A Constituição Brasileira de 1988 confere à liberdade de expressão um caráter inalienável e estabelece limites claros para restrições dessa liberdade. No artigo 5º, inciso IV, a Carta determina que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Esta cláusula expressa a intenção constitucional de proteger a liberdade individual de manifestação, limitando apenas a forma anônima dessa expressão. Além disso, o artigo 220 reforça a defesa da liberdade ao estabelecer que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação [...] não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” Assim, a Constituição não delega ao Judiciário poder para modificar ou ignorar essas garantias, exceto quando um ato específico de expressão viola outros direitos constitucionalmente protegidos. É por isso que a Constituição requer que tais limitações sejam excepcionais e justificadas. Proibir um perfil inteiro em redes sociais, em vez de limitar a remoção de conteúdo específico, transgride o princípio da intervenção mínima e representa uma forma de censura não prevista pela lei. Qualquer interpretação que justifique tais proibições, portanto, fere o próprio texto da Constituição e se afasta da vontade democrática expressa nos dispositivos legais.
Nesse contexto, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) foi criado para proteger a liberdade de expressão e assegurar que a internet seja um espaço de livre troca de ideias. Segundo o artigo 19, o provedor de aplicação da internet “somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente”. Em outras palavras, o Marco Civil exige que o provedor remova conteúdos específicos após ordem judicial, mas não prevê o banimento total de perfis. Esse artigo é categórico ao limitar a responsabilização e impor a necessidade de especificidade na remoção. A ordem judicial precisa descrever com clareza o conteúdo a ser removido, garantindo que a liberdade de expressão seja restringida apenas no mínimo necessário para proteger direitos alheios. Assim, a prática de remover perfis inteiros, além de estar fora do escopo do artigo 19, desafia o princípio da proporcionalidade, que sustenta a intervenção legal mínima.
Ao confrontar essas interpretações judiciais com o paradigma textualista de Antonin Scalia e Bryan A. Garner, em Reading Law, vemos como a interpretação textualista, ao contrário do “construcionismo” que defende uma leitura aberta e moldável, reforça a importância da aplicação fiel ao texto, sem abertura para extrapolações subjetivas do intérprete. A interpretação textualista se alinha ao princípio democrático, pois preserva o conteúdo da lei tal como foi criado pelo poder legislativo – única instância dotada de legitimidade democrática para alterar ou criar normas. Em contraste, a interpretação do STF, ao impor o banimento de perfis inteiros, distancia-se do texto e cria uma forma de censura que o legislador claramente não contemplou. Essa decisão não representa a “vontade da lei”, mas sim uma construção arbitrária que infringe a liberdade de expressão e afeta o equilíbrio entre os poderes. Scalia e Garner apontam que o distanciamento do texto, muitas vezes disfarçado de “intenção do legislador”, não passa de uma forma de ativismo judicial que despreza o princípio democrático em prol de uma agenda particular.
O respeito ao Princípio da Legalidade reforça que ninguém, nem mesmo o Judiciário, pode atuar fora dos limites impostos pelas normas. O juiz, ao interpretar, deve ater-se ao texto, aplicando-o com base nos significados objetivamente delimitados. O desvio dessas diretrizes, com o argumento de defender valores ou interesses supostamente superiores, compromete a segurança jurídica e desafia a confiança da sociedade na imparcialidade das instituições. A extrapolação interpretativa, especialmente no caso de decisões que afetam liberdades fundamentais, como a de expressão, evidencia uma postura arbitrária. Segundo Scalia e Garner, “os juízes são instrumentos da lei, não autores dela; ao deturparem o texto para impor sua própria interpretação, eles não apenas violam a lei, mas subvertem o pacto democrático”. Esse ativismo judicial desrespeita a divisão de poderes, transferindo para o Judiciário um poder de legislar que ele não possui.
Portanto, as normas jurídicas devem ser aplicadas tal como são, sem ajustes arbitrários ou expansões interpretativas que alterem seu sentido original. No caso dos recentes banimentos de perfis em redes sociais, o STF se afasta do mandato legal ao interpretar de maneira extensiva e subjetiva o alcance de suas decisões. Essa postura é, de fato, um ataque ao próprio conceito de democracia, pois ignora o princípio básico de que a mudança de normas se dá por meio do processo legislativo e não por interpretações judiciais criativas. Se o conteúdo da norma é considerado inadequado ou desatualizado, o caminho correto para a sociedade é a escolha de novos representantes que, em nome do povo, alterem a legislação. Scalia e Garner destacam que essa é a única maneira de respeitar o “jogo democrático”. Assim, ao tomar para si a prerrogativa de “melhorar” o texto, o Judiciário não só desrespeita a lei, como também mina o pacto social que sustenta a democracia.
Trocando em miúdos, as decisões do STF que expandem a interpretação do Marco Civil para justificar o banimento total de perfis em redes sociais são insustentáveis dentro de uma leitura textualista e constitucionalista. Elas representam uma violação da liberdade de expressão e uma subversão do princípio democrático, pois colocam o Judiciário como um legislador substituto, atuando em desacordo com os dispositivos claros e democráticos do texto legal. A resposta a essa postura judicial não deve ser o silêncio, mas a reafirmação dos princípios que sustentam a democracia. A Constituição, o Marco Civil e o princípio da legalidade existem para assegurar que ninguém esteja acima da lei – nem mesmo o Judiciário.
Assim como no mundo distópico de 1984, de George Orwell, onde o "Ministério da Verdade" reescrevia a história para moldar a realidade ao gosto do partido, hoje observamos com preocupação uma tendência similar no Judiciário, onde a interpretação judicial passa a substituir o próprio texto da lei para acomodar interesses momentâneos. Em 1984, a verdade era moldada conforme a conveniência do poder, distorcendo o sentido das palavras para sustentar uma narrativa única e incontestável, sufocando a liberdade dos indivíduos e esmagando qualquer expressão que desafiasse o regime. Da mesma forma, o banimento arbitrário de perfis inteiros nas redes sociais, sob o pretexto de proteger a ordem pública, equivale à censura draconiana imposta pela novilíngua orwelliana, apagando vozes e limitando o debate público. Essa manipulação do texto legal, distanciando-se de seu sentido original, revela um perigoso caminho onde a liberdade de expressão é sacrificada em nome de interpretações subjetivas, ameaçando os pilares democráticos e aproximando-nos daquele cenário distópico, em que o poder substitui a verdade pelo controle absoluto da narrativa.
A academia jurídica brasileira pode fazer troça do textualismo. Muitos de seus integrantes podem afirmar que essa corrente é ultrapassada, inadequada para os desafios modernos e até reducionista frente à complexidade das demandas sociais. No entanto, o desprezo pelo texto legal, expresso por esse mesmo academicismo, revela algo mais profundo e inquietante: o desejo de concentrar poder, o poder de ultrapassar as amarras impostas pelo processo democrático. Ao relegar o texto a um papel secundário, esses juristas abrem caminho para interpretações oportunistas e moldáveis, permitindo que o Judiciário avance sobre a vontade popular e sobre os limites estabelecidos pela Constituição. Esse movimento de relativização das palavras e princípios expressos não é uma inovação ou modernização; é, na verdade, uma forma de capturar o poder de legislar, sem ser eleito para isso. Essa posição enfraquece o pacto democrático e aproxima a justiça do arbítrio, afastando-a da função de garantir a liberdade e a estabilidade para a qual o Estado de Direito foi criado.
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