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quinta-feira, 12 de abril de 2012

NAÇÃO E IMPÉRIO

Por Alain de Benoist


Quando se examina a história política européia, se constata em seguida que a Europa tem sido cenário da elaboração, desenvolvimento, e confrontação de dois grandes modelos de politie, da unidade política: a nação, precedida e em certa medida preparada pelo Estado real, e o Império. Apreender o que os distingue, e particularmente ver quais são os traços específicos da idéia de Império, pode contribuir e proporcionar luz sobre seu presente.

Recordemos antes de tudo alguns dados. Rômulo Augusto, último imperador do Ocidente latino, foi deposto em 475. Somente subsistiu então o império do Oriente. Sem embargo, parece que depois do desmembramento do império do Ocidente nasceu uma nova consciência unitária. Desde o ano 795, o papa León III data suas bulas não segundo o reinado do imperador de Constantinopla, mas segundo o de Carlos, rei dos francos e patrício dos romanos. Cinco anos mais tarde, no dia de Natal do ano 800, León III impõe em Roma a coroa imperial sobre os temlos de Carlos Magno. É a primeira renovação do Império que obedece à teoria da translação (translatio imperii), segundo a qual o império que foi ressuscitado em Carlos Magno é continuação do império romano, pondo assim término às especulações teológicas inspiradas na profecia de Daniel, que deixava prever o fim do mundo depois do quatro império, quer dizer, depois do fim do império romano, que havia retomado os de Babilônia, Pérsia, e Alexandre.

A renovatio do Império rompia também com a idéia augustiniana de que existe uma oposição radical entre civitas terrena e civitas Dei, idéia que pôde fazer pensar que um império cristão não era mais que uma quimera. De fato, León III inaugura uma estratégia nova: a de um império cristão onde o imperador seria o defensor da Cidade de Deus. O imperador recebe assim seus poderes do Papa, e reproduz em ordem temporal os poderes espirituais deste. Como é sabido, toda a querela das investidas procede desta formulação equívoca, que faz do imperador um sujeito do papado na ordem espiritual, mas que ao mesmo tempo se situa à cabeça de uma hierarquia temporal cujo caráter sagrado não tardará em afirmar-se. A continuação, Tomár de Aquino, em referência a Aristóteles, tentará também reconciliar cidade dos homens e cidade de Deus associando populus e natio em uma síntese que tem o sentido de povo submetido à autoridade de um mesmo Estado.

O Tratado de Verdún (843) consagrou a divisão do império dos francos entre os três netos de Carlos Magno: Lotário I, Luís o germânico, e Carlos o Calvo; por sua vez, o rei da Saxônia Henrique I será coroado imperador em 919. O império se faz mais netamente germânico. Depois da luxação dp poder carolíngio, será de novo restaurado em projeto do rei Otón I de Germânica, coroado em Roma em 2 de Fevereiro de 962, e se reconstitui no centro da Europa com os sálicas e tônicos. Seu apogeu chegará na segunda metade do século XII, com a dinastia dos Stauffen (Frederico Barbarossa, Henrique IV), época na que abarca os reinos de Borgonha, Itália, e Germânia. O Império será a principal potência política européia até meados do século XIII, quando se transforma oficialmente em Sacrum Romanum Imperium; a partir de 1441 se acrescentará a “nacionalidade germânica”. Mas, evidentemente, não é este o lugar de edoçar, nem seque a grandes golpes, a história do Sacro-Império Romano Germânico. Limitamo-nos a observar que ao longo de toda sua história será uma entidade mista que associa três compoentes: a referência antiga, a referência cristã, e o germanicismo.

Nos fatos, a idéia imperial começa a desagregar-se no Renascimento, com a aparição dos primeiros Estados “nacionais”. É verdade que em 1525, sob Carlos V (I de Espanha), a vitória de Paviía, onde as forças imperiais vencem as tropas de Francisco I, parecem inverter o curso dos acontecimentos. Na Alemanha, a captura do Rei da França vai ser percebida como um acontecimento da maior magnitude (“König Franz von Frankeland, fiel in die Frundsberger Hand...”). E provocará um breve renascimento do gibelinismo na Itália, onde o Orlando furioso, composto por Ariosto na Corte de Florença, relançou já a moda das novelas do século XII, consagradas à vida de Carlos Magno. Dois anos mais tarde, os imperialistas tomam Roma e prendem o papa Clemente VII. Mas seguindo o destino de Carlos V o título imperial não recairá em seu filho Felipe, e o Império voltará a se reduzir a um assunto local[1]. A partir da paz de Wesfalia (1648), foi deixando de ser percebido como uma dignidade (Kaiserwürde) e começa a cobrar o sentido de uma simples confederação de Estados territoriais. O processo de decadência se prolongará todavia durante dois séculos e meio. Em 6 de Abril de 1806, Napoleão culmina a Revolução destruindo os restos do Império. Francisco II se demite do seu título de imperador romano germânico. O Sacro Império termina.

Do conceito de Império foi feito usos tão contraditórios que, a primeira vista, não resulta fácil apreendê-lo. Littré, em seu dicionário, se contenta com uma definição tautológica: um império – escreve – é “um Estado governado por um imperador”. Se nos concederá que resulta um pouco resumido. Sobretudo, cabe lembrar que o Império, como a cidade ou a nação, é uma forma de unidade política, e não uma forma de governo, como a monarquia ou a república. Isto significa que o Império é, a priori, compatível com diferentes formas de governo. Assim, o artigo 1 da Constituição de Weimar afirmava que “o Reich alemão é uma república” – e em 1973, a Corte constitucional de Karlsruhe não foi duvidada em recordar que, ainda hoje “o Reich alemão é um sujeito de direito internacional”.

A melhor forma de compreender a realidade substancial da noção de Império é, sem dúvida, compará-la com a noção de nação ou de Estado-Nação; este último representa a desembocadura de um processo de formação da nacionalidade cuja forma exemplar é, de certa forma, o reino da França. Em efeito, como escreve Jean Beachler, “podemos considerar a nação como uma dos ramos de uma alternativa onde o outro ramo é o Império”[2].

Tal “ramo”, em todo caso, aparecerá muito tarde. Em sua origem, o sentido da palavra “nação” é puramente religioso: desde Tertuliano, no século II, o plural latino nationes se emprega para designar aos “gentis” (goym), e especialmente aos pagãos. Na língua francesa, as primeiras aparições da palavra “nação”, sob as formas “naciuns” ou “nascions” (princípios do século XII), têm antes de tudo uma ressonância etnocultural ao mesmo tempo que continuam transportando a idéia bíblica de uma divisão original da humanidade. Nos séculos XIII e XIV se aplica, por exemplo, às “nações” dos estudantes estramgeiros agrupados nas universidades em função de sua língua ou de sua origem: assim, em Sorbona, falaremos “honorável nação de França”, a “fiel nação de Picardia”, a “venerável nação de Normandia” e a “constante nação de Germânia”, antiga quatripartição que mais tarde, no século XVII, todavia permitirá Mazarino fundar em Paris o “Colégio das Quatro Nações”.

Por outro lado, desde Lavisse e Michelet até Pierre Nora, Colette Beaune ou Bernard Guenée, passando por Mallet e Isaac e todos os que não hesitam em remontar a “nação francesa” ao fim da Idade Média [3], a reconstrução histórica da nação francesa se tem visto viciada por uma perspectiva quasi-finalista que foi feito da nação, identificada com o Estado-nação moderno, uma sorte de necessidade inerente à história, em gérmen desde a noite dos tempos e que se haveria atualizado progressivamente ao fio dos séculos. Essa imagem de uma “pátria virtual anterior à pátria real”[4] e cuja essência precederia a sua existência, imagem herdada da “religião nacional” popularizada pelos historiadores do século XIX, contém um erro de perspectiva que deriva de uma série de anacronismos. Ao dar a impressão de uma continuidade perfeita entre a Gália e a França carolíngea, e entre esta e a França moderna, tal visão confunse sistematicamente “nacional” e “real”, termos que não guardam equivalência alguma, e formação da nação (o “para si” histórico no sentido de Fougeyrollas) e formação da nacionalidade (o “em si” histórico). Mas, em realidade, a atual França não pode remontar-se a uma hipotética “nação galisa”, porque a Gália foi uma invenção romana à que não correspondia nenhum sentimento particular entre os galeses; tampouco “França” começou com o bautismo de Clodoveo, até 496, do mesmo modo que Carlos Martel não “salvou a França” dos árabes em 732, pela simples razão de que França não existia nessa época.

Em sua origem, o regnum Francorum é por sua vez uno e divisível: patrimônio familiar, propriedade de uma linhagem, obedece ao costume francez de repartição entre os herdeiros. Assim, o dualismo original da França deu lugar, nos séculos VI e VII, a dois reinos: ao oeste Neustria (entre os rios Somme e Loira), e ao leste Austrasia. Graças ao prestígio de Dagoberto, Neustria se impôs inicialmente como o verdadeiro país dos francos. Sem embargo, a chegada dos popínidas (os futuros carolíngios), no século VIII, consagra a ascensão da Austrasia. O filho de Carlos Martel, Pepino o Breve, que havia usurpado o poderos dos merov[ingios graças ao apoio do Papa (haverá de pagar tal apoio com duas expedições contra os lombardos), fez da capital da Austrasia renana, Aquisgran, a sede de um novo regnum. Sob o reinado de seu filho, Carlomagno, desenrola-se uma nova França entre os rios Sena e Escalda, flanqueada por uma Neustria limitada pelo Sena e Loira e Austrasia cruzada pelo Reno. O tratado de Verdún (843) supõe a repartição do império carolíngio: nascem Germânia, Lorena, as Borgonhas Alta e Baixa, e Itália, que prolongará o Império até 924; o país dos francos se redefine e se põe dividido em uma França ocidental, uma França média, e uma França oriental. Mas a segunda “França” logo se descomporá; sua parte norte, a Lotaringia, será absorvida pelo reino oriental. Quanto a este último, perderá rapidamente seu nome original: desde a segunda metade do século XI já não se falará de França oriental, mas de regnum Teutonicum. A palavra França, no sentido da soberania herdada dos grandes reis francos, somente subsistirá no oeste. Assim pois, nos séculos IX e X, enquanto o espaço compreendido entre a Loira e Escalda se converte em área de expansão territorial dos Robertinos, marqueses e Neustria e duques dos Francos (os futuros Capetos), o termo rança se extende para designar a antiga França ocidental, nascida da repartição do regnum Francorum, se bem mantendo deliberadamente a confusão com a “Francie” primitiva, quer dizer, o território inicialmente ocupado pelo conjunto da etnia franca. “Desde esse momento – escreve Suzanne Citron - , quem vai reinar tanto no leste (os otônicos) como no oeste (os Roberttinos-Capetos) serão soberanos não carolíngios. Isso facilitará a manipulação do passado pelos historiadores devotos destes últimos, que poderão apresentar aos usurpadores capetinos como descendentes de Carlomagno, jogar com o duplo sentido da palavra Francia, e seu rei poderá apropriar-se da memória etimológica dos francos, que neste somente subsistirá em “Franconia”[5]. Todavia no século XII, sem embargi, a palavra latina Francia rara vez designará ao conjunto do reino, mais comumente chamado Francia tota. Se convertirá em “França”, nas mesma época, no manuscrito de Oxford da canção de Roldán, redatada na língua de oïl franco-normanda.

Em princípios do século X, Carlos III o Simples adota o título de rex Francorum, que ostentarão também seus sucessores. não será até 1254, sob São Luis, quando o rex Francorum se converter em rex Framciae. Na mesma época começa a constituir-se o Estado em torno ao poder Capetino. O resultado decisivo não é a batalha de Bouvinesm senão, um ano antes (1213), a batalha de Muret, onde cai derrotado o conde Tolosa, aliado do rei de Aragão contra os francos, derrota que conduz â anexação dos países de língua oc e a persecussão contra os cátaros. Contudo, o título de “rey de França” não deve nos enganar: não sanciona exatamente uma autoridade sobre um território determinado, mas que melhor representa um título de valor moral. Em efeito, o único vínculo entre as diferentes partes do reino é o senhorio que o rei, a diversos títulos, possui sobre cada um deles. Todavia a princípios do século XIV “o rei de França não pode fazer idéia exata da extensão e os limites de seu território e de seu reino, inextricável confusão de terras e de direitos”[6]. Tampouco há um exército francês, mas um “exército do rei”. O catecismo político destinado ao duque de Borgonha o diz muito claramente: “A nação não toma corpo na França, reside inteiramente na pessoa do rei”. De modo que a “nação-monarquia”, que assimila o poder do Estado ao reino, e que por então somente tem sentido para as elites, todavia não tem adquirido seu significado moderno. Ernst Kantorowicz a analisará muito corretamente como corpus mysticus cujus caput: é inseparável da pessoa do rei.

