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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

As instituições contra as instituições

Escrevi recentemente sobre o “salvamento eterno da democracia”, isto é, sob o arbítrio sendo usado a torto e direito para supostamente proteger as instituições e preservar a democracia. São tempos em que as pessoas se sentem compelidas a adotar um pudor desmedido e impróprio ao tecer críticas às instituições, em especial ao STF, pois o menor “deslize” verbal basta para que sejam rotulados e responsabilizadas como golpistas ou mesmo terroristas. Mas se com o cidadão comum (aquele que paga os salários e benesses pornográficas dos nossos “salvadores”) o tom é esse, quando os próprios atores institucionais são os algozes das instituições a coisa é muito diferente. Não surpreende, afinal, somos quase todos cidadãos de segunda classe nesse país e a mão que segura o porrete contra a arraia-miúda é a mesma que acaricia o ego dos elementos que diuturnamente vilipendiam a democracia.

Comecemos com o vitimismo petista. Como sabemos, em 2016 Dilma foi institucionalmente defenestrada do Planalto em um processo que os petistas se seus sequazes se habituaram a chamar de golpe. O fato novo é, de volta ao poder, o PT tentar oficialmente reescrever a história e dar a um processo legítimo, legal e democrático, a pecha histórica de golpe. Com base em uma decisão do TRF-1 que arquivou uma ação de improbidade a bancada do partido apresentou um projeto que visa a anulação do impeachment de Dilma e a devolução simbólica de seu mandato. Antes de tudo, improbidade é uma coisa, irresponsabilidade fiscal é outra e se a existência da primeira não era competência do Congresso decidir, tão pouco a segunda seria de competência do TRF-1 ou qualquer outro tribunal.

A todos é lícito discordar das razões e do resultado do impeachment — a despeito das evidências inelutáveis de que o crime de responsabilidade ocorreu —, mas tratou-se de um processo de natureza jurídico política que seguiu um rito estabelecido pelo STF (incluindo o óbice inconstitucional de dar também ao Senado, além da Câmara, o poder de admissibilidade da abertura do processo) e que foi admitido e aprovado pelo Congresso, democraticamente eleito, isso sem falar dos milhões de brasileiros que em diferentes ocasiões foram às ruas pedir por aquele desfecho. Chamar o impeachment de golpe é, necessariamente, chamar a todos os atores envolvidos, tanto Congresso quanto STF, de golpistas. Não deveria, diante de tão grave ofensa às instituições nossos eternos vigilantes responder de prontidão e com aquela mesma “virilidade” com a qual lidam com cidadãos indefesos? Se a mera divulgação de supostas fake news que desabonariam a honra do STF e do TSE é o suficiente para banir personalidades da vida pública, não só suspendendo suas redes sociais mais proibindo mesmo a criação de outras, o que falta para que se movam contra estes baderneiros, incluindo o próprio presidente Lula, que vive a chamar o impeachment de golpe e, por consequência, o Congresso e o STF de golpistas? É que, como logo nos recorda Dias Toffoli, é forçoso concluir que não há como derivar qualquer caráter universalista do arbítrio e das narrativas espúrias. Também importam mais quem são os ofensores muito mais do que a natureza do ataque proferido contra as instituições. Aí da dona Maria ou do seu João, se sugerirem que não creem da isenção do TSE e STF. Mas se você é um ministro da própria suprema corte, tudo bem acusar vários atores institucionais, em três instâncias diferentes do poder Judiciário, além do próprio Ministério Público, de agir parcialmente e promover perseguição política. Novamente, ele não diz isso literalmente, mas é a consequência inelutável do que diz.

Numa canetada Toffoli anulou todas as provas do acordo de leniência da Odebrecht, um dos mais célebres no âmbito da Operação Lava Jato. O acordo havia sido firmado em 2016 e envolveu o MPF, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e a Procuradoria-Geral da Suíça. O valor de 3,5 bilhões de dólares pagos pela empreiteira foi considerado na época a negociação do gênero mais elevada da história. Nele, a empresa admitiu o pagamento de propina a autoridades, não só do Brasil, mas em um total de 12 países. Vale lembrar que a empresa mantinha o famoso “Setor de Operações Estruturadas”, um setor da empresa dedicado exclusivamente ao pagamento de propinas.

