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domingo, 9 de dezembro de 2018

A Crítica ao Liberalismo: Carl Schmitt

Schmitt em Weimar: A Crítica ao Liberalismo
Propomos agora rastrear a crítica que Schmitt realiza do liberalismo durante o período da República de Weimar. Nossa interpretação encontra que a crítica que Schmitt formula tem um caráter dual: por um lado sustenta que o liberalismo cumpriu um papel na história, e que aliado à democracia, destruiu o princípio de legitimidade monárquico; a razão da caducidade do liberalismo a encontra, neste registro, em que, uma vez morto o Rei e desaparecidos todos os pressupostos próprios do liberalismo, este já não tem razão de ser. Este primeiro argumento de tipo histórico espiritual convive, cremos, com uma crítica ontológico-política do liberalismo na qual Schmitt descobre na metafísica liberal a incapacidade que tem, tanto teórica como praticamente, de fazer frente à situação excepcional; sua crítica ao liberalismo é uma crítica da neutralização do conflito político assentada na ilusão do normativismo e do universalismo humanista que leva, segundo Schmitt, à incapacidade de pensar a decisão como ultima ratio da soberania e, em suma, à incapacidade de pensar a política fora da normalidade legal, à impossibilidade de pensar a política nos momentos de criação, de ruptura ou de conflito.
Para rastrear os dois aspectos dessa crítica recorreremos detidamente alguns dos textos mais significativos que o autor escreveu durante a República de Weimar, já que é durante este período quando Schmitt concebe o perigo a que conduz a pretensão liberal de prorrogar toda decisão e escapar à temporalidade do político.
a) Em O Conceito do Político, Schmitt se propõe estabelecer quais são as distinções específicas do político como campo autônomo da realidade. Para iluminar a crítica ao liberalismo que Schmitt realiza neste texto, trataremos, por um lado, no aspecto ontológico-político, a relação que encontra Schmitt entre toda teoria política e a profissão de fé antropológica que cada uma sustenta, e pelo outro, no plano histórico espiritual, o tratamento schmittiano da acusação de violência que realizou o liberalismo durante o século XIX contra a política e o Estado, através do deslocamento do conflito político para a discussão no plano espiritual e negociação no plano econômico, isto é, através da neutralização do conflito e da negação de seu caráter essencialmente político. A crítica neste texto, não obstante, veremos que se move centralmente nas consequências nefastas que traz para Schmitt a pretensão liberal de erradicar a política do mundo, pretensão que está sustentada em suas premissas antropológicas e metafísicas. Schmitt sustenta que “não há uma política liberal em si, mas sempre uma crítica liberal da política”. O liberalismo se refere somente à luta interna contra o poder do Estado e gera uma série de mecanismos para controla-lo e garantir a liberdade dos indivíduos mediante a divisão de poderes e os controles normativos. Esta incapacidade para pensar o político tem sua origem na concepção antropológica do homem do liberalismo. A crença liberal se orienta em uma profissão de fé positiva com relação à antropologia do homem, isto é, crê que o homem é bom por natureza; a partir dessa concepção não é necessária a ideia de uma autoridade que, através do exercício de sua soberania, garanta a paz e a ordem no interior da comunidade devido a que os homens, ao não terem uma natureza conflitiva, deixados a seu livre-arbítrio, gerariam espontaneamente a ordem social e não se enfrentariam entre si. Para Schmitt, a esfera do político está dominada pela possibilidade real da distinção de um inimigo, o que pressupõe uma concepção negativa da natureza do homem. Movendo-se em um termo médio entre as concepções mais autoritárias (que pressupõem a maldade natural do homem) e as anarquistas (que são consequentes com a premissa da bondade natural do homem), o liberalismo, mediante a proposição de um homem bom, pretende subordinar o Estado à sociedade para garantir os direitos dos indivíduos; “para os liberais, a bondade do homem não significa outra coisa que um argumento com cuja ajuda o Estado é posto a serviço da sociedade: eles afirmam que a sociedade tem em si mesma sua própria ordem e que o Estado é só um subordinado dela, controlado com desconfiança e limitado dentro de limites precisos”. A hostilidade frente ao Estado e a política cresce à medida que a confiança na natureza do homem aumenta. O liberalismo não nega de modo radical o Estado – não é consequente, portanto, com sua premissa da bondade natural do homem; sob a doutrina da divisão de poderes não funda uma teoria do Estado, mas uma forma de limitar o exercício do poder (considerando-o como algo mau e corruptor do homem). O liberalismo é incapaz de formar uma teoria política própria porque parte da base de uma antropologia positiva do homem e se encontra, sempre, obrigado a pensar a forma de garantir os direitos individuais. Dado que, segundo o define Schmitt, o político se assenta na capacidade de distinguir amigo-inimigo, e que seu horizonte e pressuposto é a possibilidade de dar a vida por esta oposição existencial, seria inconsistente que o indivíduo liberal estivesse disposto a matar ou morrer por uma decisão que obedeça a outros fins que não sejam os do próprio indivíduo. “Em casos determinados a unidade política demanda o sacrifício da vida; esta pretensão não pode, de modo algum, se fundar e se sustentar no individualismo do pensamento liberal. Um individualismo que desse o poder de dispor da vida física do indivíduo a algo diferente do próprio indivíduo careceria de sentido, do mesmo modo que uma liberdade liberal sobre a qual fosse outro, e não o próprio titular da liberdade, quem decidisse seu conteúdo e alcance”.
