida, sem esperanças. Eis o cerne do porquê de os identitários se colocarem como inimigos da democracia liberal e dos valores que a caracterizam: nela não enxergam legitimidade, por crerem ser obra do opressor, e por consequência cospem em tais valores, não reconhecendo as benesses que usufruem dia após dia.
Ora, não é que vivamos no paraíso e que todas as mazelas sociais, incluindo as diversas formas de preconceito, estejam extintas, longe disso; mas quem acredita que não estamos em melhor situação hoje e que essas formas de preconceito encontram a mesma penetração em nossas vidas cotidianas que tinham quando diferentes minorias eram, pela letra ou silêncio da lei, alijadas de equiparação com o resto da sociedade, está em negação da história.
Reconhecer o que foi conquistado e entender que nenhuma liberdade existe em um vácuo ou pode subsistir separada de tantas outras é o primeiro passo para que se possa corrigir qualquer mazela remanescente. Reconhecer tal progresso e herança significa conservar aquilo de fundamental que deve ser conservado e aperfeiçoar, imbuídos com os mesmos princípios e com a contemplação da liberdade, o que deve ser aperfeiçoado. No entanto, os identitários não valorizam tal herança, querem sim destruí-la; exemplo claro disso é o ataque que agora desferem contra estátuas nos EUA e na Europa. Quão contraditório pode ser um grupo que se denomina como antifascista vandalizar a estátua de Winston Churchill? De que forma defenestrar alguém como George Washington colaborará para o combate ao racismo? Nenhuma. Sim, o general e primeiro presidente americano era proprietário de escravos e a escravidão é uma instituição indefensável, mas será que é possível demonizar com uma ótica contemporânea alguém que possuía escravos no século XVIII e com isso apagar todo o mérito de sua biografia? Obviamente não.
De todos os traços citados, que acredito que caracterizariam o exercício do poder destes engenheiros sociais, aquele que acredito que é hoje o mais evidente e institucionalizado é a criação de castas de identidade. Uma das razões pelas quais sou contrário às chamadas ações afirmativas é que, primeiro, nunca confiei na promessa de que elas teriam uma duração temporária – políticos que tentarem mexer na coisa tendem a receber a pecha de racistas/machistas/homofóbicos/fascistas – e, segundo, sempre soube que não parariam por aí, abarcando cada vez mais as assim chamadas minorias que, cedo ou tarde, aprenderiam a clamar o seu quinhão.
Um dos exemplos mais recentes disso, em termos de institucionalização, foi a recente decisão do TSE que estabeleceu um percentual obrigatório da divisão do fundo eleitoral para negros. O que o tribunal fez foi estender aos negros o mesmo tipo de alocação dos recursos que já havia sido estabelecida para as mulheres. Como era de se imaginar, não parou por aí e, tudo o mais constante, não irá parar. Parte-se do princípio que tais minorias são subrepresentadas e que, sendo um valor caro à coletividade aumentar a sua presença em diferentes espaços, tais tipos de políticas se justificam. Essa lógica já é problemática e com frequência baseada em interpretações estatísticas enviesadas quando estamos falando de universidades ou concursos públicos – como o uso dos pardos como curingas -, por exemplo, mas, quando entramos na seara eleitoral, estamos diante de algo extremamente antidemocrático, além de um convite a corrupção; se não há candidatos suficientes de um determinado grupo, interessados em concorrer, os partidos serão compelidos a, paradoxalmente, contratar laranjas para poder cumprir a lei.
Porém, o estabelecimento de cotas na divisão de verba eleitoral é apenas um objetivo intermediário, pois o objetivo-mor, como é fácil de se supor, é picotar o voto popular e estabelecer cotas dentro do parlamento. Exemplo claro disso é o Projeto de Lei nº 5250/2019, que tem Tabata Amaral (PDT-SP) como coautora. O projeto estabelece uma cota feminina no Senado: nos anos em que ocorresse renovação de dois terços da casa, metade das vagas seria reservada para mulheres.