Mas Toffoli foi além e, como já está se tornando praxe em decisões da suprema corte, escreveu em tom panfletário que para além de “um dos maiores erros jurídicos da história do país” a prisão de Lula “tratou-se de uma armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado por meios aparentemente legais, mas com métodos e ações contra legem.” E na mesma toada: “Digo sem medo de errar, foi o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições que já se prenunciavam em ações e vozes desses agentes contra as instituições e ao próprio STF. Ovo esse chocado por autoridades que fizeram desvio de função, agindo em conluio para atingir instituições, autoridades, empresas e alvos específicos.

Acusa-se as autoridades envolvidas na condenação e prisão de Lula basicamente de golpistas ou de aspirantes a isso, e para que não reste dúvidas: “se usou de um cover-up de combate à corrupção, com o intuito de levar um líder político às grades, com parcialidade e, em conluio, forjando-se “provas”. Lula, é claro, desponta na narrativa do ministro como uma vítima, mesma posição ocupada por Dilma na narrativa petista. Quem seriam então as autoridades envolvidas em tal maquiavélico estratagema? Um exercício de lógica demonstra que Moro e Dallagnol são uma resposta muito insuficiente. A condenação de Lula foi mantida por “unanimidade” pela 8ª turma do Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4) e novamente confirmada em terceira instância, também por unanimidade, pela 5ª turma do STJ. É forçoso concluir que, aceitando-se a lógica do ministro, todos os atores envolvidos no processo, incluindo não só Moro, mas também o MPF e as respectivas turmas do TRF-4 e STJ foram artífices e partícipes da tal armação e foram eles mesmos aqueles que plantaram o “ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições”.

Qual dos “salvadores” acusará Toffoli de atacar ou descredibilizar as instituições? Ora, desde que poupe o STF e o TSE, que se imploda o resto das instituições, mesmo do próprio Judiciário, não é mesmo? Mas a lógica não nos permite isentar a nobre suprema corte de seu papel no “complô”, afinal, foi ou não foi ela que negou em 2018 habeas corpus preventivo a Lula, permitindo, portanto, sua prisão, o que também só foi possível por ter a mesma corte alterado seu entendimento em 2016 (que seria novamente alterado em 2019) e permitido o cumprimento da pena a partir da condenação em segunda instância? Pensaria Toffoli, que votou pela concessão do habeas corpus, que seus pares divergentes eram agentes do caos? Não pensando, onde está, na digressão do ministro a mea culpa em nome da egrégia casa que integra?

Ora, não sou dos que se esquivam de tecer críticas, quando bem apropriadas, à Operação Lava Jato. Ela cometeu abusos sim, abusos que, como já se poderia imaginar, acabaram sendo usados como motivo (ou desculpa) para não só descredibilizar a operação, mas para anular suas provas. Agora, duas coisas precisam ser esclarecidas: a) os equívocos cometidos não significam, como querem alguns, que a corrupção não ocorreu e que a investigação e condenação dos envolvidos não era necessária; b) a 13ª Vara Federal de Curitiba, como já demonstrado, não é a única personagem da operação e no elenco figura o próprio STF. Uma leitura atenta ao artigo 218 do Código de Processo Penal demonstra que a famosa condução coercitiva de Lula, por exemplo, realmente estava em desacordo com a lei. Contudo, apenas no final de 2017, quase quatro anos após o início da Lava Jato, mais de um ano e meio após a condução coercitiva de Lula e de o PT ter ingressado com uma ação no STF para barrar tais procedimentos, na forma como eram feitos, e já tendo sido realizadas cerca de 222 conduções coercitivas no âmbito da operação, Gilmar Mendes baniu esse tipo de procedimento para investigados (seguido depois pela maioria do plenário). Um detalhe é que a validade dos interrogatórios anteriores, obtidos por meio desse mecanismo, foi mantida.

É muito fácil esquecer os fatos quando se tenta reescrever a história e ser, literalmente, o salvador da pátria. Mas a memória do povo não é tão curta quanto supõe aqueles que acham que só “extremistas” que criticam suas ações. As contradições elencadas e muitos tantas outras do repertório atual, só podem fazer dirimir a confiança das pessoas nas instituições. E como seria de outro modo, quando assistimos ao ministro da Justiça, Flávio Dino, com toda naturalidade dizer que a Polícia Federal está a serviço da “causa” de Lula? Pior, diz isso em cerimônia de encerramento dos cursos de formação profissional da Polícia Federal, voltado diretamente para Lula com reverência e olhos de menina apaixonada? Não é de surpreender, já que Dino faz questão de rotineiramente dizer em suas redes sociais que “determinou” que a PF investigasse isso ou aquilo.