Tal igual que nesta época não pode se falar de nação, tampouco pode se falar de “patriotismo” no sentido moderno do termo. Sob o Antigo Régimen, a “pátria” remete exclusivamente à região de origem imediato, assim como aos sentimentos de vinculação e de sacrifício que ao laço social implica: a idéia da pátria vem associada à de entrega ao bem comum no seio da comunidade de bairro. “O que nunca existiu até uma época recente – precisa Sione Weil – é um objeto cristalizado oferecido de maneira permanente ao sentimento patriótico. O patriotismo era difuso, errante, e se ampliava ou se reduzia segundo as afinidades e as ameaças. Era uma mescla de lealdades diversas: até nobres, senhores, ou reis; até às cidades. O tudo formava algo muito confuso, mas também muito humano (...) Na Idade Média, a fidelidade era para o senhor, ou para a cidade, ou para os dois, e por cima, a meios territoriais que não eram muito distintos. O sentimento que hoje chamamos patriotismo existia, sem dúvida, e as vezes em um grau muito inteso; mas seu objeto não estava territorialmente definido. O sentimento cobria superfícies de tera variáveis, segundo as circunstâncias”[7]. Somente com a espacialização da soberania deixará a noção de pátria de evocar o terreno natal (Heimatland) para se referir a uma noção de pertência abstrata politicamente compartilhada (Vaterland)[8].

De fato, a idéia de nação não se constitui plenamente até o século XVIII, e singularmente sob a Revolução. Em origem, a idéia de nação remete a uma concepção da soberania que se opõe à idéia da monarquia. Neste despertar da filosofia das Luzes, em efeito, os debates sobre a soberania revelam uma concepção nova da nação de onde esta designa a “maioria dos indivíduos que compõem uma sociedade” (d’Holbach), por oposição ao poder do que goza o rei[9]. Tal concepção reune a quem pensam política e filosoficamente o mesmo, a saber, que quem deve encarnar a unidade política do país já não é o rei, senão “a nação”. A nação passa assim a perceber-se como o espaço abstrato onde o povo povo conceber e exercer seus direitos, quer dizer, onde os indivíduos, vinculados ao conjunto de fotma imediata, a margem da mediação dos corpos intermediários, podem mudar-se em cidadãos. Inicialmente, a nação se identifica com o povo soberano na medida em que este não delega no rei, no melhor dos casos, mais que o poder para aplicar a lei que emana da vontade geral; depois se identificará com as populações que reconhecem a autoridade de um mesmo Estado que povoam o memso território e que se consideram membros da mesma unidade política; por último, a nação se identificará com essa mesma unidade política. E assim os “patriotas” são, antes de tudo, os que dirigem a nação como entidade abstrata os deveres dos que se sentem emancipados com respeito à autoridade real [10]: na véspera dos Estados Gerais, se chamará indiferentemente “partido nacional” ou “partido patriótico” o conjunto das facções que se opõem à monarquia absoluta. Esta é, por outro lado, a razão de que a tradição legitimista e contrarrevolucionária, que exalta o princípio monárquico e aristocrático, se guarda muito de valorizar a nação, ao menos em origem: ao contrário de um Charles Maurras, os tradicionalistas são perfeitamente conscientes de que a nação é o pricípio que se foi utilizado para suprimir a monarquia[11]. “desde que teve um sentimento de nação – observa Ernest Roussel – teve um poder moral superior ao poder material da realeza”[12]. De fato, a Revolução ratifica a “pátria”, quer dizer, a nação. O artigo 3 da declaração dos Direitos de 1789 proclama expressamente: “ O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação”. Em Fevereiro de 1789, em O que é o Terceiro Estado? o abate Siéyès chega inclusive a fazer da nação um absoluto meta-histórico: “A nação existe antes de tudo, está na origem de tudo”. O ato de nascimento da nação, poderiamos dizer, reside inteiramente no grito das tropas francesas no bombardeio de Valmy: “Vive la nation!”. Um grito que queria dizer ao mesmo tempo “Abaixo ao rei” e “Morte ao inimigo”. Bertrand de Jouvenel chegará a escrever: “Restrospectivamente, a marcha da Revolução parece ter tido por objeto a fundação do culto da nação”[13].

O que distingue fundamentalmente o Império da Nação? Antes de tudo, o fato de que o Império não é somente um território, senão também, e incluso essencialmente, um princípio ou uma idéia. Em efeito, aqui a ordem política e jurídica está determinada não por meros fatores materiais ou pela possessão de uma vasta extensão geográfica; mas por uma idéia de natureza espiritual. Esta idéia vai mais além da simples legitimidade de direito divino que reivindica a antiga monarquia, sobretudo na época dos reis taumaturgos. Seria, pois, um grave erro imaginar que o Império difere da nação ou do reino pelo tamanho; que é “uma nação mais grande que as outras”. Certamente, um império, por definição, cobre sempre uma ampla superfície. Mas o essencial não está aí. O essencial está em que o imperador obtém seu poder porque encarna um princípio que está mais além da simples possessão. Como dominus mundi, o imperador é soberano de príncipes e reis, quer dizer, que reina sobre soberanos, não sobre territórios, e representa uma potência que transcende as comunidades federadas cuja direção assume. Dante, em De Monarchia, o representa sob perfis comparáveis aos de Chakravarti, o monarca universal da Índia antiga, cuja função é fazer reinar a paz (sarvabhaumika) com sua simples presença[14]. O Império, neste sentido, não pode se definir como um Estado clássico, pois o princípio que fundamenta o poder do imperador não procede de uma divisão territorial. Como escreve Julius Evola, o imperador, em tanto que “cumbre de la ordinatio ad unum, es aliquod unum quod non est pars (Dante), e representa um poder que transcende a comunidade que dirige, do mesmo modo que o Império não deve ser confundido com algum dos reinos e nações que o compõem, pois é algo qualitativamente diferente, anterior e superior, em seu princípio, a cada um deles” ([15]. “A alta Idade Média - acrescenta Otto de Habsburgo – teve sempre consciência desta distinção. Os imperadores (os sálicos, mas também os Hohenstaufen) não eram os únicos que reconheciam e proclamavam esta superioridade da dignidade imperial, assim como seu caráter não territorial”[16].

Evola recorda igualmente que “a antiga noção romana do Imperium, mais que expressar um sistema de hegemonia territorial supranacional, designa a pura potência do mando, a força quase mística da auctoritas”. Precisamente na Idade Média é corrente a distinção entre a noção de auctoritas, característica do principado clássico, que é uma noção de superioridade moral e espiritual, e a de potestas, simples poder político público que se exerce por meios legais [17]. Tanto no império medieval como no Sacro-Império esta distinção permitirá diferenciar a autoridade e a função imperiais do poder que o imperador ostenta como soberano de um povo particular. Por xemplo, Carlomagno é , por um lado, imperador, e por outra, rei dos lombardos e dos francos. Assim, a adesão ao imperador não é submissão e um povo ou a um país particular. Do mesmo modo, no império austro-húngaro a fidelidade à dinastia dos Habsburgo constitui “o vínculo fundamental entre os povos e cumpre a função do patriotismo” (Jean Béranger), por cima dos vínculos de caráter nacional ou confessional.

Este caráter espiritual do princípio imperial está diretamente na origem da célebre “querela das investiduras”. Para compreendê-la há que recordar que a noção de Império, inicialmente provada de todo conteúdo militar, no mundo germânico medieval recebeu desde o princípio uma forte impregnação teológica, devido a uma reinterpretação cristã da idéia romana de imperium. Antes de sua coroação imperial, Carlomagno foi aclamado em 794 sob o duplo título de rex e sacerdos pelos bispos reunidos em concílio em Francfort: “Rei pelo poder, sacerdote pelo magistério do ensino”, explica Alcuino. Por outro lado, a consagração imperial será considerada até o século XIII como um sacramento [18]. Os imperadores se consideram ao mesmo tempo executadores da História santa universal e herdeiros da dignidade imperial romana, e de aí deduzem que o Império, como instituição “santa” (Sacrum Imperium), tem por vocação construir um poder autônomo com respeito ao papado. Tal foi o fundamento da querela dos guelfos e dos gibelinos, que estalou depois da ruptura com Bizancio (1054), quando o papa Gregório VII reivindicou o exercício efetivo do poder temporal apoiando-se em uma célebre falsificação, a “Doação de Constantino”, documento falso segundo o qual o imperador Constantino, antes de deixar Roma, haveria doado ao papa Silvestre as insígnias do Império.

Os gibelinos, partidários do imperador, para deter as pretensões do papa se apoiaram na antiga distinção entre imperium e sacerdotium, onde viam duas esferas de igual importâncias, ambas instituídas por Deus: O ponto de vista bibelino não consiste em modo algum em submeter a autoridade espiritual ao poder temporal, mas em reivindicar para o poder imperial uma igual autoridade espiritual frente às pretensões de exclusividade da Igreja. Assim, para Frederico II Hohenstaufen, cujo reinado esteve presidido pelo mito da idade de ouro anunciada por Virgílio e o imperador Augusto, o imperador é o intermediário semidivino por quem ajustiça de Deus se extende no mundo[19]. Em sua De Monarchiam Dante afirma igualmente que a autoridade temporal do monarca descende sobre ele de uma fonte universal, sem intermediário: o imperador não recebe sua autoridade do papa[20]. Esta renovatio, que faz do imperador a fonte essencial do direito e lhe confere o caráter de “lei viva sobre a terra” (lex animata in terris), contém toda a essência da reivindicação gibelina: o Império deve ser reconhecido, ao mesmo título que o papado, como uma instituição de natureza e caráter sagrados. A oposição entre os guelfos e os gibelinos, assinala Evola, “não era somente de ordem política, como diz a míope historiografia que serve de base ao ensino escolar: em realidade, expressava o antagonismo dos dignitates que reivindicavam, ambas, o plano espiritual (...). O gibelinismo, em seu aspecto mais profundo, sustentava que o indivíduo, através de uma vida terrestre concebida como disciplina, combate, e serviço, pode ser levado mais além de si mesmo e tende a seu fim sobrenatural pela via da ação e sob o signo do Império, conforme o caráter de instituição ‘sobrenatural’ que a este se reconhecia”[21].

A luta entre guelfos e gibelinos será confrontada em benefício do poder temporal, mas não do Império, senão com a aparição dos primeiros reinos “nacionais” francês, inglês, e castelhano, que aproveitarão esta querela para rechaçar tanto a autoridade do papa como a do Imperador. “A soberania nacional – escreve Denis de Rougemont – vai obter seu caráter absoluto, inviolável, inalienável, e para dizer tudo, sagrado, desta usurpação pelos reis dos poderes supremos até então ostentados sem contestação pelo papado no espiritual e pelo império no temporal” [22].

A partir desse momento, a decadência do Império ao passo dos séculos será definida, antes de tudo, pelo declive do papel central que seu príncipe desempenhava e, correlativamente, por seu desvio a uma definição puramente territorial. O Império Romano-Germânico deixa de ser o que era quando na Itália ou Alemanha se tenta vinculá-lo a um arranjo em um território privilegiado. Na Itália, quem representa esta nova etapa é Petrarca (1304-1374), cujo poema patriótico “Italia mia” adota a forma de um chamamento aos italianos para que se constituam em nação. É significativo o fato de que Petrarca negue a Carlomagno o título de imperador e sugira que somente os povos bárbaros se chamam “Grande”[23]. Pelo contrário, esta idéia se faz ausente no pensamento de Dante (1265-1321), para quem i imperador não é nem germânico nem itálico, mas “romano” no sentido espiritual, quer dizer, sucessor de César e de Augusto. O Império, dito de outro modo, não pode se transformar em “grande nação” sem perecer, pela simples razão de que, segundo o princípio imperial, nenhuma nação pode assumir e exercer uma função dirigente sobre as outras se ao mesmo tempo não se eleva por cima de suas particulares obrigações e interesses. “O Império em sentido reto – conclui Evola – somente pode existir no caso de mover um fervor espiritual (...). Se não há tal, somente teremos uma criação forjada pela violência – o imperialismo - , simples superestrutura mecânica e sem alma”[24].