Tabata e os proponentes de projetos como esse normalmente fazem comparações com outros países, alegando, por exemplo, que o Brasil estaria atrás de países como a Arábia Saudita, Iraque e Afeganistão, em termos de paridade de gênero no parlamento. Tal comparação, se bem analisada, longe de nos causar espanto por uma suposta misoginia das instituições brasileiras – mulheres brasileiras estão legalmente em posição de igualdade para concorrer aos cargos que bem entenderem -, demonstram ainda mais a irrelevância e desvio de foco deste tipo de política. Alguém ousaria dizer que as mulheres brasileiras estão em pior situação do que as sauditas, que até 2017 não podiam dirigir? Estariam em pior situação do que as mulheres afegãs, muitas vezes condenadas ao anonimato e a não poderem colocar seus nomes nos registros de nascimento dos próprios filhos? Viveriam as mulheres iraquianas, que podem ser legalmente punidas por seus maridos, em melhor situação do que as “pobres brasileiras”, que ocupam tão poucas cadeiras no parlamento?
Ao colocarmos tais fatos em tela, resta claro que esse tipo de abstração nada tem a ver com a real situação das mulheres, bem como a mera exposição de números pode ser enganosa, sobretudo quando delas se tentam desenhar políticas que podem afetar a própria democracia. Pior, tenta-se pintar o país como um lugar de intolerância e misoginia, o que, pura e simplesmente, não é verdade.
Novamente, uso o caso como um gancho, mas podemos extrapolar a lógica para clamores análogos. Se aceitarmos compor parte do parlamento por meio de cotas para mulheres, porque também não para negros? Mas os homossexuais também sofreram muita homofobia ao longo do tempo, então porque não uma reserva de vagas para eles também? Mas se os homossexuais sofrem com o preconceito, o que dizer então dos transexuais? E quanto aos índios, os verdadeiros povos nativos? Ora, mas não adianta considerar tudo isso e ignorar a desigualdade social, então porque não cotas de renda? Mas se vamos falar de desigualdade social, não podemos deixar a desigualdade regional de lado, então por que não alocar também as vagas priorizando os estados mais pobres? Estou certo de que o leitor já entendeu aonde quero chegar: na morte da democracia.
Um defensor de tais políticas pode alegar que estou exagerando, que a coisa nunca seria extrapolada a esse ponto. Ora, mas ao se reconhecer que tal extrapolação seria maléfica e, repito, a morte da democracia, reconhece-se que mesmo as doses menos cavalares não são boas a ponto de serem amplificadas. Se um Congresso composto majoritariamente à revelia do voto popular, visando a satisfazer abstrações de identitaristas malucos, não seria algo virtuoso, uma única vaga alocada dessa forma também não seria, sendo o nível de impacto na democracia a única variável. Não se trata de um remédio com alguns efeitos colaterais, mas com benefícios que os compensem; trata-se de veneno, pura e simplesmente.
Não tenho dúvidas de que o conjunto de devaneios identitários apresentados nessa série de artigos encontra proporcionalmente muito mais rejeição do que aceitação no seio da sociedade. Não falo aqui da sociedade como uma massa homogênea, mesmo porque não é necessária homogeneidade de pensamento para se rejeitar o identitarismo – para tal basta o bom-senso. Se isso é verdade, por que então temos a impressão de que cada vez mais o identitarismo ganha força e, como demonstrado, encontra penetração institucional? Justamente por seu caráter antidemocrático e por ter aprendido a galgar a rota do poder por cima dos escombros da covardia. Aliás, temos aqui um paradoxo da ótica de combate à sub-representação, preconizada por estes justiceiros sociais, ótica essa que tudo quer alocar com base na identidade, mas nada com base na recorrência de ideias e princípios. Trata-se de uma visão, antes de tudo, elitista da sociedade.
O identitarismo, como substituto pós-moderno da luta de classes, significa a luta de identidades, se preocupando mais com abstrações do que com os problemas do mundo real. O preto que mora na favela e não tem acesso a saneamento básico, muito provavelmente não está preocupado se a loja de móveis vai colocar criado mudo ou mesa de cabeceira no catálogo. Não, quem toma as dores e sequestra a representatividade é o militante bem alimentado de classe média.