Pensávamos nós, a arraia miúda, que a PF era uma instituição de Estado e que pretender coloca-la a serviço de um governo, isto é, atribuir a ela uma atuação política seria algo escandaloso. Mas, que sabemos nós? Que direito nós temos de escrutinar nossos agentes públicos? Nosso estimado presidente acredita que, no que tange ao Olimpo togado, pelo menos, nenhum, e defende que os votos dos ministros do STF sejam secretos, com intenção que não outra que não possam ser criticados ou mesmo responsabilizados por suas decisões. A sugestão de Lula supostamente visaria fomentar o respeito as instituições e o bem-estar dos ministros (coitadinhos): “Do jeito que vai, daqui a pouco um ministro da Suprema Corte não pode mais sair na rua, não pode mais passear com a sua família, porque tem um cara que não gostou de uma decisão dele“. Por enquanto trata-se de uma ideia bizarra e heterodoxa, mas em linha com o que estamos vendo e vivendo, sequer nos parece surpreendente que alguém avente isso. Se por um lado a corte maior tem confesso ativismo e suplanta diuturnamente a função dos legisladores, na outra, pensam nossos salvadores, que devem estar imunes a todo ônus imposto a quem atua politicamente, incluindo o escrutínio.

Será que realmente pensam eles, em seus delírios megalomaníacos, que estão fomentando o respeito às instituições? Será que pensam que o povo é realmente tão estúpido a ponto de não enxergar suas contradições? Hoje, no Brasil, os maiores algozes das instituições são alguns de seus atores institucionais, quando não uma instituição inteira, a exemplo do STF, quando se põe a agir de forma corporativista. Em que pesem as narrativas apelativas, hoje não são baderneiros e depredadores os maiores inimigos da ordem institucional. Os baderneiros destruíram espaços físicos das instituições (o que, claro, é inadmissível), mas os “salvadores” destroem algo muito maior: o próprio espírito institucional e com ele a confiança do cidadão, confiança essa que, para ser legítima, não pode ser imposta no grito e na coerção, mas deve ser ganhada, merecida e mantida dia após dia.

Os espaços físicos podem ser reconstruídos, mas como reconstruir o espírito institucional e merecer a confiança popular? Não subestimo seus intelectos a ponto de acreditar que eles de fato não saibam nada disso. Sabem, apenas não se importam. Quando o membro mais ilustre dessa nova ordem pseudo democrática diz que aqueles que não gostam do STF são “extremistas”, fica explícita não só a indiferença, mas o fato de que não há pudor em tratar cidadãos, tão somente por suas opiniões e críticas, como inimigos. Bom, com essa rotulação elástica, devo dizer que podem me incluir dentro da dita “minoria extremista”. Não trabalhamos o que trabalhamos para sustentar o Estado brasileiro para ainda ter que aturar sermos chamadas de extremistas por termos sentimentos negativos diante de decisões que reputamos absurdas, daqueles cujos salários e benesses pagamos e que, se ainda há um resquício de Constituição nesse país, respondem a nós, e não o inverso.

Fonte:

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/08/29/pt-pede-anulacao-de-impeachment-e-devolucao-do-mandato-de-dilma-de-forma-simbolica.htm

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/alexandre-de-moraes-determina-bloqueio-de-perfis-de-influenciador-monark/

https://www.gazetadopovo.com.br/republica/acordo-da-odebrecht-e-o-maior-do-mundo-e-tem-provas-de-corrupcao-em-12-paises/

https://www.poder360.com.br/justica/prisao-de-lula-foi-armacao-diz-toffoli-ao-anular-acordo-da-odebrecht/

https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=13418

https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/04/23/maioria-da-5a-turma-do-stj-mantem-condenacao-mas-vota-pela-reducao-da-pena-de-lula.ghtml

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43639714[

https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10661355/artigo-218-do-decreto-lei-n-3689-de-03-de-outubro-de-1941

https://g1.globo.com/politica/noticia/gilmar-mendes-profere-decisao-em-que-considera-a-conducao-coercitiva-inconstitucional.ghtml

https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/gilmar-deve-se-posicionar-contra-conducao-coercitiva-para-investigados.html

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2016/04/12/interna_politica,752145/pt-questiona-no-supremo-legalidade-da-conducao-coercitiva.shtml

https://www.gazetadopovo.com.br/republica/flavio-dino-diz-que-policia-federal-esta-a-servico-da-causa-de-lula-e-do-brasil/

https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/lula-defende-voto-secreto-de-ministros-do-stf-apos-criticas-da-esquerda-a-zanin,0be22a043a0006434175a206d65a5b4brnmji66j.html

https://www.metropoles.com/colunas/paulo-cappelli/minoria-stf-rebate-moraes

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