Esta incapacidade teórica do liberalismo para pensar o político, não obstante, não o impediu de atuar politicamente contra uma forma de Estado e um poder político particular. Isto nos introduz ao segundo aspecto da crítica ao liberalismo: segundo Schmitt na acusação de político e violento contra todo movimento que se lhe oponha, o liberalismo propugnou por uma forma de dominação que, desconhecendo os limites próprios do político, conduz à radicalização do enfrentamento, à eliminação de toda distinção precisa entre guerra e paz, amigo e inimigo, e à transformação da guerra na última cruzada contra o último inimigo da humanidade ao qual se demoniza e que é apresentado como o Outro do verdadeiramente humano.
O liberalismo, sustenta Schmitt, se move dentro da polaridade de ética e economia, insultando ao político como o lugar onde as coisas se resolvem por meio da violência e buscando mediante a discussão no plano espiritual e a negociação e o intercâmbio no plano econômico propiciar uma convivência sem fricções. Desmilitariza e despolitiza todos os conceitos políticos transformando a luta e o enfrentamento no plano espiritual em discussão e no plano econômico em competição. Elimina os limites entre guerra e paz sob o horizonte de uma discussão eterna e uma competição eterna da qual derivaria o equilíbrio. Os polos de ética e economia se enfrentam à política como âmbito da “violência conquistadora” e o Estado se converte no mecanismo mediante o qual se devem garantir os direitos dos indivíduos. Assim, mediante a transformação de todo enfrentamento político em discussão no plano espiritual e negociação e competição no plano econômico, o pathos liberal se rebela frente à violência e à intervenção nos assuntos particulares, chegando assim a uma multiplicidade de argumentos desmilitarizados e despolitizados que conduzem a conceber o Estado e à política somente como o guardião dos interesses dos indivíduos.
O liberalismo, levantando a acusação de violência contra o Estado e a política, se valeu da concepção iluminista de progresso do século XVIII, pressupondo que o progresso da técnica e da economia estaria acompanhado do progresso da razão e da liberdade. Esta concepção se enfrentou polemicamente contra a contrarrevolução acusando de política, ou seja, violência, todas as pretensões de restauração ou de imposição de um governo que não fosse o parlamentar. Mas sustenta Schmitt, um domínio sobre os homens fundado somente no econômico, aparece como um terrível engano; “com a ajuda dessas definições e construções que finalmente giram ao redor da polaridade de ética e economia, não é possível extirpar o Estado e a política e despolitizar o mundo (...) Essencialmente não belicosa e, justamente baseando-se na ideologia liberal, é só a terminologia (...) O adversário não é chamado mais de inimigo, mas por isso mesmo é apresentado como violador e perturbador da paz, de fora-da-lei e fora da humanidade, e uma guerra efetuada para a manutenção e a ampliação de posições econômicas de poder deve ser transformada, com o recurso da propaganda, na “cruzada” e na última guerra da humanidade. Este é o fruto da polaridade de ética e economia”.
O núcleo da crítica que Schmitt realiza em O Conceito do Político se funda, então, por um lado, na incapacidade que tem o liberalismo de pensar o político devido a sua concepção antropológica, o que conduz, segundo o jurista alemão, a desatender o vínculo necessário entre a proteção e a obediência e a promover a irrupção de poderes intermediários que sem assumir os riscos do político se favorecem com todos os seus benefícios. Por outro lado, a crítica ao liberalismo se dirige a que este atua politicamente, mas de maneira encoberta, quando, qualificando a seus adversários como políticos e violentos, monopoliza o conceito de humanidade. Este monopólio do conceito de humanidade leva, segundo Schmitt, à desqualificação do inimigo, transformando o enfrentamento com ele no último passo para alcançar a tão desejada paz perpétua e utilizando para isso de todos os meios de destruição. Se o outro já não é humano, sua eliminação se faz necessária para a verdadeira convivência, o que conduzirá a uma guerra que, desatendendo dos limites próprios do político, se proporá não já manter o inimigo dentro de seus próprios limites, mas exterminá-lo. 
b) “A questão da soberania é a questão da decisão de um conflito existencial. Há vários métodos de por fim e término pacífico aos litígios (...) mas por muito que se possam solucionar, com boa vontade e mediante homens discretos e justos, diferenças, diversidades de opinião e litígios, um conflito existencial não pode se acabar desse modo. Todo povo politicamente existente decide forçosamente ele próprio e por sua conta e risco as questões de sua existência política. Inclusive a questão de se uma questão é existencial, só pode ser decidida por ele na medida em que exista politicamente”. A questão da soberania ocupar um lugar central na reflexão schmittiana; em Teologia Política, a crítica que Schmitt realiza do liberalismo estará focada na incapacidade que tem a metafísica liberal para pensar a soberania e decidir diante da irrupção de forças sociais que, amparadas sob o Estado de Direito, podem conduzir à guerra civil e à dissolução da comunidade política. O núcleo da crítica de Schmitt ao liberalismo ao redor do conceito de soberania é que o liberalismo, mediante a divisão de competições e o controle recíproco dos diferentes órgãos do Estado, pretende resolver os conflitos dentro do marco do sistema normativo e, frente ao caso de exceção (quando o conflito se dá em termos existenciais e não se pode resolver apelando a qualquer sistema normativo), se encontra impotente para garantir a continuidade da ordem ou para fundar outra nova.
