Bunker da Cultura Web Radio

Free Shoutcast HostingRadio Stream Hosting

sábado, 16 de setembro de 2023

O combate à liberdade de expressão no Brasil

 

No ano de 2023, o cenário nacional tem sido marcado por um esforço crescente dos agentes estatais em direção a tentar, de diversas formas, limitar a liberdade de expressão. Tudo começou com indicativos de um verdadeiro vilipêndio à Constituição Federal por parte de uma entidade que é definida pela própria Carta Magna como responsável por ser sua guardiã.



Houve um tempo em que professores universitários, como aqueles das cadeiras de Direito Constitucional, de Direito Penal e de Direito Processual Penal, denunciavam os desmandos causados ao arrepio da Constituição Federal por diversos agentes estatais, políticos, legisladores e juristas, apontando-os como autoritários ou antidemocráticos.

É significativa a indignação, e a saudade, por parte de muitos de nós brasileiros, de um período em que a violação dos Direitos Fundamentais não passava despercebida. Há uma sensação de abandono em relação àqueles que teciam críticas fundamentadas àqueles órgãos e aosrepresentantes estatais que fizessem uso de uma interpretação demasiadamente alargada ou de uma ponderação forçada entre princípios constitucionais visando atingir interesses escusos.

A crítica feroz aparecia justamente pelos métodos de “interpretação” utilizados o serem atingindo, de forma contraditória, a essência daqueles próprios princípios que se afirmava implementar. Ninguém, afinal, considera algo de uma certa excentricidade tentar preservar a democracia a partir da limitação estatal à liberdade de expressão dos cidadãos aos quais este existe para servir?

São tempos sombrios. Existem, há muito, mecanismos penais e processuais penais suficientes para combater crimes de difamação, injúria ou calúnia, ou crimes contra a honra em geral. Não se trata de combater atentados contra a honra de indivíduos, trata-se de punir a mentira, pura e simplesmente. Há um potencial danoso considerável na empreitada em questão. É trabalhoso encontrar algo mais subjetivo, ou sujeito a manobras ocultas, do que um controle estatal daquilo que poderia vir a ser de caráter mentiroso.

A interpretação da Constituição Federal, dos Direitos e das Garantias Fundamentais, hoje, varia conforme o grupo político que está no poder, assim como as leis são interpretadas conforme quem está sendo submetido a julgamento. Há uma clara fuga, do objeto levado à análise, para o sujeito sob julgamento. O pretenso combate às “fake news” (notícias “falsas”) é mais um exemplo de uma conhecida tática utilizada por inúmeros regimes ditatoriais no decorrer da história.

A sociedade tem regredido, atingindo o momento em que ouvir o outro não é mais prioridade. O pretexto é o de combater o “discurso de ódio”, o decombater as “fake news”. Boa parte da sociedade e dos pretensos intelectuais fecham os olhos, no entanto, para quem costuma ser aquele que é acusado de proferir o discurso de ódio, para quem costuma ser o acusado de propagar “fake news”.Os mesmos agentes esquecem-se de verificar se determinado grupo político convenientemente não se encontra isento de acusações semelhantes.

A disposição de atacar criticamente e de forma fundamentada tendências autoritárias, por parte de determinados “intelectuais”, parece ser reduzidaquando tais tendências provêm de grupos políticos de seu interesse. O aspecto subjetivo, o agente, subitamente passa a interessar mais do que o objetivo, suas ações. Não é só: Quando o grupo político em questão assume o poder, parece que também aqueles que atuam ao seu redor, no seu interesse, ou prejudicando o grupo político contrário, ganham uma carta branca para violar o diploma constitucional. É a defesa “intelectual” da violação da democracia “em prol da democracia”.

Eis que pergunto: Até quando “os fins justificam os meios”? Um jogo de palavras que se encaixa muito bem na temática em questão. Afinal, é equivocadamente atribuído à obra prima de Nicolau Maquiavel, “O príncipe”. Mais um exemplo das danosas “fake news”. Talvez devamos procurar o responsável pelo equívoco e excluí-lo das redes sociais.