E é que a nação, precisamente, tem sua origem na pretensão régia de atribuir-se prerrogativas imperiais vinculando-as já não a um princípio, mas a um território. “É a partir da França – assinala Michel Foucher – desde onde vai se difundir a idéia jacobina de que as fronteiras de um Estado deviam corresponder às de uma nação, uma língua e uma política”[25]. Podemos situar o ponto de partida deste processo na divisão do império carolíngio pelo Tratado de Verdún. Em efeito, neste momento é quando França e Alemanha empreendem, por dizer assim, destinos separados. A segunda permanecerá na tradição imperial, enquanto que o reino franco, seccionado germanidade, vai evoluir lentamente para a nação moderna pela vida do Estado real. A extinção da dinastia carolíngia data do século X: 911 na Alemanha, 987 na França. Hugo Capeto, eleito em 987, é o primeiro soberano que se situa claramente à margem da tradição imperial, o qual explica que Dante, na Divina Comédia, o identifique com o princípio do mal e ponha em seus lábios esta confissão: “Eu fui a funesta raiz que obscureceu com sua sombra toda a terra cristã”[26].

Nos séculos XIII e XIV, o reino da França se constrói contra o Império com Felipe=Augusto (Bouvines, 1214) e Felipe o Bello (Agnani, 1303). Desde 1204, o papa Inocêncio III declara que “como é público e notório, o rei de França não reconhece no temporal nenhuma autoridade superior a sua”. Paralelamente, começa a efetuar-se todo um trabalho de legitimação “ideológica” para opor ao Império o princípio da soberania dos reinos nacionais e seu direito a não conhecer mais lei que seu próprio interesse. Para rechaçar toda autoridade superior a sua, a dinastia capetinha tão logo apela à lenda de sua origem troiana, que não será verdadeiramente desmentida até o século XVI, como à identificação do reino franco com o antigo Israel. Todo um conjunto de textos histórico-lendários, construídos a partir das Histoires de Gregorio de Tours, aspira a legitimar retrospectivamente as sucessivas usurpações dos Pipínidas, futuros carolíngios, e dos Robertianos, futuros capetinos, e criar a ilusão de que existe uma continuidade entre as três dinastias.

O papel dos examinadores foi fundamental neste ponto. Desde meados do século XIII, os examinadores formulam uma doutrina segundo a qual “o Rei de França, ao não reconhecer o temporal a nada por cima dele, cai isento do Império e pode ser considerado como princeps in regno suo”[27]. Esta doutrina será desenvolvida nos séculos XIV e XV por Guillermo de Nogaret (que instruiu o processo dos templários) e Pierre Dubois. Ao se afirmar como “imperador no seu reino” (rex imperator in regno suo) e declarar que “não reconhece nenhum superior sobre suas terras”, o rei está opondo de fato sua soberania territorial à soberania “federal” do Império, seu poder puramente temporal ao poder espiritual imperial. Já não é somente o primeiro dos soberanos, mas que se foi convertido por sua vez em “lei viva” (viva lex). Ao mesmo tempo, os examinadores advogam pela eliminação de todas as formas “irracionais” de legitimidade e de poder político, e favorecem a luta contra o direito habitual, o que acarreta a erosão das liberdades campesinas. Frente às aristocracias feudais, os examinadores sentam as bases de um poder estatalizantes e centralizador graças, sobretudo, à reforma da fiscalização e da instituição do cas royal, que permitirá ao rei converter-se, pouco a pouco, em possuidor exclusivo das competências de polícia [28]. Se funda assim uma ordem jurídica de essência burguesa, onde a lei, concebida como normal geral prevista de atributos racionais, procede exclusivamente do poder estatal: o direito se transforma em simples legalidade codificada pelo Estado. França será o primeiro país da Europa que cria uma ordem política inteiramente emancipada do modelo medieval.

No século XVI, a fórmula do rei “imperador em seu reino” será diretamente associada à idéia de soberania teorizada por Bodino. No primeiro livro de A República (1576), obra na que se propõe tratar de “a nação formada em Estado” e de seu “poder absoluto e perpétuo”, Bodino formula os três princípios essenciais do que mais tarde será a doutrina do Estado-nação: o poder absoluto do soberano somente pode exercer-se eficazmente à margem de toda mediação entre o poder e seus súditos, quer dizer, em um espaço social homogêneo e “transparente”; o soberano deve ter o monopólio do direito, o que equivale dizer que não cabe distinção entre o direito e a vontade do soberano (o rei é fons justitiae, e de aí a fórmula dos jurisconsultos: unus rex uma lex); e sobretudo, há de ter coincidência entre o poder do soberano e o território material no qual este se exerce (a extensão do direito é determinada pela extensão do território e a soberania se define juridicamente como reino territorial). De passagem, Bodino refuta por sua vez a teoria dos quatro impérios e, tal como Hobbes, rechaça o modelo da cidade antiga: “Eu não me inspiro em Aristóteles”, disse explicitamente [29]. O Estado absolutista é assim legitimado para reduzir as liberdades locais. A monarquia feudal se falava ainda constrangida por leis que limitavam o poder so soberano: o príncipe, ademais de ter que respeitar as leis divinas, estava atado por seus deveres em relação ao povo, de modo que não era inteiramente livre nem nos fins nem nos meios. Mas com a monarquia absoluta já não há regra humana alguma que retenha o soberano: a soberania, transformada em puro “poder para dar e quitar lei”, se confunde com a maior liberdade possível para quem possui poder. A autoridade do rei tem valor de verdade. E no mesmo movimento se desvanece a diferença entre legalidade e legitimidade, criando uma brecha que engolirá o positivismo jurídico. A ordem política se reduz a uma simples relação entre dominadores e dominados: “O uno é Príncipe, o outro é súdito. O uno é Senhor, o outro servidor...”. Os habitantes do reino não são mais que “livres súditos” cujos direitos em todo momento possam ser revogados pelo soberano, que não está obrigado pela lei.

Um quarto de século depois da publicação de A República, a doutrina oposta – imperial, “corporativa” e “federalista” – encontra na pessoa de Juan Altusio seu primeiro grande teórico clássico. Nascido em Westfália em 1557, síndico da vila de Emden durante trinta e quatro anos, Altusio, cuja obra será redescoberta no século XIX por Otto von Gierke [30], publica em 1603 sua obra maior, a Política methodice digesta [jus majestatis] é a alma da comunidade política. Mas, ao contrário de Bodino, concebe à sociedade boa como um ordenamento harmonioso de associações naturais, e sustenta que a soberania dos Estados nunca deixa de pertencer ao povo. Na base de suas construção teórica situa a noção fundamental de consociatio symbiotica, quer dizer, a associação orgânica de indivíduos que vivem em sociedade. A vida política é assim definida como uma “simbiose” baseada em um laço social estabelecido pela necessidade inata que empurra os homens a pôr em comum as coisas úteis e necessárias (mutua communicatio). Altusio enumera depois as diversas formas de consociatio, quer dizer, os diferentes tipos de comunidade, ordenados por graus de complexidade crescente. O traço comum de cada uma destas comunidades, e ao mesmo tempo o segredo de sua prosperidade, é a densidade social ou coersão interna que resulta do acordo entre seus membros. As comunidades mistas ou corpos políticos, como a vida ou a cidade, são comunidades públicas formadas pela reunião de várias comunidades primárias em politeuma, quer dizer, em unidades políticas dotadas de autonomia cívica. Os membros de uma politeuma “são os cidadãos, não como indivíduos, mas como ‘simbiotas’ que já têm a experiência das comunidades primárias. Assim definido, o corpo cívico não está formado por indivíduos, mas por comunidades”[32]. O Estado ou consociatio symbiotica universalis (ou também respublica) é a comunidade de direito que resulta do consenso dos membros de corpo político, especialmente das províncias. Seu fim é estimular a vida social, a partir de uma escaça de autoridade ascendente onde as instituições superiores se apoiam sobre o consentimento das associações locais. Altusio salienta que a soberania é um direito individísel, inalienável e intransferível: contra a opinião de Bodino e os jurisconsultos, que sustentavam que os reis são soberanos no Estado, o de Westfália insiste em que o “direito de majestade” não pode ser cedido, abandonado, nem alienado sob nenhum pretexto. Isto significa que o soberano, que é o povo, deve ser distinguido pelo príncipe, que não é senão seu mandatário, de tal sorte que não cabe privar o povo do exercício da soberania ao risco de destruir a sociedade política [33]. Estado e soberania podem assim coincidir: um constitui o aspecto jurídico e o outro o aspecto político e social de uma mesma realidade, a saber, a do povo organizado sob a forma federativa de comunidades orgânicas (simbióticas).

É sabido o que veio depois. Na França, a nação se edifica afirmando-se contra o Império germânico, a Igreja romana, e a potência espanhola, sob o duplo signo do absolutismo centralizador e da ascensão das classes burguesas. Essa evolução, empreendida com os advogados de Felipe o Belo, se acelera a partir de Luis IX e de Francisco I. Em 1715, o Parlamento de Paris proclama que “o rei é a imagem visível de Deus sobra a Terra”. Mais tarde, a Revolução, que despoja o rei de sua soberania para transferí-la à nação, não faz senão acentuar seu peso: no Antigo Regime a soberania representa a plenitude do poder as vontade de um homem, mas agora se converte em poder impessoal absoluto [34]. Em todo este processo de Estado mantem o papel fundamental. Jacques Krynen demonstrou que o conceito de Corona, independentemente dos de rex e regnum, prefigura o conceito de Estado[35]. Quando Luis XIV disse “O Estado sou eu” queria dizer, precisamente, que não há nada entre ele e seus súditos. Na França, pois, é o Estado quem cria a nação, a qual “produz” por sua vez o povo francês, enquanto que os países de tradição imperial será o povo quem criará a nação, a qual se dotará de um Estado. A diferença entre a nação e o Império permite explicar estes dois modos, completamente opostos, de construção histórica. Como se foi dito frequentemente, a história da França foi uma perpétua luta contra o Império: a política secular da monarquia francesa aspirou antes de tudo a dividir os espaços germânico e italiano, e a República, a partir de 1792, retomará os mesmos objetivos, a saber, luta contra a casa da Áustria e conquista do Reno.

Mas a oposição entre princípio espiritual e poder territorial não é a única que há que ter em conta. Outra diferença essencial reside na forma em que o Império e a nação concebem a unidade política. A unidade do Império não é uma unidade mecânica, mas uma unidade composta, orgânica, que excede amplamente o marco dos Estados. O Império, na mesma medida em que encarna antes de tudo um princípio, entende a unidade no nível desse princípio. Enquanto que a nação engenha sua própria cultura ou se apoia nela para formar-se, o Império engloba culturas variadas. Enquanto que a nação persegue uma estreita correspondência entre povo e Estado, o império associa por definição povos diferentes. “Pela natureza – escreve Maurice Duverger – os impérios são plurinacionais. Reunem diversas etnias, diversas comunidades, diversas culturas, antes separadas, sempre distintas (...). Para manter um império é preciso que sua unidade aporte vantagens aos povos que engloba, e que cada um conserve sua identidade. É necessária uma centralização administrativa e militar para impedir as revoltas das classes dominadas e a transformação dos governos locais em feudos independentes. É indispensável a autonomia para que todas as etnias possam manter sua cultura, sua língua, e seus costumes. É preciso, por último, que cada comunidade e cada indivíduo tenham consciência do que ganham permanecendo no conjunto imperial, em vez de viver separadamente”[36]. O próprio princípio de Império, em outros termos, implica uma conciliação do uno e do múltiplo, do universal e do particular. Sua lei geral é a da autonomia e o respeito à diferença, através de uma aplicação estrita do princípio de subsidiariedade. Este princípio, que desde a Idade Média repousa sobre uma clara percepção da divisão de competências entre o poder preeminente (plenitudo potestatis) e os poderes delegados nos níveis subordinados (potestas limitata), permite assegurar o equilíbrio entre duas tendências fundamentais: a tendência centrípeta (a exisência de liberdade) e a tendência centrífuga (a necessidade de unidade). “Por exemplo – assinala Antoine Winckler - , quando lemos as descrições históricas do Sacro Império entre os séculos XII e XIV, na Constituição de Carlos IV de Luxemburgo (a Bula de ouro), observamos um complexo dividido de poderes delegados entre centros políticos mais ou menos subordinados; se trata de um sistema muito complexo entre Estados mediatizados e príncipes eleitores no marco de uma teoria política eu opõe os conceitos de Landesherrschaft e Landeshoheit, onde o primeiro é uma delegação do poder político para a gestão de uma parte do território, enquanto que Landeshoheit, pelo contrário, se aproxima muito mais à idéia de soberania igualmente, no corpo político do Império há uma organização muito elaborada de poderes intermediários e de esferas de influências mútua”[37].