O que o liberalismo não está em condições de compreender é que todo sistema normativo se apoia não em uma norma, mas em uma decisão. Soberano, diz Schmitt, é quem decide sobre o caso de exceção; do ponto de vista normativo a decisão nasce do nada, isto é, não tem outro fundamento que o de uma subjetividade que se afirma e que decide o que é a ordem, a segurança e o bem em uma comunidade política dada. A decisão tem sentido não pela racionalidade do decidido, mas porque esta decisão é o que permite o funcionamento normal de uma comunidade política. O liberalismo, devido à concepção que tem da lei que, como veremos mais adiante, é a de uma norma geral e racional oposta a toda vontade particular, é incapaz de fazer frente às situações que não podem ser resolvidas dentro do sistema normativo vigente e que precisam de uma fonte de legitimidade que não é normativa, mas política. Schmitt recuperará, oposta a esta concepção liberal da lei, a máxima hobbesiana de que não é a verdade, mas a autoridade, a fonte da lei; o Estado, na figura do soberano, pode suspender o Direito pelo direito que tem a sua própria conservação. Para dizê-lo com outras palavras, frente à irrupção do mal no mundo (sobre esta também é o soberano que decide se existe ou não, ou seja, se está diante de uma situação normal ou uma excepcional) o que mantém a estabilidade de uma comunidade política é essa decisão que possa ou bem reafirmar uma ordem de coisas ou bem gerar outra nova. O liberalismo não pode fazer frente à situação excepcional, pois pretende resolver os conflitos por meio da discussão racional, ignorando que, quando o enfrentamento é político, não há possibilidade de chegar a qualquer acordo, já que a oposição se dá em termos existenciais e não normativos.
Schmitt sustenta que todos os conceitos políticos derivam de conceitos teológicos secularizados; esta afirmação, com a qual começa a terceira parte de Teologia Política, nos permite entender a natureza do conceito de soberania e iluminar a crítica schmittiana à concepção liberal da mesma. Schmitt reconhece que para compreender que forma política uma época toma por evidente há que se perguntar que concepção do mundo, metafísica e teológica, tem essa mesma época, concepção da qual extrai toda sua força. Assim, uma época que pensa Deus como produtor e conservador do mundo, intervindo mediante a formulação de leis gerais, mas operando também milagres, conceberá um soberano que é ao mesmo tempo criador e conservador do Estado, que trabalha normalmente quando a situação é normal e excepcionalmente quando a ameaça de dissolução da comunidade se encontra como possibilidade real. Mas uma sociedade que considera que Deus criou o mundo, mas logo se apartou dele, isto é, que Deus só obrou por um ato geral no princípio dos tempos (deísmo), conduz a fazer desaparecer na forma política o elemento decisionista e personalista que caracteriza o próprio conceito de soberania. É neste ponto que Schmitt encontra a debilidade do liberalismo para fazer frente à situação excepcional; o liberalismo parte de uma metafísica deísta, pelo que não concebe outra lógica que não seja a da legalidade e se opõe a toda intervenção de uma vontade política. O edifício normativo do liberalismo funciona mais como um limite da soberania e da vontade política do que como uma afirmação de algum tipo de ordem, e é esta negação do conceito de soberania e o achatamento de toda decisão sob o pressuposto de que discutindo se pode chegar a um acordo, o que a Schmitt parece insultuoso no liberalismo. Ao não assumir a responsabilidade de decidir sobre a situação excepcional, o liberalismo se encontra impotente perante a irrupção de forças sociais, essencialmente antiliberais que, amparadas sob o sistema normativo burguês, podem conduzir à dissolução da comunidade política.
Estas teologias políticas (teísmo e deísmo) correspondem aos séculos XVII e XVIII, nas quais uma concepção de um Deus transcendente em relação ao mundo coincidia com a crença em um soberano transcendente à ordem normativa. No século XIX, diz nosso autor, a noção de imanência adquire difusão cada vez maior; a tese democrática da identidade de governantes e governados, a identificação de Estado e Direito, provocou nos contrarrevolucionários Donoso Cortés, De Maistre e De Bonald o intento por recuperar o conceito de soberania em sua concepção teísta, já que observavam com cautela que um regime regido apenas pela imanência não é um regime de homens, mas de autômatos. Mas o século XIX, apesar dos pensadores contrarrevolucionários, adquire cada vez mais um caráter imanente onde o princípio de legitimidade democrático substitui o outrora reinante princípio de legitimidade monárquico. O liberalismo se encontra em um ponto intermediário entre estes dois princípios, mas não representa, como veremos no tratamento do Estado burguês de Direito que Schmitt realiza em Teoria da Constituição, nenhum princípio político. Quando seu inimigo político é o Rei, se aliará com a democracia para destrona-lo. Mas uma vez caído o princípio de legitimidade monárquico, a democracia aparecerá como o fundamento último das comunidades políticas e o liberalismo, enquanto se converte em um obstáculo para o livre desenvolvimento das forças democráticas, não pode opor a elas nenhuma forma política. Passemos então a ver o que é que entende Schmitt por democracia e qual é a diferença entre esta e o liberalismo.