Além do caráter antidemocrático e da covardia de alguns, também concorre para a ascensão do identitarismo o fato de que ele é lucrativo. O que mais explicaria a passividade com que muitos militantes, por vezes integrantes de certas minorias, aceitam o que em outros tempos poderiam ser consideradas migalhas de condescendência? Vimos recentemente o caso da professora americana que mentiu durante anos ser negra. Ora, o assombroso da história não é ela ter mentido, mas alguém ter acreditado. O incentivo dela para mentir foi o lucro, que pode vir de forma monetária, ou na forma de prestígio. O incentivo para a comunidade acadêmica fingir credulidade foi um misto de covardia e crença cega na validade da autoafirmação de identidade. Como alguém pode achar normal vislumbrar um futuro em que afirmar identidades pode ser mais ou menos lucrativo? Não é justamente para o oposto disso que deveríamos caminhar mais e mais?
O liberalismo não é só a defesa da liberdade, mas também da igualdade. Igualdade aqui, obviamente, nada tem a ver com igualdade material, no sentido marxista. Em uma democracia liberal as leis e normas são erigidas de forma cega, no sentido da impessoalidade. O bom legislador não enxerga cor, sexo, raça, orientação sexual, credo, não cria exceções ou distinções para grupos. O liberal, do mesmo modo, não enxerga identidades; enxerga, antes de tudo, indivíduos. Isso não quer dizer que não reconheça as identidades, apenas que não aceita a hierarquização da sociedade com base nelas. O liberalismo é, por princípio, incompatível com a visão segmentada da sociedade que defendem os identitaristas. Tudo aquilo de virtuoso, como a igualdade de sexos e a igualdade racial, para o que os identitaristas nada contribuíram e de que apenas foram tributários, toda a herança de igualdade, de impessoalidade, que não compreendem e tentam destruir, todo o arcabouço daquilo que chamamos de democracia liberal, que sempre foi um processo e não uma imposição, significam tudo de meritório que já conquistamos na seara da igualdade e dos direitos, ao mesmo tempo em que apontam para o caminho no qual devemos nos manter e aperfeiçoar.
A melhor forma de combatermos o radicalismo identitário é nos mantermos firmes na defesa da liberdade, da igualdade e da individualidade. Por individualidade, não me refiro a características tomadas coletivamente como definidoras de seus integrantes. É puro oportunismo a tentativa de tornar a supremacia de identidades como algo aceito no liberalismo. Você pode, obviamente, afirmar a identidade que bem entender, mas jamais usar tal identidade para delimitar o comportamento alheio, tampouco para tentar arrancar fatias mais polpudas de recursos escassos.
Rejeitar o identitarismo não significa oprimir quem quer que seja, como tentam nos convencer aqueles que justificam seu radicalismo como o meio necessário para romper fantasmagóricos grilhões. Se grilhões não há, é justamente por termos, em uma perspectiva histórica, rejeitado a ideia de supremacia de grupos de qualquer natureza. Incapazes de demonstrar objetivamente as opressões de que tanto falam, apelam para as opressões estruturais, que existiriam nos detalhes, escancaradas no enraizamento, mas visíveis apenas aos olhos dos oprimidos. A verdade é que, a despeito de toda essa retórica de desconstrução, que transforma brancos em racistas necessários, homens em machistas necessários, héteros em homofóbicos necessários, e por aí vai, episódios como o apartheid, a eugenia nazista ou a opressão que muitas mulheres ainda sofrem sob a batuta da sharia em países islâmicos, causam a mais profunda repulsa na maioria esmagadora da sociedade. Nossos valores não comportam o tipo de opressão que nossos caros identitários dizem ser a regra e, se isso não acontece, não é por mérito deles, mas por mérito daqueles e daquelas que agora tentam apagar da história.
Não devemos permitir que a liberdade, assim como a igualdade, se torne uma palavra prostituída nas mãos daqueles que por ela não têm nenhuma consideração. Expor o autoritarismo do identitarismo não é difícil, mas o esforço passa por denunciar e combater a covardia dos que permitem o sequestro da virtude por pessoas medíocres que conseguem as coisas na base do grito e das lágrimas de crocodilo. Embora não exclusivo, porque não podemos nós também querer sequestrar a virtude, este é um esforço particularmente relevante e imprescindível para os liberais, que, pelo conjunto do que defendem, devem se manter eternamente vigilantes diante dos assaltantes da liberdade, e não pode haver dúvidas aqui de que o identitarismo é inimigo da liberdade.
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