O Império aspira lograr a unificação em um nível superior sem suprimir a siversidade de culturas, de etnias, e de povos. Quer associar povos diversos em uma comunidade de destino sem por isso reduzí-los ao idêntico. É um todo cujas partes tanta as autônomas quanto mais sólido é o que as une – e essas partes que o constituem seguem sendo conjuntos orgânicos diferenciados. Moeller van der Bruck botava o Império sob o signo da unidade de contrários, e esta é, em efeito, uma boa imagem. Julius Evola, por sua vez, definia o Império como “uma organização supranacional de um gênero tal que a unidade não atua na direção de destruir e nivelar a multiplicidade étnica e cultural que engloba”[38]. É a imagem clássica das universitas, por oposição à societas unitária e centralizada. A diferença não cai abolida, mas que é integrada.

A respeito disto, o exemplo do Império Romano é particularmente chamativo. Seu fundamento é religioso. A justificação do poder iimperial repousa por sua vez sobre o mérito do imperador e sobre a proteção dos deuses, em reta linhagem da tradição monárquica helenística inaugurada por Alexandre Magno. O princípio do Império, ativo já em Roma republicana, expressa a vontade de instaurar na Terra um modelo de ordem e de equilíbrio que é reflexo de uma harmonia cósmica sempre emaçada. César, fundador do Império, reúne em sua pessoa o poder de imperator e as prerrogativas do pontifex maximus. Este últimos, chefe do colégio de pontífices instituído por Numa, é cabeça do culto e sacrificador supremo: nomea os sacerdotes, supervisiona o desenvolvimento das cerimônias, mantém o culto de Penates públicos e estabelece o calendário litúrgico, assim como os ritos e as obrigações religiosas oficiais. O próprio imperador é considerado como praesens deus, e o “triunfo” que lhe está reservado lhe identifica com Júpiter Capitolino, cujo templo marca em Roa a meta da procissão imperial[39].

No apogeu do Império, Roma representa um princípio que permite reunir povos diferentes sem que suponha sua conversão nem sua supressão. Respeitoso com a diversidade dos homens, das instituições e das culturas, o império romano soube encontrar soluções originais ao complexo problema plantado pela coabitação em uma mesma estrutura política de diferentes línguas, culturas, crenças, e sistemas jurídicos. Durantes pelo menos quatro séculos, soube fazer viver grupos heterogêneos atribuindo a seus dirigentes objetivos comuns que a maiori lhes pareceram invejáveis. Ainda que a extensão do Império nasceu da conquista, nunca entrou a uniformização. No seio das províncias, as cidades, as tribos, e as comunidades aldeãs, conservaram seu modo de vida. Roma nunca tentará impor um modelo único de organização local sobre o padrão de município ou a colônia ao estilo italiano. Nas terras do Império, as únicas tarefas dos funcionários romanos são o mantimento da ordem, da proteção, das fronteiras, e a percepção dos impostos, enquanto a administração local descansa essencialmente sobre as estruturas indígenas e os dirigentes locais. “E se se escolheu atribuir às elites indígenas as tarefas da administração local não foi para paliar uma incapacidade material da administração central – precisa Maurice Sartre sobre este ponto -. Ao contrário, creio que aqui estamos ante uma concepção propriamente romana (e, mais além helenística) do Estado, que não se atribui a si mesmo mais que um mínimo de tarefas úteis para seu mantimento ou para seu poder [40]. Essa “descentralização” explica que a alta administração imperial havia descansado sempre sobre um número extraordinariamente limitado de funcionários: em Roma nunca teve mais de setecentos altos responsáveis trabalhando ao mesmo tempo.

O Império romano não invoca deuses exclusivos ou ciumentos: admite com naturalidade as inumeráveis divindades, conhecidas ou desconhecidas, as que rendem culto aos povos. A tolerâncias religiosa é a regra, como em todo o mundo antigo: “se cada qual pode venerar seus próprios deuses, todos consideram que os deuses alheios não são menos deuses que os próprios” (Maurice Sartre). O culto imperial tampouco constitui uma isca para a unificação religiosa: “Herdeiro do culto real da época helenística, nasceu de iniciativas provinciais (gregos da Ásia e da Bitinia) e encontrou vivas reticências por parte de Augusto e seus primeiros sucessores (Tibério, Claudio). Se bem acabou por impor-se e foi organizada em nível provincial, nunca foi considerada como uma obrigação individual. Não se pode recusar todo conteúdo religioso, mas sobretudo é, de fato, a expressão da lealdade dos notáveis e um meio de afirmar a coersão das diversas comunidades em torno da pessoal imperial”[41]. O mesmo ocorre no terreno linguístico. Desde Claudio há em Roma uma dupla chancelaria imperial. Uma em latim e outra em grego, enquanto as línguas indígenas continuam utilizando-se em todas as partes. Na Síria, por exemplo, se fala tanto as duas línguas oficiais quanto o fenício, o árabe, o aramaico. Até meados do século III, Roma reconhece também a pluralidade das moedas no Mediterrâneo oriental: junto a moeda imperial circulam moedas provinciais e municipais, o que significa que as cidades conservavam seu privilégio regaliano de emitir seu próprio dinheiro. Tampouco nada pretendeu nunca unificar os estatutos individuais ao menos até o edito de 212, que atribuía a cidadania romana a todos os habitantes livres do Império (e cujos objetivos, por outro lado, não eram tanto lograr a integração como aumentar a arrecadação fiscal). O direito romano, codificado antes de que comece o século III, nunca será imposto aos novos súditos do Império; somente prevalece nas relações entre indivíduos de povos diferentes ou nos contenciosos entre as cidades. Somente os editos imperiais primam sobre regras locais eventualmente contrárias. Todo povo é livre para conservar seus ritos e organizar sua cidade segundo seus próprios usos e costumes, enquanto que todo indivíduo pode recorrer ao procedimento romano e apelar a justiça imperial. De aí resulta uma justaposição de direitos e uma multiplicidade de fontes jurídicas, assim como a possibilidade para uma mesma pessoas possuir vários direitos de uma vez. “Os direitos indígenas – observa Maurice Sartre – sobreviveram e continuaram aplicando-se nas diversas comunidades que constituíam o Império: direito ‘grego’ no Egito (em realidade, direito iindígena cruzado com direito grego), direito das cidades gregas no Mediterrâneo oriental, direito de tal ou qual tribo em Mauritânia ou na Arábia, direito judeu (Torá) para os judeus”[42].

Maurice Sartre conclui assim: “Se tivemos que ter uma somente lição da história do Império romano, poderia ser a seguinte: a coesão de um conjunto tão díspar repousa sobre o respeito das estruturas locais responsáveis da gestão da vida cotidiana, guardiães e tradições, mas também gestoras do que todos consideram como a essência mesma da vida em comunidade (...). A fim de contas, o respeito às identidades culturais importa mais, a longo prazo, que o êxito econômico ou os imperativos estratégicos; no longo prazo, se o Império se mantém não é porque os povos que o compõem se sentem economicamente solidários ou decidem defender-se juntos contra uma ameaça exterior, mas, antes de tudo, porque se foi imposto a si mesmos um modelo de civilização, uma cultura e um sistema de valores que fundamentam sua solidariedade e que merecem ser defendidos contra quem o ameaçam, já seja desde o exterior (os bárbaros) ou desde o interior (sobretudo, os cristãos)”[43].

Arnold Toynbee também constatou que o princípio de pertença ao Império romano descansava “sobre uma ‘dupla cidadania’ que exigia a submissão do cidadão à cidade particular onde havia nascido e à mais vasta administração política que Roma havia criado”[44]. Em outros termos, se podia ser “cidadão romano” sem abandonar a própria nacionalidade. Esta distinção entre o que hoje chamamos nacionalidade e cidadania é totalmente alheia ao espírito do Estado-Nação. Em efeito, em uma nação ambos termos são sinônimos: todos os cidadãos são igualmente “nacionais”, pois o que funda a cidadania é a pertença à nação. No Império, pelo contrário, diferentes nacionalidades compartilham uma mesma cidadania. O Reich medieval era fundamentalmente pluralista na medida em que constituía uma entidade supranacional baseada sobre um princípio superior à ordem política. Assim garantia às populações o mantimento do modo de vida e dos usos que lhes eram próprios. E ao mesmo tempo, tal complexa divisão de poderes teria como consequência a multiplicidade e a diversidade de obediências e lealdades. Na Idade Média, salienta Daniel-Rops, “um senhor podia estar vinculado por juramento feudal ao imperador germânico e pelos interesses ao Estado francês, sem deixar de desenvolver uma cultura tradicional nacional. Lorena ou Borgonha oferecem bastantes bons exemplos de tais atitudes” [45]. Na linguagem moderna, diríamos que este sistema se caracterizava por um acentuado “federalismo”, o qual permitia, sobretudo, respeitar às minorias. Recordemos, por outro lado, que o império austro-húngaro funcionou com eficácia durante muitos séculos e que a soma de suas minorias formava a maioria da população (60% do total), associando tão logo a italianos como a rumanos, judeus, sérvios, rutenos, alemães, polacos, tchecos, croatas, e húngaros. Jean Béranger, que escreveu sua história, observa a respeito disto que “os Habsburgo foram sempre indiferentes ao conceito de Estado-Nação”, até o ponto de que este império, fundado pela Casa da Áustria, foi recusado durante séculos criar uma “nação austríaca”, a qual não chegou a tomar corpo verdadeiramente até o século XX [46].

Inversamente, o que caracteriza o reino “nacional” é sua irresistível tendência à centralização e à homogeneização. Na lógica do Império é impensável que uma potência superior ocupe o espaço de um poder subordinado, e isso precisamente em razão da própria preeminência dessa potência superior; pelo contrário, na lógica do Estado nacional essa potência tende a assumir todas as tarefas precisamente porque se foi afirmado como superior. A ocupação do espaço pelo Estado-Nação se manifesta, de entrada, pela produção de um território sobre o que se exerce uma soberania política homogênea. Tal homogeneidade se deixa apreender, em um primeiro momento, através do direito: a unidade territorial resulta da uniformidade das normas jurídicas. Já temos mencionado o papel dos legistas. A luta secular da monarquia contra a nobreza feudal, em particular sob Luis XI; a aniquilação da civilização dos países de língua oc, a supressão das línguas regionais nos atos administrativos e a afirmação do princípio de centralização sob Richelieu vão, evidentemente, no mesmo sentido. Desde o século XII, com ajuda dos juristas, o rei resolve suprimir os corpos intermediários e reduzir a diversidade de obediências. Um adágio da época reza assim: “O vassalo de meu vassalo não é meu vassalo”. O rei redistribuirá as fidelidades, as vassalagens e as obediências com o fim de não ter senão vassalos diretos. Os séculos XIV e XV marcam uma virada decisiva a respeito disto. Em efeito, é nessa época quando o Estado sai vitorioso de sua luta contra as aristocracias feudais e sela sua aliança com a burguesia, ao mesmo tempo que se estabelece uma ordem jurídica centralizada. Paralelamente, se observa a aparição de um mercado econômico “nacional” que responde à vontade do Estado de maximizar seus ingressos fiscais graças à monetarização de todos os intercâmbios (os intercâmbios não mercantis, intracomunitários, eram até então inapreensíveis para o Estado). Tal emergência do mercado envolve por sua vez todo um processo de dessocialização na medida em que permite ao indivíduo afirmar-se independentemente de seus vínculos de pertença. “O Estado-Nação – precisa Pierre Rosanvallon – é um modo de composição e de articulação do espaço global. Igualmente, o mercado é antes de tudo um modo de representação e de estruturação do espaço social; somente secundariamente é um mecanismo de regulação centralizada das atividades econômicas pelo sistema dos preços. Deste ponto de vista, o Estado-Nação e o mercado remete a uma mesma forma de socialização dos indivíduos no espaço, pois somente são possíveis em uma sociedade atomizada na que o indivíduo é concebido como autônomo. Não pode, pois, ter Estado-Nação e mercado, no sentido sociológico e econômico destes termos, em espaços onde a sociedade se desdobra como um ser social global” [47].