c) A distinção entre parlamentarismo e democracia que Schmitt realiza em seu texto de 1923 Sobre o Parlamentarismo permitirá iluminar, principalmente, o primeiro aspecto de sua crítica ao liberalismo que denominamos histórico-espiritual. A crítica ao liberalismo tomará aqui a forma de crítica do parlamentarismo que, se bem acompanhou à democracia em sua luta contra o absolutismo principesco, não necessariamente se encontra vinculado com ela. Segundo Schmitt, uma vez destruído o regime monárquico tradicional, o Parlamento se transformará em uma instituição que já não cumprirá as funções para as quais, dado o princípio no qual está fundado o governo por discussão, estava destinado. Se bem neste texto o núcleo de nossa interpretação está centrado na caducidade histórica do parlamentarismo, Schmitt detectará, para pôr em evidência os pressupostos sobre os quais se assenta o parlamentarismo, a vinculação entre estes e a metafísica liberal, pelo que também aqui desempenha um papel importante a crítica ontológico-política que realiza do liberalismo. Comecemos, pois, pela caracterização que Schmitt realiza do fundamento intelectual do parlamentarismo para passar logo à crítica que realiza do governo por discussão devido a sua caducidade histórica. 
Qual é, então, o fundamento intelectual do parlamentarismo? O princípio da discussão pública, como o intercâmbio de opiniões determinado pelo objetivo de convencer o outro, com argumentos racionais, do verdadeiro e do correto é o pressuposto que torna compreensível o parlamentarismo como forma de governo.
O parlamentarismo encontra na discussão pública, como processo de controvérsias do que resultaria a vontade estatal, seu princípio reitor. O Parlamento seria o lugar onde as partículas de razão dispersas na sociedade se agrupam e se convertem em poder público. A causa dessa crença, diz Schmitt, deve ser buscada na metafísica liberal que pressupõe uma harmonia pré-estabelecida entre os distintos indivíduos a que se chega a partir da livre competição; o correto e o justo surgiria no Parlamento como resultado desta. Dessa busca da verdade por meio da discussão surgem as duas exigências típicas do liberalismo: a publicidade, que originariamente se dirigiu contra os segredos de Estado e com a qual a opinião pública aparecia como o corretivo contra todo abuso de poder, e a separação de poderes que, dirigida polemicamente contra a concentração do poder no monarca absoluto, acreditava encontrar no equilíbrio entre eles o único limite contra a arbitrariedade. Mas o Parlamento só adquire a importância que tem se ele é compreendido como o encarregado de legislar, isto é, de formular leis gerais e obrigatórias para todos, que devido a surgirem como produto da discussão racional, podem se aproximar à verdade e à justiça. Frente à vontade, que o liberalismo pressupõe arbitrária e por isso injusta, se lhe opõe a verdade como fonte da lei. O parlamentarismo se levanta como o único que mediante o equilíbrio entre os poderes pode, através da formulação de leis, opor ao poder puramente fático, a força do direito.
A crítica ao parlamentarismo, e ao liberalismo como fundamento intelectual daquele, pressupõe a distinção entre a democracia, como princípio de legitimidade que substitui à legitimidade dinástica, e o liberalismo. Como assinalávamos antes, para Schmitt o parlamentarismo pode ser a forma política da democracia só quando o Rei ainda não foi destronado. O sistema parlamentar que durante a luta contra a monarquia se apresentava como representante do povo, uma vez vencido o Rei perdeu seu sustento já que, como veremos, as decisões fundamentais são tomadas fora dele. Quanto mais desaparecia o antagonista, isto é, o Rei enquanto representante da unidade política, mais decaía a função representativa do Parlamento enquanto representante do povo em sua homogeneidade. Uma vez caído o Rei, o Parlamento se encontrou diante da tarefa de representar a unidade política frente ao povo, ou seja, frente a seus próprios eleitores. A aliança entre parlamentarismo e democracia só é efetiva quando há outra persona política (o Rei) frente à qual o Parlamento pode lhe fazer oposição como o “verdadeiro” representante do povo.