É inadmissível que um sujeito ofusque a verdade, mais um mentiroso em meio à sociedade. Aparentemente, não há como permitir que o cidadão brasileiro, ao que indicam as pretensas medidas, um autômato desprovido de senso crítico,leia o conteúdo em questão e o interprete de forma equivocada. É impressionante como muitos indivíduos têm a tendência a ver a verdade como algo absoluto e de fácil acesso, não como algo relativo, ou, muito menos, como algo que pode ser manipulado visando a preservação de interesses escusos.

A imagem de uma figura central infalível, quase sobre-humana, bondosa, desprovida de interesses materiais, escusos, sem nenhum interesse contrário ao bem-estar do “povo”, da “sociedade”, ainda se faz muito presente entre as massas. Não teria sido justamente esta a visão de muitos alemães durante a Alemanha de Hitler, de muitos Soviéticos durante parte da União Soviética de Lenin e de Stalin, de boa parte da Cuba de Fidel Castro? Sim, a visão endeusada, de infalibilidade e bondade ilimitada por parte de determinadas figuras políticas. Uma visão, no mínimo, perigosa.

Dar o poder de separar a verdade da mentira não seria uma dádiva pertencente apenas aos deuses? Sim, no entanto, na terra, no Brasil, vivem apenas humanos, perfeitos apenas na universalidade de sua imperfeição. Às vezes, esquecemos disto. Em algumas ocasiões, como em Cuba, na União Soviética e na Alemanha Nazista, com efeitos desastrosos.

No século XV, um padre dominicano e pregador de Florença, Girolamo Savonarola, promoveu aquelas que ficaram conhecidas como “fogueiras das vaidades”, termo que, desde então, não sem razão,passou a ser usado em sentido pejorativo. O mencionado padre liderou uma queima maciça, por parte de seus seguidores, tanto de livros quanto de obras de arte, e de tudo aquilo que representasse o sacrilégio em que consistiriam itens tidos como luxuosos. Entre tais aspectos, destaque-se o próprio “luxo” de diversos e selecionados livros, o “luxo” do acesso ao conhecimento. Há algo aparentemente pecaminoso em itens que permitam que o povo escape de ser transformado em massa de manobra.

Hoje, o que se promove, em discursos políticos, projetos de lei e decisões judiciais no mínimo duvidosas, mais uma vez, é a criação de várias fogueiras da vaidade. As chamas, hoje, começam a atingir a democracia e a liberdade de expressão, sob os aplausos dos pretensos “intelectuais”. A polarização política atingiu um ponto em que até alguns abolicionistas penais, defensores do Direito Penal Mínimo e constitucionalistas rigorosos defendem a restrição à liberdade de expressão. O cenário é de cegueira deliberada. Em alguns casos, de má-fé, pautada por claros interesses políticos. A hipocrisia é comparável a um caso hipotético de feministas que hoje em dia defendessem a antiga queima das bruxas de Salém.

Ora, atualmente, quem são as bruxas? Quem virá a ser queimado? A cegueira deliberada atinge, no momento, apenas interesses de um grupo político contrário àquele que ocupa o coração dos pretensos “Intelectuais”. Esquecem-se que a liberdade de expressão é um direito fundamental de caráter amplo, e inclui a liberdade dos próprios. Pelo menos, por enquanto. Afinal, a titularidade de ditar o que pode ou não ser expressado vem se tornando cada vez mais estatal. Até quando os próprios “intelectuais” serão imunes às possíveis arbitrariedades estatais?

É preciso que os pretensos “intelectuais”, os“especialistas”, se recordem e entendam, de uma vez por todas, que Galileu Galilei e Giordano Bruno não foram perseguidos por expressarem opiniões falsas. Eram falsas apenas para aqueles que tinham o poder de escolher a verdade mais conveniente, Eram falsas apenas para aqueles que detinham o poder de assim defini-las. As “fakenews” eram punidas desde aquele período tão distante. Não se pode esquecer, assim, que nossa civilização já sofreu muitos efeitos do combate às “fake news”. Giordano Bruno, as bruxas de Salém, e tantos outros acusados de heresia terminaram em cinzas.