Por suposto, existe uma estreita relação entre esta centralização, cujo teatro é França, e o fato de que este país seja também o mais “artificial” de todos os países europeus: somente um poder autoritário centralizado podia reunir e manter em unm mesmo conjunto político realidades geográficas, históricas, e humanas, tão díspares, e também tampouco provável a reunir-se por si mesmas em um todo coerente. Já nos anos trinta constatava Philipe Lamour que França “não é uma nação natural. É um Estado político construído pela união de diversas regiões de características claramente diferentes, quando não opostas (...). França, tanto desde o ponto de vista racial como desde o ponto de vista do clima, tanto desde o ponto de vista linguístico, como do territorial, é um Estado artificial e heterogêneo” [48]. Emmanuel Todd e Hervé Le Bras formularam recentemente uma constatação análoga: “França não é nem celta, nem latina, nem germânica. Encruzilhada étnica da Europa, a França é incapaz de nos dizer qual destas origens foi preponderante. Mas França sabe muito bem, por conta, até que ponto seus temperamentos regionais, normandos ou provençais, auverneses ou bretões, são radicalmente diferentes, quase contraditórios”. A conclusão destes autores é que a “fundamental e irredutível heterogeneidade antropológica da França” constitui um caso único na Europa: França “não é, como a maior parte dos países da Europa, uma ‘nação étnica’, segundo a expressão utilizada no século XIX (...). No plano das estruturas familiares, há tanta diferença entre Normandia e o Lemosín como entre Itália e Inglaterra” [49].

Maurras, evidentemente, fabula quando escreve que os franceses de hoje herdam “vinte séculos de história compartilhada”. O que herdaram é, melhor, uma sequência ininterrupta de anexações promovida por um Estado que, no curso dos séculos, foi confundido constantemente o espaço de seu poder e o de suas conquistas territoriais, as quais envolveram a aculturação forçada das populações conquistadas. “Se falava aos reis da França por terem assimilado os países conquistados – escrevia Simone Wel -, mas a verdade é que, em muita boa medida, o que fizeram foi desenraizá-los” [50]. Tanto em Occitânia como em Bretanha, em Córcega, em Flandres, no País Basco, ou na Alsácia, o modelo francês de assimilação funcionou sempre desde cima, cavando uma fossa entre a cultura da elite e as culturas populares, o que explica sua lerdeza em surtir efeitos. No plano linguístico, por exemplo, o dialeto franco se impôs muito lentamente como língua do rei e língua de Paris, inclusive na parte setentrional do reino. “O modo em que o ‘franco’ substituiu pouco a pouco os outros dialetos de língua oïl nos textos literários – salienta Suzanne Citron – tem sido mascarado pelo imperialismo cultural que acompanhou o desenvolvimento da monarquia absoluta no século XVI, relevado pela concepção centralizadora e o imperialismo linguístico ‘republicanos’” [51]. Em 1539, o edito de Villers-Cotterets oficializa somente a francização dos atos administrativos e da escritura pública nos países de oc. Em vésperas da Revolução, Turgot verá todavia a França constituída por várias “nações”, enquanto que Mirabeau, o autor do Chamamento à nação provençal, a descreverá como uma “agregação inconstituída de povos desunidos”. Em 1789, no momento em que se preparam os Cadernos dos Estados Gerais, os representantes de numerosas regiões salientaram que estas “estão no reino”, mas “não são do reino”; Alsácia e Lorena, por sua vez, afirmam que querem manter-se como “províncias estrangeiras efetivas”.

No século XVIII, a monarquia absoluta sucumbirá à “crise de consciência” das elites intelectuais trabalhadas pela filosofia das Luzes. Mas a crise de incubava ao menos desde Luis XIV, cuja política de prestígio, que consistia em humilhar os outros soberanos (o papa, o rei da Espanha, o duque da Lorena) e em exibir suas forças em guerras de magnificência, teve por efeito o de separar pouco a pouco a França de todos seus aliados para transformá-los em adversários. O reinado de Luis XIV, que se resultou com a ruína das finanças e uma série de desastres militares, foi também testemunha da culminação do absolutismo real e da centralização. O rei rompeu as últimas feudalidades para dar uma consciência comum aos habitantes do reino, enquanto botava a trabalhar exclusivamente para si um grupo de grandes funcionários nascidos da burguesia. Não há dúvida de que, por essa via, o absolutismo monárquico abriu o caminho às revoluções nacionais burguesas. A Revolução era inevitável desde o momento em que, quebradas por Luis XIV as últimas resistências da nobreza, a burguesia pode por sua vez pretender liberar-se de toda coação político-econômica – e reivindicar de direito um poder político que já possuía de feito no econômico. “Coberto o caminho – escreve Pierre Fouygerollas - , a aliança monárquico-burguesa se desfez para deixar passo à sublevação da burguesia, implicando junto a ela às massas campesinas contra a monarquia absoluta que anteriormente havia servido de casulo”. E acrescenta Bernard Charbonneau: “Em sua empresa de centralização e de unificação (para não dizer uniformização ou Gleichschaltung), a monarquia, cuja máxima expressão foi a monarquia francesa, era a aliada natural da burguesia. O dia em que esta aliança se rompeu, a monarquia esteve perdida” [52].

Mas tampouco cabe duvidar que a Revolução, em muitos aspectos, não fez senão prosseguir e acentuar tendências que já estavam presentes sob o Antigo Regime. É o que constatava Tocqueville quando escrevia: “A Revolução francesa criou uma multiplicidade de coisas acessórias e secundárias, mas não fez senão desenvolver o gérmen das coisas principais, que já existiam antes dela (...). Na França o pode central já se tinha apoderado, mais que em nenhum outro país do mundo, da administração local. A Revolução somente tornou este poder mais hábil, mais forte, mais empreendedor” [53]. A mesma constatação encontramos em Karl Marx: “A primeira Revolução francesa, que se atribuiu a tarefa de romper todos os poderes independentes, locais, territoriais, e municipais, para criar a unidade burguesa da nação, devia necessariamente desenvolver a obra da monarquia absoluta: a centralização, mas também extender os atributos e o aparato do poder governamental” [54]. Tanto sob a monarquia como sob a república, a lógica nacional consiste, em efeito, em eliminar qualquer obstáculo entre o Estado nacional e os indivíduos. Seu objetivo é integrar de forma unitária uns indivíduos submetidos às mesmas leis, não reunir coletividades livres de conservar sua língua, sua cultura, e seus direitos. E como o Estado somente pode exercer eficazmente seu poder quando atua sobre sujeitos individuais, não recuará em destruir ou limitar os poderes de todas as formas intermediárias de socialização: clãs familiares, comunidades cidadãs, confradias, grêmios, etc. A proibição das corporações, em 1791 (lei Le Chapelier), encontra sua procedente na supressão por Francisco I, em 1539, de “todas as confradias de ofícios e artesãos em todo o reino”, decisão que, na época, se dirigia principalmente contra os membros das sociedades chamadas de Deber. “Luis XIV, em sua majestade –escrever Bertrand de Jouvenel - , não é mais que um revolucionário que triunfou: um primeiro Napoleão que sacou proveito de um primeiro jacobinismo simplificador e inclusive terrorista. Este jacobinismo emancipu o Soberano, invertendo o anterior império da velha lei” [55].

A Revolução acelera o movimento. Afirmado com força o princípio da nação, cabe construí-la. “A nação não existe então – observa Pierre Rosanvallon – senão como uma formidável potência crítica, uma referência para a ação. Como dar um rosto e uma alma a esta figura abstrata que já não pode ser assimilada a uma estrutura orgânica, a um agregado hierárquico de corpos intermediários?” [56]. A resposta será uma homogeneização todavia maior. A nação vai ser construída de forma nacionalista. A remodelação do território (Fevereiro de 1790) em departamentos quase iguais, a luta contra o “espírito da privíncia”, a supressão dos particularismos culturais, a ofensiva contra as línguas regionais e os “patois”, assim como a uniformização do sistema de pesos e medidas, traduzem assim uma verdadeira obsessão pelo único que se expressa através da normalização e o “alinhamento” das províncias e os Estados, dos corpos e as inteligências, das curiosidades e os comportamentos. Há que suprimir qualquer diferença e instaurar por todas as partes uma igualdade geométrica. Essa obsessão é especialmente posta de manifesto em Siéyès, que se usa para condenar toda autonomia local e regional: “França não deve ser um agregado de pequenas nações (...). A França não é uma coleção de Estados (...). Isso seria tanto como despedaçar, desgarrar a França em uma infinidade de pequenas democracias que seriam vinculadas depois pelos laços de uma confederação geral”. “O objetivo – escreve Rosanvallon – é manifestar que o cidadão, como membro da nação, não se confunde com o homem concreto e suas necessidades; que o cidadão somente existe por cima do que o diferencia dos outros homens, como vetor puro da igualdade civil” [57]. A França se espacializa: se converte em um espaço homogêneo onde vão absorver-se os particularismos. A ivisão departamental responde a uma vontade de abolir “toda recordação da história”. “Tudo há de ser novo na França – declara Barrère -; queremos datar de hoje somente de hoje” [58]. “Uma nova divisão do território – precisa Duquesnoy em 4 de Novembro de 1789 – deve produzir sobretudo o bem inestimável de fundir o espírito local e particular em espírito nacional e público; deve fazer franceses de todos os habitantes deste império, esses que, até hoje, não tem sido mais que provençais, normandos, parisianos, loreneses”. Em 1792, destituído o Rei, a Convenção proclama a República “uma e indivisível”, princípio que em primeiro lugar será aplicado à representação nacional. Em 27 de Novembro de 1792, em sua informa sobre a anexação da Saboya, o abade Grégoire afirma que “o sistema federativo seria a sentença de morte da República francesa”. Dois anos mais tarde, apresenta à Convenção seu relatório sobre a necessidade e os meios de aniquilar os dialetos e universalizar o uso da língua francesa. Aos olhos do Comitê de Salvação Pública, a diversidade das línguas regionais constitui um “federalismo linguístico” que há que “romper inteiramente”, sobretudo nas zonas fronteiriças [59]. “Fazendo da indivisibilidade a carta suprema da República – constata Suzanne Citron – a Convenção desencadeia a engrenagem totalitária ancorada na monarquia absoluta” [60]. A República “erradicará” Vendee como a monarquia havia “erradicado” os judeus, os cátaros, e os huguenotes. Para retomar a velha distinção de Tönnies, a nação moderna surge do advento da sociedade sobre as ruínas das antigas comunidades.