Vejamos então o que é para Schmitt a democracia e em que se diferencia do liberalismo. A democracia tem como princípio uma série de identificações (Estado e Lei, governantes e governados, dominadores e dominados) nas quais as decisões que se tomam no interior de uma comunidade política só tem valor para os que formam parte dela e onde a lei não representa outra coisa que a vontade do povo. Esta concepção da lei se opõe ao princípio liberal de que a lei deve representar não uma vontade, mas mais precisamente a verdade e a justiça. Enquanto que a democracia parte do pressuposto da homogeneidade do povo que ela contém, como toda igualdade política em um sentido substancial, uma desigualdade com relação àqueles que, por não pertencerem à comunidade, são estrangeiros, o liberalismo pressupõe uma igualdade entre todos os seres humanos que, mais que um conceito político, forma parte da concepção individualista e moral humanitária que este professa. Schmitt se pergunta por qual razão se pressupõe que a melhor forma de representar o povo seja através de um conjunto de pessoas no Parlamento e se não seria possível também, mediante a identificação entre governantes e governados, representar o povo em uma só pessoa. A ditadura, isto é, a eliminação da separação de poderes que propugna o liberalismo, pode ser facilmente a forma política da democracia. 
A caducidade histórica do Parlamento está dada por um lado, então, pelo fato de que uma vez deposto o Rei o Parlamento pretende representar o povo frente ao próprio povo, já que não tem adversário ao qual se opor. Mas a ênfase em Sobre o Parlamentarismo está posta, principalmente, em que o Parlamento se converteu em algo muito distinto do que dizia ser, isto é, que já não é o lugar onde mediante a discussão se produz uma lei racional e justa. O Parlamento se converteu, para Schmitt, no lugar em que as forças sociais obtém seus benefícios mediante a negociação e o intercâmbio de interesses. Contrapondo discussão e negociação, Schmitt assinalará que enquanto o primeiro implica uma busca do justo e do verdadeiro por meio do intercâmbio de opiniões com os demais, a negociação não tem como objetivo encontrar a verdade, mas obter o maior benefício através do cálculo de interesses. A discussão e a publicidade como fundamentos últimos do governo parlamentar só são uma mera fachada, já que as decisões, sustenta Schmitt, se tomam em comissões cada vez mais fechadas que respondem não a uma discussão da qual sairia o equilíbrio, mas a interesses sociais e corporativos que nada tem de racionais e que encontram na representação de seus interesses particulares por parte dos parlamentares, a melhor forma de domar o Estado e gozar das suas vantagens que este brinda sem assumir as responsabilidades políticas. “O Parlamento, diz Schmitt, ficou despojado de seu próprio fundamento espiritual, perdendo por completo sua ratio todo o sistema de liberdade de expressão, reunião e imprensa, debates públicos e imunidades e privilégios parlamentares (...) Se a publicidade e a discussão se converteram, com a própria dinâmica do Parlamento, em uma vazia e fútil formalidade, o Parlamento, tal e como se desenvolveu no século XIX, perdeu seu anterior fundamento e sentido”. A crítica de Schmitt ao parlamentarismo, como forma de governo do liberalismo, está ancorada, então, em que ao se converter em uma formalidade vazia, permite o avanço de forças sociais que, amparadas na lógica do Estado de Direito, utilizam o funcionamento normal do Estado como armas para conquistar posições na luta contra seus adversários políticos internos. O conciliacionismo liberal pressupõe que os conflitos podem ser resolvidos por meio de uma discussão racional, mas frente à radicalidade do enfrentamento político se encontra impotente para frear às forças sociais que podem conduzir à dissolução da comunidade política.
d) Mas é na Teoria da Constituição onde Schmitt rastreará de maneira precisa de qual maneira os princípios liberais convivem nos Estados modernos junto com os princípios políticos, de maneira tal de funcionar como limite para o exercício da soberania e da vontade política. O liberalismo, que em sua luta contra o poder do monarca utilizou como único critério legítimo de constituição somente aquele que considera que o objeto desta é garantir a liberdade dos cidadãos frente ao poder do Estado, concebeu à Constituição como norma fundamental e soberana destinada a garantir os direitos dos indivíduos. Frente a esta absolutização da norma levada a cabo pelos liberais, Schmitt dirá que nenhuma norma se estabelece por si mesma e que a Constituição, entendida em um sentido positivo, não é mais que a decisão de uma comunidade que, através do titular do poder constituinte, seja o Rei ou o povo, configura a unidade política. Schmitt dará conta, então, do caráter dual das constituições modernas e da convivência nelas de dois elementos distintos: o elemento liberal e o elemento político: “A tendência do Estado burguês de Direito vai no sentido de deslocar o político, limitar em uma série de normatizações todas as manifestações da vida do Estado e transformar toda a atividade do Estado em competições, limitadas em princípio, rigorosamente circunscritas. Daí resulta já que o característico do Estado burguês de Direito só pode integrar uma parte da total constituição do Estado, enquanto que a outra parte contém a decisão positiva sobre a forma da existência política. As constituições dos atuais Estados burgueses estão, pois, compostas de dois elementos: de um lado, os princípios do Estado de Direito para a proteção da liberdade burguesa frente ao Estado; de outro, o elemento político do qual há que se deduzir a forma de governo propriamente dita”. 
Vejamos em primeiro lugar quais são os elementos típicos do Estado burguês de Direito para coloca-los em perspectiva com os elementos políticos que, seguindo Schmitt, possui toda comunidade que se possa chamar soberana. Resultado da metafísica liberal, os elementos próprios do Estado burguês de Direito funcionam sempre como um limite ao poder do Estado, pelo que, em situações excepcionais (quando o Estado se encontra em perigo) se apresentam como um obstáculo para sua conservação.