Não é difícil, usando inúmeros exemplos históricos, demonstrar em quantas ocasiões uma política voltada à restrição da liberdade de expressão levou a regimes autoritários e verdadeiramente ditatoriais. Também não é difícil pesquisar no “google” sobre Holodomor ou sobre a carnificina das perseguições da Santa Inquisição. É possível, ainda, partir para uma abordagem literária e, ao mesmo tempo, metafórica. Cabe falar sobre hipocrisia, e, para tanto, usemos um conto de Edgar Allan Poe.

Em 1842, Edgar Allan Poe, o autor de “O Corvo”, publicou o conto denominado “O Baile da Morte Vermelha”. Começa apresentando a peste conhecida como “a morte vermelha”, que devastava o país, sendo que nunca “nenhuma praga jamais fora tão fatal ou tétrica”, “provocava dores agudas, torturas repentinas e, por fim, uma profusa hemorragia”, sendo que, durando apenas meia hora para dar início aos sintomas e matar os contaminados, era vermelha como o sangue que fazia jorrar.

O protagonista da obra, o “Príncipe Próspero”, observando a desgraça que recaía sobre os cidadãos ao seu entorno, menosprezando seus efeitos, construiu uma fortaleza com muros altos e fortificados para se isolar junto com parte da nobreza, com seus favoritos, escolhidos à dedo, deixando o restante da população para sofrer com os horrores da peste dos lados de fora de suas altas muralhas fortificadas. Após aguardar a entrada dos seus cortesãos, trancou os cadeados do castelo, deixando que a população se virasse com a peste.

Em sua fortaleza, o príncipe próspero realizava diversas celebrações, vivendo em estado de fartura junto a seus protegidos, com bailarinos, músicos, e gostos considerados excêntricos, tudo regado à “Beleza e vinho”. Toda a fartura ocorria enquanto a morte vermelha atingia a população que se encontrava dos lados de fora de sua construção fortificada, com altas taxas de transmissibilidade. Não havia esforço algum para tentar buscar uma cura para a peste. Havia apenas a sensação de segurança, de privilégio, e uma vontade voltada à celebração constante.

Em uma determinada ocasião, no ápice de seu contentamento, o Príncipe resolve convidar os seus mil membros da nobreza para participarem de um luxuoso baile de máscaras, com cômodos de diversas cores, além de tudo o que sua alta posição social e sua excentricidade pudessem lhe garantir. Houve, no entanto, um participante inesperado, que se vestia de forma bastante excêntrica até mesmo para o curioso príncipe. Era uma figura de porte esquelético, trajando “da cabeça aos pés as vestes da morte”, com um figurino que terminava em uma máscara de trejeitos cadavéricos.

Para enorme surpresa do príncipe, ao ordenar, indignado com a ousadia do suposto convidado, que o estranho indivíduo retirasse sua máscara, constatou, com horror, que o visitante era a própria morte vermelha, que finalmente se infiltrara em suailusória fortaleza. A morte vermelha havia atingido toda a população alijada dos muros construídos pelo príncipe, para, após seis meses, levar a vida do príncipe próspero e de todos os seus convidados, que, por muito tempo, imaginaram-se inatingíveis pela peste.

O conto em questão tem o potencial de trazer muitas reflexões e questionamentos interessantes. Apenas um desses bons questionamentos, fazendo jus à liberdade, pelo menos temporária, de poder se expressar de forma metafórica, é aquele referente à quando os “intelectuais” se levantarão contra a peste que circunda seus muros.Continuarão em silêncio, isolados em suas fortalezas, sentindo-se inatingíveis, esperando a chegada da morte vermelha? Fica a lição: não endeusem a si ou a outros, a liberdade é preciosa. Na omissão, na inércia, o autoritarismo, a arbitrariedade, a peste, sempre chega para todos.

*André Polido

Nenhum comentário:

Postar um comentário