Assim pois, enquanto que o Império exige o mantimento da diversidade dos grupos, a nação não conhece mais que indivíduos. Um é membro do Império de forma imediata, através de uma quantidade de estruturas intermediárias; mas a nação se pertence de forma imediata, sem que medem pertenças locais, corpos, ou Estados. Siéyès disse expressamente: a vontade de uma nação “é o resultado das vontades individuais, tal como a nação é o agregado dos indivíduos” [61]. Enquanto a centralização monárquica era essencialmente jurídica e política, enfocada somente no trabalho de construção do Estado, a centralização revolucionária, que acompanha o nascimento da nação moderna, irá mais longe: se propõe diretamente “produzir a nação”, quer dizer, engrenará comoportamentos sociais iinéditos. O Estado se transforma assim em produtor do social – e produtor monopolístico: aspira instalar uma sociedade de indivíduos reconhecidos como civilmente iguais sobre as ruínas dos corpos intermediários que foram suprimidos [62]. Jean Baechler salienta quando escreve que “na nação todos os grupos intermediários entre o elemento e o conjunto podem seguir vivos, mas são percebidos como não pertinentes desde o ponto de vista da nação (...). Uma nação está composta por indivíduos, quer dizer, que as unidades da ação que fundamentam o conjunto estão midiatizadas por nada. Qualquer outro grupo tende a ser secundário ou subordinado” [63]. A instalação da nação, assinala por sua vez Ersnt Gellner, passa pela “localização de ums sociedade anônima e impessoal, composta por indivíduos atomizados e intercambiáveis cuja coesão depende sobretudo de uma cultura comum deste gênero, lá onde existia uma estrutura complexa de grupos locais, modelados por uma cultura popular cuja reprodução era assegurada localmente pelos próprios microgrupos e respeitando os particularismos” [64]. Por isso Louis Dumont estima ter razões para ver a nação como um pseudo-holismo e o nacionalismo como uma simples transferência da subjetividade própria do individualismo moderno a nível de uma coletividade abstrata: “A nação no sentido preciso, moderno do termo, e o nacionalismo – distinto do simples patriotismo - , vão historicamente da mão com o individualismo como valor. A nação é precisamente o tipo de sociedade global que corresponde ao reino do individualismo como valor. Não somente o acompanha historicamente, mas que a interdependência entre ambos se impõe de maneira que podemos dizer que a nação é a sociedade global composta por gentes que se consideram a si mesmas indivíduos” [65]. Este componente individualista é uma característica central do Estado-Nação. E permite ver até que ponto resulta contraditório querer fundar sobre a idéia de nação um anti-individualismo consequente.

A este individualismo que impregna a lógica da nação se opõe ao holismo real da construção imperial, onde o indivíduo não é arrancado de suas comunidades naturais e onde cada nível de pertença mantém sua soberania sobre quanto cabe dentro da ordem de suas competências. Pierre Fouygerollas resume a situação nestes termos: “Em ruptura com as sociedades medievais, que comportavam uma identidade bipolar – a das raízes étnicas e a da comunidade dos crentes -, as nações modernas foram constituídas como sociedades fechadas onde a única identidade oficial é a que o Estado confere aos cidadãos. Assim a nação foi, por seu nascimento e seus fundamentos, um anti-Império. Na origem dos Países Baixos esteve a ruptura com o império dos Austrias; na origem da Inglaterra, a ruptura com Roma e o estabelecimento d euma religião nacional. Espanha não se castelhanizou até que escapou do domínio do sistema dos Habsburgo, e França, lentamente constituída como nacionalidade contra o império romano-germânico, se erigiu em nação combatendo contra as forças tradicionais da Europa inteira” [66].

Acrescentamos que o contrário da nação, que ao fio dos séculos tem ido definindo-se cada vez mais por umas fronteiras intangíveis, o Império não se apresenta jamais como uma totalidade cerrada. Suas fronteiras são por natureza móveis, provisórias, o que traduz seu caráter orgânico. Por outro lado, é sabido que, originalmente, a palavra “fronteira” tinha um sentido exclusivamente militar: a linha de frente (e de aqui a expressão “fazer fronteira”). Na França, a palavra “fronteira” substituiu o termo “marca”, comumente empregado até então, no século XIV, sob o reinado de Luis X o Obstinado. Mas terão de passar todavia quatro séculos para que adote seu sentido atual de delimitação rígida entre os Estados: o termo não aparece praticamente nunca nos tratados negociados por Luis XIV (nessa época os territórios não eram propriamente anexados, mas que se separavam do feudo de uma coroa para passar a aoutra). Assinalemos também que, contrariamente à lenda, a idéia de “fronteira natural”, embasada na definição da Galia por César e empregada as vezes pelos legistas do século XV, nunca sinpirou a política exterior da monarquia, e que atribuir sua paternidade a Richelieu ou a Vauban é, simplesmente, um erro. Foi somente com a Revolução quando esta idéia, particularmente duvidosa no caso de um país tão pouco ‘natural” como França, começou a ser sistematicamente instrumentalizada com fins estratégicos. Sob a Convenção, os girondinos a utilizarão para legitimar a fixação da fronteira oriental na margem esquerda do Reno. Danton recorrerá a ela em 31 de Janeiro de 1793 para justificar a anexação da Bélgica: “Os limites da França estão marcados pela natureza” [67].

Foi também a Convenção, por outro lado, a que sentou as bases do nacionalismo moderno em seus traços mais agressivos. Sem embargo, a Revolução, na origem, repudiou toda idéia de conquista. Para Mably, o amor pela pátria era “uma etapa no recorrido iniciático que leva o amor à humanidade inteira”. “Na ordem política – escrevia Carnot -, as nações são entre si como os indivíduos na ordem social; umas e outros tem seus respectivos direitos (...). A lei natural quer que tais direitos sejam respeitados (...). Temos por princípio que todos povos, seja qual for a exiguidade do país que habita, é absolutamente dono se di em sua terra, que é igual em direito ao maior povo, e que nenhum outro pode legitimamente atentar contra sua independências”. Tudo muda a partir de 1792, quando o ódio ao estrangeiro se converte na primavera principal do terror. A partir de então já não se pode ser, como em 1789, “alemão de língua patriota de coração”, pois, disse Barrère, “a emigração e o ódio à República falam alemão”. No outono de 1793, a denúncia de Fabre d’Églatine sobre a “conspiração estrangeira” leva a Robserpierre excluir da Convenção o americano Thomas Paine, que é internado na prisão de Luxemburgo, e o prussiano Anarchasis Cloots. Este último, que na festa da Federação havia encabeçado uma delegação de estrangeiros, em representação do “gênero humano”, declarava em 24 de Abril de 1793 que “as denominações francês e universal vão converter-se em sinônimos”, que “a república do gênero humano não terá jamais disputa com nada” e que “a Assembléia Nacional francesa é um resumo do mapa-mundi dos filantropos”. Poucos meses depois, passava sob a guilhotina. “Podemos mirar como patriota um barão alemão?”, exclamará Robespierre. O reino do estrangeiro passa a se confundir com o dos “tiranos”, o qual tem como consequência imediata o reanimar do espírito de conquista. “A República –declara Merlin de Douai 0 pode e deve tanto reter a título de conquista como adquirir mediante tratado os países que considere conveniente, sem consultar seus habitantes”. Outra consequências capital é que a aristocracia, entanto que defensora de um regime infamante, aparece como um “estrangeiro do interior”, expressão que os nacionalistas já não deixarão de usar. O aristocrata aparece inclusive como duplamente estrangeiro, primeiro como descendente do invasor franco, que desde faz quinze séculos vive “aos custos da nação galesa” [68], e depois porque não pertence ao corpo da nação, já que a nobreza, segundo explicava Siéyès, constitui “um povo a parte, mas um povo falso”, quer dizer, um parasita coletivo. Assim, Barrère poderá declarar de um somente movimento que os aristocratas “não têm pátria” e que são “estrangeiros entre nós”, enquanto que Saint-Just, estigmatizando os “estrangeiros”, denuncia por sua vez quem não é francês e quem combate os valores da Revolução. Todos os referentes do nacionalismo moderno aparecem, pois, ao mesmo tempo: a nação concebida como absoluto, o mito da “conspiração do estrangeiro” e o tema do “inimigo interior” [69].

Universal em seu princípio e em sua vocação, o Império não é, sem embargo, universalista no sentido que correntemente se dá neste termo. Sua universalidade jamais tem significado vocação de extender-se à Terra inteira. Melhor se vincula à idéia de uma ordem equitativa que aspira a federar povos de mesma origem, sobre a base de uma organização política concreta, a margem de qualquer perspectiva de conversão ou de nivelação. O Império, desde esse ponto de vista, é completamente distinto de um hipotético Estado mundial ou da idéia de que poderiam existir princípios jurídico-políticos universalmente válidos em todo tempo e em todo lugar.

O universalismo está diretamente ligado ao individualismo (a humanidade percebida como simples adição de átomos individuais), e o universalismo politico moderno deve ser pensado a partir da raiz individualista do Estado-nação. Em efeito, a experiência histórica mostra que o nacionalismo reveste frequentemente a forma de um particularismo inchado até alcançar as dimensões do universal. Assim, em numerosas ocasiões, a nação francesa foi definida como “a mais universal das nações”, e da suposta universalidade de seu modelo nacional pretendeu-se deduzir seu direito a estender pelo mundo os princípios que a haviam instituído. O espírito francês, assinala Ernst Curtius, “considera a França como uma abreviação do mundo, como um microcosmo completo em si mesmo (...). Todas as pretensões do universalismo foram transferidas à idéia nacional, e servindo-se de sua idéia nacional França pretendeu realizar um valor universal” [70]. Na época em que França se pretendia “a filha primogênita da Igreja”, o monge Guibert de Bogent, em sua Gesta Dei per Francos, aos dos francos instrumentos de Deus, argumento que Felipe o Belo recupera para justificar suas pretensões de independência em relação ao papa: “Cristo encontra no reino da França mais que em nenhum outro país uma base estável para a fé cristã (...). Por isso conferiu certas prerrogativas excepcionais à monarquia francesa e a separou de toda dependência a respeito a respeito de qualquer outra potência que pretendia fazer valer seus direitos sobre ela” [71]. A partir de 1792, a idéia motriz do imperialismo revolucionário será que os “princípios da República” são princípios “universais”. “Somente minha pátria pode salvar o mundo”, dirá todavia Michelet [72]. “Trabalhar por ela (a cultura francesa) ou defende-la no que tem de específico – responderá Maurras como um eco - , é trabalhar e defender o gênero humano, a humanidade” [73]. Desde então, não se tem faltado vozes autorizadas para assegurar que idéia francesa de nação se ordena conforme a idéia de humanidade 9ou de “civilização”), e isso é o que a faria particularmente “tolerante”. Pretensão da que seguramente podemos duvidar, pois a proposição de inverte: se a nação se ordena conforme a humanidade, é que a humanidade se ordena conforme a nação. E o colorário é que qurm se opõe a ela fica excluído já não somente de uma nação particular, mas do gênero humano inteiro. Isso é precisamente o que passou sob a Revolução. Em um primeiro momento, o advento da idéia de nação permitiu projetar a autoridade do monarca e a sua emanação, a aristocracia, definindo-os como alheios ao corpo nacional. Depois do qual, e dado que a nação tinha sido assimilada à humanidade, aristocratas e monarcas se veem excluídos do gênero humano. O universalismo revolucionário, baseado em uma concepção abstrata da humanidade e na assimilação da nação e o universal, não podia senão denegar a qualidade de seres humanos a seus inimigos: quando “o estrangeiro impede à humanidade constituir-se como tal” [74], o universalismo desemboca necessariamente na expulsão da humanidade de aqueles que foram sido estigmatizados como “estrangeiros”. Vemos aí até que ponto é errôneo não ver no nacionalismo mais que um simples particularismo e considerar o universalismo como sua antítese absoluta, tal e como foi feito frequentemente comparando França e Alemanha [75]. “Não há que crer – dizia Simone Weil – que o que se chamou de vocação universal da França permita aos franceses obrar a conciliação entre o patriotismo e os valores universais com mais facilidade que os outros. A verdade é bem pelo contrário” [76].