Os elementos do Estado burguês de Direito se correspondem com o ideal de Constituição do individualismo burguês e contém uma decisão no sentido da liberdade burguesa. Nesta forma peculiar de Estado, este aparece como servidor controlado da sociedade, isto é, se encontra submetido a, e identificado com, um sistema fechado de normas jurídicas que impõe limites a seu agir. Tem como objetivo não a glória do Estado, mas a proteção dos cidadãos contra o abuso do poder político. Deste objetivo Schmitt deduz dois princípios: o princípio de distribuição e o princípio de organização. O primeiro está representado nos direitos fundamentais e postula que a liberdade do indivíduo (anterior ao Estado) é ilimitada em princípio e que a faculdade do Estado para intervir nos assuntos daqueles é limitada em princípio; a função do Estado é garantir estes direitos absolutos (liberdade de religião, direito à propriedade privada, liberdade de opinião e de expressão, liberdade de indústria e de comércio, etc.) e proteger esta esfera de liberdade do indivíduo isolado frente a toda possível invasão política ou individual. O princípio de organização está representado na divisão de poderes; está destinado a assegurar a moderação de todos os órgãos do Estado e a produzir o equilíbrio; para evitar todo abuso ou concentração de poder em uma vontade unitária distingue os poderes estatais e encerra o poder do Estado em um sistema de normas, estabelecido para garantir as liberdades burguesas. 
O Estado burguês de Direito é também, essencialmente, um Estado legalista, isto é, um Estado que se baseia no império da lei, entendendo por ela um conceito específico que possibilite distingui-la de um mandato ou vontade quaisquer; “a burguesia, em luta por sua liberdade e seu Estado de Direito, adotou aqui um conceito de Lei que se apoia em uma velha tradição europeia e que passou ,desde a filosofia grega, à idade moderna, através da escolástica: Lei não é vontade de um ou de muitos homens, mas uma coisa geral-racional; não voluntas, mas ratio. Este conceito de lei, como norma jurídica reta de caráter geral, busca deslocar o conceito político de lei como vontade e mandato, deixando sem resposta a pergunta pela soberania e colocando em seu lugar a soberania da lei.
Estes elementos do Estado burguês de Direito, próprios da metafísica liberal, permitirão a Schmitt desenvolver sua crítica ao liberalismo. O liberalismo, afirma Schmitt, parte da ideia de que o exercício de todo poder estatal pode ser compreendido a partir das leis, com o que não cabe nenhuma conduta política de qualquer sujeito; mas são precisamente as decisões fundamentais as que escapam a todo controle normativo. Frente à situação excepcional, as normatizações típicas do Estado burguês de Direito atuam como limite para o exercício da soberania e para a conservação da comunidade política, já que, dirigidas à proteção dos direitos dos indivíduos, são sempre um limite ao exercício do poder estatal.
Schmitt sustenta que o liberalismo é incapaz de resolver os conflitos em momentos de ruptura da ordem normativa: pretendendo sempre adiar a decisão, o liberalismo obedece a uma racionalidade que não pode pensar senão que o equilíbrio é o que naturalmente deve surgir das relações sociais, pelo que quando a situação não obedece ao cálculo racionalista e à previsão que brinda o sistema normativo, o liberalismo não pode se enfrentar à irrupção do mal no mundo (apareça este sob a forma de crise extrema, revolução, ditadura injusta, etc.). Nos momentos de exceção aparece claramente a dualidade dos modernos Estados: privilegiando o elemento político, o poder constituinte se apresenta ali como anterior a toda norma e suspende a ordem jurídica para conservar a unidade política. Os dois princípios que Schmitt deduz do Estado burguês de Direito lhe permitem afirmar que, pensados para a proteção dos indivíduos (já que partem da liberdade ilimitada deles frente ao Estado e da necessidade de controlar o poder dividindo-o), não implicam qualquer forma política positiva, mas, sempre, um controle das atribuições do Estado pelo que quando a crise não pode ser resolvida pelo sistema normativo, são para a comunidade política um obstáculo para sua conservação. 
e) A crítica ao liberalismo em Legalidade e Legitimidade tomará a forma de crítica do positivismo jurídico. O positivismo jurídico considera que o conceito de legalidade é o único critério de legitimidade da ordem. Vejamos, então, qual é para Schmitt o perigo de pensar que a ordem se apoia, não em uma decisão, mas em um sistema fechado de normas jurídicas. Para chegar a isso é necessário acompanhar o jurista alemão na distinção que realiza entre quatro formas de Estado; três dessas formas (Estado governativo, Estado administrativo, Estado jurisdicional) concebem que por trás do funcionamento normal do Estado de Direito se encontra uma vontade dotada de existência real e inspirada no Direito como princípio de legitimidade; a quarta (o Estado legislativo parlamentário) se constitui como um sistema fechado de legalidade no qual é lei tudo que se cria segundo um procedimento formal com o concurso da representação popular. O Estado legislativo parlamentar (assim chama aqui Schmitt ao Estado de Direito próprio do liberalismo, que como vimos anteriormente foi nomeado como Estado burguês de Direito ou governo por discussão) proclama o império da lei, ou melhor dito, afirma que já não há poder soberano; está dominado por normas impessoais e pré-determinadas, contém uma separação entre a formulação da lei e sua aplicação, que evitaria toda dominação e mandato pessoal e funda sua obediência na legalidade geral de todo o sistema estatal. Esta forma de Estado está amparada em uma fé metafísica na figura do legislador que, como víamos antes na análise de Schmitt sobre o parlamentarismo, graças à discussão e o intercâmbio de opiniões produz leis que estão vinculadas estreitamente com a razão e a justiça. Sem esta fé o Estado legislativo parlamentar seria um absurdo E é por este lado que Schmitt criticará esta forma de Estado, já que uma vez que se abandona a crença na sabedoria do legislador ou na razoabilidade e justiça da lei surgida mediante a deliberação, o conceito de legalidade cai em um formalismo sem sentido.
Rastreando o desaparecimento do direito à resistência que pressupõe a capacidade de distinguir entre uma ordem justa e outra injusta, Schmitt apresenta os perigos que contém a pretensão que tem esta forma de Estado de que só mediante uma recontagem aritmética dos votos da maioria, isto é, sem nenhuma afirmação positiva no que concerne os valores, se podem estabelecer governos legítimos. O problema se apresenta quanto a homogeneidade do povo não existe, isto é, quando os poderes sociais indiretos apresentam a uma sociedade desgarrada e dividida em interesses contrapostos, que não dispostos a assumir as responsabilidades do político, podem inclusive habilitar a clausurar o próprio Estado legislativo parlamentar e conduzir a uma guerra civil ou a um governo que, com o monopólio da legalidade e com a força que as leis tem neste sistema, destrua a sociedade. A neutralidade perante os valores, própria da racionalidade liberal, e a pretensão de fundar uma ordem social em um conjunto de normas e procedimentos, pelo temor a que a vontade de uma autoridade seja a fonte da lei, conduz a que o partido que haja chegado por meios legais ao poder possa mediante o monopólio da legalidade, utilizar todos os meios legais e produzir todos os que necessite para anular qualquer tipo de oposição.
O positivismo jurídico, herdeiro do liberalismo, reduzindo o critério de legitimidade de um regime não a uma decisão sobre o justo ou o injusto, mas à legalidade do sistema normativo e à eficácia, se encontra impotente perante a irrupção de forças sociais (Schmitt certamente está pensando no comunismo, mas o raciocínio também é válido para o nazismo) que chegando por meios legais ao poder acabem destruindo toda ordem, utilizando a legalidade como arma de luta em uma guerra civil. 
Eu gostaria de concluir o ponto II com uma citação, um pouco extensa, de um texto que não pertence a este período, onde Schmitt dá conta da maneira pela qual as contradições próprias da metafísica liberal levaram o liberalismo a se encontrar impotente frente a forças anti-individualistas produzidas no amparo do Estado, o qual haviam concebido como um sistema fechado de normas. 
“O pensamento de Hobbes penetra e atua eficazmente no Estado legal positivista do século XIX, mas só se realiza de forma que poderíamos chamar de apócrifa. Os antigos adversários, os poderes ‘indiretos’ da Igreja e das organizações de interesses, voltam a entrar em cena transfigurados, como partidos políticos, sindicatos, associações sociais; em uma palavra, como ‘poderes da sociedade’. Através do Parlamento conseguiram se apoderar da legislação e do Estado legal e até puderam chegar a acreditar que haviam conseguido enganchar o Leviatã a sua carruagem. A coisa não foi difícil para eles graças a um sistema constitucional, cujo esquema consistia em um catálogo das liberdades individuais. A pretensa esfera privada livre, garantida dessa forma, foi subtraída ao Estado e entregue aos poderes ‘livres’ da sociedade. (...) O dualismo Estado e Sociedade se converteu em um pluralismo social, propício ao triunfo fácil dos poderes indiretos. ‘Indireto’ vale tanto como dizer ‘poder que se exercita sem risco próprio e – usando a exata frase de Jakob Burckhardt – por meio de poderes temporais que foram maltratados e humilhados’. É próprio de um poder indireto perturbar a plena coincidência entre mandato estatal e perigo político, poder e responsabilidade, proteção e obediência e amparado na irresponsabilidade de um governo indireto, mas não menos intenso, obter todas as vantagens sem assumir os perigos do poder político.
Este método tipicamente indireto lhes permitiu empregar sua ação em algo distinto da política, a saber: na religião, na cultura, na economia e nos assuntos particulares, sem deixar por isso de aproveitar para si todas as vantagens do Estado (...) As instituições e os conceitos do liberalismo sobre os quais o Estado legal positivista se assentava, se converteram em armas e posições fortes de poderes genuinamente antiliberais.