Estas precisões permitem compreender porque a denominação de “império” deve ser reservada somente às construções históricas que efetivamente merecem tal nome, como o império romano, o império bizantino, o império romano-germânico, o império austro-húngaro, o império otomano. De modo algum são verdadeiros impérios, no sentido que acabamos de indicar, o império napoleônico, o III Reich hitleriano, os impérios coloniais francês ou britânico, nem os imperialismos modernos do tipo americano ou soviético. Estes supostos “iimpérios”, em efeito, não são senão construções que resultam da ação de potências implicadas em um simples processo de expansão de seu território nacional. As “grandes potências” não são impérios, mas nações que simplesmente buscam dilatar-se através da conquista militar, política, econômica, ou de qualquer outro gênero, até alcançar dimensões que excedam suas fronteiras. Assim, na época de Napoleão, o “Império” (termo já utilizado para designar a monarquia antes de 1789, mas simplesmente no sentido de “Estado”) não é mais que uma simples entidade nacional-estatal que busca afirmar-se na Europa como grande potência hegemônica. Do mesmo modo, o império de Bismarck, que também dava prioridade ao Estado, biscava antes de tudo criar a nação alemã. Também foi constatado com frequência o caráter moderno e estreitamente nacionalista do III Reich; Alexandre Kojève observava que “o slogan hitleriano: Ein Reich, ein Volk, ein Führer não é mais que uma –má – tradução em alemão do lema da Revolução francesa: a República é uma e indivisível” [77]. Por outro lado, a incompatibilidade do sistema político hitleriano com a noção de Império se fazia já transparente em sua vontade de Gleichschaltung jacobina e em sua crítica radical da ideologia dos corpos intermediários e dos “Estados” (Stände) [78]. Também no ‘império” soviético prevaleceu sempre uma visão centralista e redutora que implicava um espaço político-econômico unificado e uma concepção das autonomias locais quando menos restritiva. Com respeito ao “modelo” americano, que pretende converter o mundo inteiro a um sistema homogêneo de consumo material e de práticas tecno-econômicas, mal vemos quê princípio espiritual poderia reivindicar se não é, precisamente, o de um universalismo religioso de origem bíblico e puritano que, finalmente, não é mais que um etnocentrismo mascarado.

Os imperialismos modernos não encarnaram em nossa época a idéia de império; longe de tal coisa, precisamente a compreensão em profundidade de quanto esta idéia implica nos permite constatar até que ponto tais imperialismos se distanciaram dela. Isso é o que constatava Julius Evola quando escrevia: “Sem um Morrer para transformar-se nenhuma nação pode aspirar a uma missão imperial efetiva e legítima. Não é possível encerrar-se nas próprias características nacionais e depois pretender, sobre essa base, dominar o mundo ou, mais simplesmente, outras terras” [79]. E acrescenta: “Se as tentativas ‘imperialistas’ dos tempos modernos foram abortadas, precipitando com frequência na ruína dos povos que se haviam entregado a elas, ou se foram fonte de calamidades de todo gênero, é precisamente pela ausência de todo elemento verdadeiramente espiritual e, portanto, suprapolítico e supranacional, e sua substituição pela violência de uma força que é superior à que pretende subjugar, mas que não por isso é de natureza distinta. Se um império não é um império sagrado, então não é um império, senão uma espécie de câncer que ataca o conjunto das funções distintivas de um organismo vivo” [80].

Para que pode servir hoje uma reflexão sobre o conceito de Império? Não é uma pura quimera desejar o renascimento de uma construção imperial conforme o espírito de suas origens? Alguns o pensarão, provavelmente. E sem embargo, é um azar que o modelo do império romano não há deixado de inspirar até nossos dias todas as tentativas de superação do Estado-Nação [81]? É um azar que nos momentos de angústia do pensamento a idéia do Império (a Reichsgedanke) tem mobilizado sempre a reflexão [82]? Acaso não encontramos essa mesma idéia de Império subjacente em todos os debates atuais sobre a construção europeia?

Para numerosos políticos e teóricos, o Estado-Nação é uma realidade insuperável. Desde a extrema esquerda até a extrema direita, o jacobinismo é, nesse sentido, a coisa mais distribuída do mundo. Assim, Charles Maurras, que definia a nação como “o mais vasto dos círculos comunitários que no temporal podem ser sólidos e completos” [83], professava que “não há marco político mais amplo que a nação” [84]. Mas já antes da guerra, enquanto Bernardos reprovava ser “herdeiro dos antigos legistas centralizadores” e lhe tachava de “jacobino conservador” [85], Thierry Maulnier lhe respondia: “O culto da nação não constitui em si mesmo uma resposta, mas um refúgio, uma efusão mistificadora ou, pior ainda, uma temível diversão dos problemas inferiores” [86]. Na outra ponta do espectro político, Julien Benda defendia com o mesmo vigor a idéia de que a nação francesa, desde o tempo dos galeses, nunca havia deixado de tender à unidade, respondendo assim a uma pulsão interior quase metafísica [87]. Maurras e Benda não careceram de herdeiros. O nacionalismo francês é hoje mais jacobino que nunca [88]. “O nacionalismo – advertiam Robert Aron e Arnauld Dandieu – é mais exigente quanto mais oco” [89].

Sem embargo, no momento atual, o essencial do que move o mundo se expressa fora do Estado-Nação. O marco da ação deste se vê questionado, sua esfera de decisão se tornou desbordada. A nação, poderíamos dizer, está sendo contestada ao mesmo tempo por cima e por baixo. Por baixo, com a aparição de novos movimentos sociais, a persistência dos regionalismos e os autonomismos, o desenvolvimento de fenômenos sociais que lhe escapam, a aparição de inéditas formas de vida comunitárias, como se as estruturas intermediárias de socialização quebradas em seu dia pelo Estado-Nação renasceram hoje sob novas formas: o divórcio entre a sociedade civil e a classe política se traduz na proliferação das “redes” e a multiplicação das “tribos”. Mas o Estado-Nação também se vê contestado por cima: está sendo despossuído de seus poderes pelo mercado mundial e a competência internacional, pelo desenvolvimento de instituições europeias e supranacionais, pelas burocracias intergovernamentais, os aparatos tecnocientíficos, as redes midiáticas planetárias, os grupos transnacionais de pressão. Paralelamente, se constata a crescente extroversão das economias a custos dos mercados nacionais. Vemos como se multiplicam os pólos de mundialidade chamados offshore, “divididos através de todo o planeta como enclaves totalmente dissociados das realidades históricas, sociais, ou geográficas” [90]. A economia “global” de mundializa através do jogo dos operadores conjuntos, das firmas transnacionais, das operações comerciais e dos movimentos financeiros executados em tempo zero. Preso de sua concepção puramente espacial do poder, demasiado próximo e ao mesmo tempo demasiado longe dos cidadãos, o Estado-Nação se vê assim confrontado a uma floração de novas identidades coletivas ou comunitárias, e isso em preciso instante em que os centros mundiais de decisão desenham sobre ele uma perspectiva nebulosa. O resultado é que hoje nenhuma nação está já em condições de dominar por si só os flixos econômicos e monetários, manter o valor de sua moeda, assegurar seu provisionamento em matérias primas, garantir a estabilidade política e social, lutar contra a prisão, deter o incremento da criminalidade e da droga. Daniel Bell, retomando uma fórmula clássica, expressava esta situação dizendo que “os Estados nacionais foram feitos demasiado grandes para resolver os pequenos problemas pequenos e demasiado pequenos para resolver os problemas grandes” [91]. A “soberania” dos Estados já não é mais que uma fórmula oca, sem “existência operacional demonstrável” (Denis Rougemont).


O imaginário das nações também está imerso em uma crise radical, e os que falam sem cessar de “identidade nacional” são em geral incapazes de definí-la de uma forma que não seja puramente negativa. O próprio modelo estatonacionl de integração parece ter esgotado todas suas possibilidades: a evolução das instâncias de poder em relação a um sistema de competências tecno-gestoras, que provocaram a implosão do político, confirma que a lógica nacional já não está em condições de integrar nada nem de assegurar a regulação das relações entre um Estado criticado desde todos os flancos e uma sociedade civil em vias de explosão. “Já se trate das funções tradicionais da soberania como a defesa ou a justiça, já das competências econômicas – escreve Jean Mrie Guéhenno - , a nação nos mostra cada vez mais como um marco exíguo, mal adaptado à integração crescente do mundo” [92]. “A verdade – acrescenta Claude Imbert – é que hoje a idéia republicana de nação, nascida do mito revolucionário, se afunda. E que todavia não temos sido capazes de substituí-la” [93]. Aristóteles dizia que uma unidade política é fictícia enquanto não alcança um estado de autossuficiência. Nesse sentido, todas as unidades políticas modernas são fictícias.

No Terceiro Mundo, onde a reivindicação da independência na época da descolonização adotou regularmente a forma de uma vontade de afirmação nacional, o Estado-Nação, desprovido de qualquer fundamento histórico verdadeiro, aparece hoje como uma importação ocidental. A viabilidade a longo prazo das “nações” da África negra ou do Oriente Próximo, por citar somente estes casos, parece cada dia mais incerta, na medida em que a maioria delas nasceu de uma série de recortes arbitrários obrada pelas potências coloniais, profundamente ignorantes das realidades históricas, étnicas, religiosas, ou culturais locais. Por outra parte, o desmantelamento do império otomano, como o do império austro-húngaro, na aplicação dos tratados de Sévrés e de Versalhes, foi uuma catástrofe cujos efeitos todavia sofremos hoje, tal como demonstrou a Guerra do Golfo e o retorno da guerra na Europa central.

Em tais condições, “como não se perguntar sobre a idéia de Império, que até hoje é o único modelo alternativo produzido pela Europa frente ao Estado-Nação? As nações europeias estão ao mesmo tempo ameaçadas e esgotadas. Devem superar-se a si mesmas para não converterem-se definitivamente em domínios da superpotência americana. Como poderia fazê-lo sem tentar conciliar por sua vez o uno e o múltiplo, sem buscar uma unidade que não envolva um empobrecimento de sua diversidade?

Há signos que não enganam. A reunificação alemã, a fascinação pela velha Áustria-Hungria ou o renascimento da idéia de Mitteleuropa [94] se contam entre esses signos. Por si só, a caída do muro de Berlim marcou por sua vez o final do século XX e o fechamento de uma época cujo resultado havia sido o Estado-Nação. Por outro lado, todo o processo de construção europeia empreendido desde há decênios responde, sobretudo, em seus mais recentes desenvolvimentos, a um modelo que deve mais ao do Império que ao do Estado-Nação. Em efeito, nas instituições europeias reencontramos algumas características ‘imperiais” evidentes: o reconhecimento de uma multiplicidade das fontes do direito, a afirmação (ao menos teórica) do princípio de subsidiariedade, a distinção entre nacionalidade e cidadania, a flutuabilidade das fronteiras, a inscrição dos espaços nacionais em um espaço jurídico que os desborda, etc. Sem dúvida falta ainda o essencial: a soberania política, a posta em prática real do prinicípio de subsidiariedade (o “déficit democrático) e a presença de um princípio espiritual forte. Mas é suficiente para fazer acreditável a hipótese de Antoine Winckler, segundo a qual a atual oposição à Europa se deve em grande parte e que “o pensamento político clássico instituiu o Estado-Nação como modelo único de organização polític, esquecendo assim a existência dos outros modelos sócio-políticos’, e em particular aqueles que, como a Hansa ou o Sacro-Império, se fundavam “sobre uma multiplicidade de redes jurídicas e políticas coexistentes, mas não necessariamente coextensivas” [95].

A chamada do Império nascerá de uma necessidade que alguns deixaram nunca de sentir. Em um texto escrito em 1945, mas que não foi publicado até muito mais tarde, Alexandre Kojève apelava já à formação de um “império latino” e levantava a necessidade do Império como alternativa ao Estado-Nação e ao universalismo abstrato. “O liberalismo – escrevia – perde ao não perceper nenhuma entidade política mais além das nacionais. Mas o internacionalismo peca de não ver nada politicamente viável mais desse lado da humanidade. Tampouco tinha sabido descobrir a realidade política intermediária dos impérios, quer dizer, das uniões ou das fusões internacionais de nações aparentadas, que é precisamente a realidade política do momento” [96]. “Idealmente – escreve por sua parte Pascal Bruckner – Europa teria vocação de ser o primeiro Império democrático, única alternativa ao dos becos sem saída: a opressão imperialista e o tribalismo (...). Por primeira vez, um Império seria a garantia de sobrevivência dos primeiros municípios, e não a certeza de sua desaparição” [97]. Jean-Marie Guéhenno, por último, também anuncia a chegada de uma nova “idade imperial”. “Este império não será nem uma super-nação nem uma república universal. Não será governado por um imperador. E, sem embargo, a idéia de Império é o que mais se aproxima à organização que há de vir. Sempre e quando pensemos não nas construções precárias de um Carlos Quinto ou de um Napoleão, mas antes no império romano e, quiçá, no império chinês” [98].