O pluralismo dos partidos levou a sua perfeição o método de destruição do Estado próprio do Estado liberal. O Leviatã, como mito do Estado ‘máquina magna’, se quebra por obra da distinção entre Estado e liberdade individual, em uma época na qual as organizações dessa liberdade individual não eram senão facas com as quais as forças anti-individualistas esquartejavam o Leviatã e repartiam entre si sua carne. Foi assim que o Deus mortal morreu”.
Reflexões Finais
Em Romantismo Político diz Schmitt que “o critério (político) consiste em se existe ou não a capacidade de diferenciar o justo e o injusto. Esta capacidade é o princípio de toda energia política, tanto da revolucionária, que se apoia no direito natural ou humano, como da conservadora, que se apoia no direito histórico”. O liberalismo se apresenta tanto a Donoso como a Schmitt como aquele movimento incapaz de decidir o que é a ordem justa, a segurança, e o bem em uma sociedade desestruturada pela crise. Este é o nervo de sua crítica: adiando a decisão que ponha fim à crise e pretendendo resolver o conflito político irredutível através da discussão ou da ordem normativa existente, o liberalismo abre a porta para as tendências que, negando a política e a autoridade como fundamentos da ordem, conduzem à dissolução da sociedade e à guerra civil.
A crítica de Donoso ao liberalismo e ao socialismo se fundamenta em uma visão cristológica da história, que o conduz a pensar que só um regime político que tire seus princípios do catolicismo poderá articular liberdade com autoridade, para assim estabelecer a ordem. Se bem Schmitt também considera que o catolicismo romano é, enquanto princípio formativo da ordem, superior ao liberalismo e ao socialismo (Schmitt, 1993), já que entende muito bem o que significa o conceito de representação, ou seja, a necessidade de que exista um representante pessoal que possa ligar os princípios transcendentes com a pura imanência, não podemos dizer que, para o jurista alemão, a ordem somente possa estar fundada nos princípios católicos, mas que este se apoia na decisão existencial que uma comunidade adota para configurar sua unidade política. E é que para Schmitt, diferentemente de Donoso que crê, como víamos anteriormente, que o perigo para as sociedades europeias está intrinsecamente ligado à divinização do homem própria da modernidade política, na modernidade coexistem duas tendências: a racionalidade despolitizante e neutralizadora, e a racionalidade do político. Inauguradas ambas na concepção do Estado hobbesiano como o Deus mortal que, por um lado, põe fim às guerras civis religiosas estabelecendo um espaço pacificado no qual a convivência está garantida graças à decisão do soberano e que, pelo outro, funciona como uma máquina somente encarregada de garantir a proteção em troca da obediência, se irão desenvolvendo ao longo da modernidade, uma sempre diante da esperança de conseguir a tão desejada paz perpétua e produzindo por isso o deslocamento do conflito político para outra esfera, a outra querendo assumir as responsabilidades do político e o caráter necessariamente conflitivo da natureza humana, delimitando a esfera do conflito sob linhas de amizade e inimizade. A soberania ocupará em Schmitt o lugar que para Donoso representam os princípios católicos; como o assinalou Jorge Dotti, “esse elemento de personalidade concreta (...) significa que a forma se faz presente na pessoa do soberano, daquele que pronuncia a decisão excepcional perante a crise também excepcional. Não há ordem política, e não há convivência informada politicamente sem a ação fundacional de quem, diante da inanidade da normatividade normal, responde criativamente à irrupção do mal no mundo (...). Quando se derrubem a previsibilidade do cálculo racionalista-utilitário (...) e as harmonias espontâneas, então uma pessoa – o ator político – condensa em si a função de representar o ponto da cruz ou da convergência da transcendência (constituindo-se assim a autoridade, que é ao mesmo tempo poder jurídico-político) e a imanência (o mundo, desestruturado pela crise e à espera do novo ordenamento). A soberania é cristológica, pois é forma encarnada”. 
Mas com isto não queremos dizer que a reflexão donosiana seja pré-moderna; ao contrário, segundo a interpretação de Schmitt e a nossa própria, a luta de Donoso contra o socialismo e contra o liberalismo pressupõe, necessariamente, a perda do monopólio, por parte da Igreja Católica, da interpretação da palavra divina. Donoso é moderno porque sua luta é uma luta pela interpretação do sentido da história contra a divinização do homem levada a cabo pelas “escolas racionalistas”.
As diversas neutralizações e despolitizações próprias da modernidade conduzem, tanto para  Schmitt, a uma monopolização do humano por parte de um dos contendentes que, em nome de princípios humanitários e pacifistas, podem chegar a produzir terrores inumanos contra o inimigo, tanto interno como externo que, considerado como inimigo absoluto e, portanto, hors l’humanité, não tem já nenhum direito. Frente a elas se levantam o jurista alemão e o Marquês de Valdegamas, o primeiro com seu intento de restituição do político, ligado ao conceito de soberania, o segundo com seu apelo aos princípios católicos.
O labor levado a cabo por  Carl Schmitt permite, a partir da evidenciação dos pressupostos metafísicos do liberalismo, elaborar uma crítica à modernidade política que não atenda só a uma racionalidade instrumental, mas que também se pergunte pelos valores que ela própria, às vezes sem sabe-lo professa. 

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