Europa, para fazer-se, necessita uma instância unitária de decisão política. Mas a unidade política europeia não pode construir-se segundo o modelo nacional jacobino, sob pena de ver desaparecer a riqueza e a diversidade de todos os componentes da Europa, do mesmo modo que não pode ser o mero resultado da supranacionalidade econômica cara aos tecnocratas de Bruxelas. A Europa democrática e pluralista não pode fazer-se senão segundo um modelo federal – a “Europa das cem bandeiras” -, mas um modelo federal portador de uma idéia, de um projeto, de um princípio, quer dizer, em última análise, segundo um modelo imperial. Tal modelo permitiria resolver o problema das culturas regionais, das etnias minoritárias e das autonomias locais, problema que no marco do Estado-Nação não pode achar solução verdadeira [99]. Igualmente, permitiria repensar, à luz de certos fenômenos recentes de imigração, toda a problemática das relações entre cidadania e nacionalidade. Este modelo ajudaria a conjurar os perigos, hoje novamente ameaçadores, do irredentismo etnolinguístico e do jacobinismo xenófobo. Por último, e em virtude do lugar decisivo que outorga às noções de autonomia e subsidiariedade, o modelo imperial deixaria amplo espaço para os procedimentos de democracia direta. Princípio imperial na cúspide, democracia de base no cimento: assim se renovaria uma velha tradição.

Hoje se fala muito de Nova Ordem Mundial. E é verdade que uma nova ordem mundial é necessária. Mas sob quê bandeira e impulsionado por quem? Sob a bandeira do homem-máquina, do “ordenantropo”, ou pelo estabelecimento de uma organização diversificada de povos decididos a seguir vivos? Será a Terra reduzida ao homogêneo sob o efeito dessas modas desculturizadoras e despersonalizantes cujo vetor mais arrogante e cínico é hoje o imperialismo americano? Ou os povos encontrarão em suas crenças, em suas tradições e em suas formas de ver o mundo os meios para sua necessária resistência? Há terminado a História, como desejariam os liberais? Se petrificou, como imaginam os defensores do identitarismo xenófobo? Ou todavia pode prosseguir em um relato narrativo renovável até o infinito? Tais são as questões decisivas que se colocam ao amanhecer de um novo milênio.

Quem disse federação, disse princípio federador. Quem disse Império, disse idéia imperial. Hoje não vemos assomar nem a uma nem a outra. E sem embargo, essa idéia se inscreve no segredo da história, inclusive se pelo momento não há achado ainda sua forma. É uma idéia que tem um passado e, em consequência, um futuro. De momento, podemos pelo menos tomar nota. E adotar uma atitude. Na época da guerra dos Cem Anos, a divisa de Louis d’Estouville era “Onde está a honra, onde está a fidelidade, somente aí está minha pátria”. Também na tradição imperial se pode ser cidadão de uma idéia. Isso é o que arma Julius Evola quando escreve: “O que deve unir ou dividir não é o fato de pertencer a uma mesma terra, de falar uma mesma língua ou de ser do mesmo sangue, mas o fato de aderir-se ou não a mesma idéia” [100]. Isto não significa que as raízes carnais e as pertenças concretas sejam desdenháveis; pelo contrário, são essenciais. Isso somente significa que cada coisa deve ser posta em seu lugar. E essa é toda a diferença que pode existir entre a pertença concebida como princípio e a pertença concebida como pura subjetividade, quer dizer, como limite. Somente a pertença posta como princípio permite defender a causa dos povos, de todos os povos, e compreender que a identidade dos primeiros, longe de ser uma ameaça para a dos outros, participa, pelo contrário, do que permite a todos os povos afirmar-se e defender-se juntos contra um sistema global que busca destruí-los sem distinção. Dito em outros termos: não é o que nos pertence o que tem valor; é o que tem valor que nos deve pertencer.

[1] O projeto de Carlos V de reorganizar Europa não sobreviverá, mas seu prestígio será tal que as monarquias “nacionais”, especialmente as de Inglaterra e França, tratarão de monopolizar em seu proveito a simbólica imperial. A respeito disto, Cf. France A. Yates: Astrée. Le symbolisme impérial au XVI
siècle, Belin, 1989.

[2] “Dépérissement de la nation?”, en Commentaire, primavera 1988, p.105.

[3] Cf. Colette Beaune: Les lieux de mémoire. 2: Naissance de la nation France, Gallimard, 1985; Bernard Guenée: L’Occident aux XIV et XV siècles, PUF, 1971. “Ao final da Idade Média -escreve Guenéeos franceses talvez todavia não formam objetivamente uma nação, com uma só língua, os mesmos costumes e os mesmos usos, mas creem ser uma. Estado e nação coincidem (...). Joana d’Arc não teve que formar uma nação que existia já; sua visão foi de levar a um príncipe pouco convincente uma nação de passado já longo. A aparição de Joana d’Arc não é um milagre, é uma consequência” (”État et nation en France au Moyen Age”, en Revue historique, Janeiro-Março 1967, pp.20 y 30).

[4] Raoul Girardet: Mythes et mythologies politiques, Seuil, 1990, p.157.

[5] Le mythe national. L’histoire de France en question, ed. Ouvrières-EDI,
1989, p.114. Cf. também Olier Mordrel: Le mythe de l’hexagone, Jean Picollec,
1981.

[6] Elisabeth Carpentier, em Georges Duby: Histoire de la France, vol.1,
Larousse, 1970, p.362.

[7] L’enracinament, Gallimard-Idées, 1962, pp.134-135.

[8] Cf. Ernst Kantorowicz: Mourir pour la patrie, PUF, 1984.

[9] Cf. Gérard Fritz: L’idée de peuple en France du XVII au XIX siècle, Presses
Universitaires de Strasbourg, 1988.

[10] O termo se estende na mesma época, e com o mesmo sentido, aos demais países. Designa sucessivamente aos patriotas holandeses, hostis aos aliados do Príncipe e republicanos declarados (que a partir da morte de Ana de Orange, em 1759, lutarão contra o stathouder orangista restaurado, Guilhermo V, e depois, em 1793, empurrarão à República francesa a declarar a guerra a seu próprio país), aos insurgentes americanos hostis à autoridades da Coroa, e logo aos belgas adversários dos “estatistas” (ou partidários do regime das corporações) e defensores da Revolução francesa.

[11] “É precisa toda a ignorância partidarista de quem se intitulam nacionalistas – escrevia Ernest Roussel – para não entender a contradição interna que existe em dizer nacionalista realista” (Les nuées maurrassiennes. Étude critique
des “croyances” historiques de l’Action française, Jean Flory, 1936). Em 1798, em suas célebres Mémoires pour servir a l’histoire du jacobinisme, o abade Baruel não hesita em denunciar o nacionalismo para estigmatizar melhor a Revolução. Tem interesse assinalar que seu racionamento contrarrevolucionário é de inspiração universalista: “O nacionalismo – escreve – suplanta o amor geral (...). Assim foi permitido desprestigiar os estrangeiros, enganá-los, ofendê-los. Esta virtude foi chamada patriotismo. E a partir desse momento, por que não dar a tal virtude limites ainda mais estreitos? Assim do patriotismo nasceu o localismo, o espírito de família e, no fim, o egoísmo”.

[12] Op. cit., pp.37-38.

[13] Les débuts de l’État moderne. Une histoire des idées politiques au XIX
siècle, Fayard, 1976, p.92.

[14] Essa analogia foi salientada por René Guénon numerosas vezes, que diz que o Chakravarti é “literalmente ‘quem faz a roda girar’, quer dizer, aquele que, no centro de todas as coisas, dirige, sem participar, o movimento, ou seguindo a expressão de Aristóteles, o ‘motor imóvel’(Le roi du monde, Galliard, 1958, p.18; cf. também L’ésoterisme de Dante, Gallimard, 1957, p.58).

[15] Révolte contre le monde moderne, L’Homme, Montréal, 1972, p.121.

[16] Otto de Habsburgo-Lorena: L’idée impériale. Histoire et avenir d’un ordre
supranational, Presses Universitaires de Nancy, Nancy, 1989, p.32.

[17] Cf. Robert Folz: L’idée d’Empire en Occident du V au XIV siècle, Aubier-
Montaigne, 1953, p.15.

[18] Pierre Damien, em seu Liber gratissimus, chega a escrever que “os reis e os sacerdotes são chamados deuses e cristos pelo ministério vinculado ao sacramento que receberam”. A cristianização do ritual imperial se produz a partir do Século X. Sobre esse tema, , cf. Jean Hani: La royauté sacrée, du pharaon au roi très chrétien, Guy Trédaniel, 1984, pp. 168-188.

[19] A idéia que Frederico II Hohenstaufen tinha sobre seu cargo se expressa certamente em seu Liber Augustalis, assim como nas constituições da Sicília e Melfi. Cf. Antonino de Stefano: L’idea imperiale di Federico II, All’insegna del
Veltro, Parma, 1978; Hans-Dietrich Sander: “Die Ghibellinische Idee”, en
Staatsbriefe, 1, 1990, pp.24-31.

[20] De Monarchia, Félix Alcan, 1933, trad. B. Landry. “Se Dante defendeu a posição (do imperador) – escreve Frithjof Schuon – não era em absoluta por defender o poder temporal contra a autoridade espiritual, mas para impedir que uma autoridade espiritual delimitada fosse suplantada em seu terreno por outra autoridade espiritual igualmente delimitada” (“Mystères christiques”, en Études
traditionnelles, julio-agosto 1948, p. 193).

[21] Les hommes au milieu des ruines, Sept couleurs, 1972, p.141.

[22] Écrits sur l’Europe, vol.2, La Différence, 1994, p.784.

[23] Depois de ter aderido ao republicanismo de Rienzi, Petrarca voltará a suas origens gibelinas (seu padre, contemporâneo de Dante, tinha sido, como este último, expulsado de Florença por suas opiniões pró-imperiais) e pedirá ao imperador que ostentava o título, Carlos IV, a unificação da Itália e a restauração do imperium de Roma. Esta reivindicação, sem embargo, não está isenta de equívocos, na medida em que Petrarca faz de uma aspiração estritamente “nacional” (a unificação italiana) um argumento prévio à renovatio tradicional.

[24] Essais politiques, Pardès, Puiseaux, 1988, p.86.

[25] L’invention des frontières, Institut de stratégie comparée, 1987, p.71.

[26] “Io fui radice della mala pianta Che la terrea cristiana tutta aduggia”. Cf.
Karl Ferdinand Werner, “Das Imperium und Frankreich im Urteil Dantes”, in
Vom Frankenreich zur Entfaltung Deutschlands und Frankreichs. Ursprünge
-Strukturen -Beziehungen. Ausgewählte Beiträge, Jan Thorbecke, Sigmaringen,
1984, pp. 446-464.

[27] Robert Folz: Le couronnement impérial de Charlemagne, Gallimard, 1964.

[28] “Mais que o direito romano – escreve Carl Schmitt -, a noção de ‘caso real’, instrumento político-jurídico em mãos do legista francês, anunciando a evolução ao Estado moderno centralizado” (”La formation de l’esprit français par les légistes”, en Du politique, Pardès, Puiseaux, 1990, p.190). Ao descrever os legistas como “a vanguarda revolucionária do terceiro Estado”, Schmitt não hesita em ver em sua obra a fonte de caráter profundamente jurídico do espírito francês.

[29] Hobbes, por sua vez, escreve: “Minha doutrina difere da prática dos países que receberam de Atenas e Roma sua educação moral”. Franceses e ingleses diferem também neste ponto dos juristas do Sacro Império Romano-Germânico, que a partir do século XVI se referem exclusivamente ao direito romano. “Nas monarquias da Europa extremo-ocidental –escreve Blandine Barret-Kriegel - , o exemplo da cidade romana e o direito romano se veem relegados em proveito do que Hobbes chama de reino de Deus, e que nele designa a história do povo judeu desde a eleição de Abraão até a eleição de Saul, em benefício do que Spinoza chamará – e é um homem que fez escola – o modelo de Estado dos Hebreus” (”Judaïsme et État de droit”, en Jean Halpérin y Georges Lévitte, éd.: La question de l’État, Denoël, 1989, pp.17-18).

[30] Johannes Althusius und die Entwickelung der naturrechtlichen Staatstheorien, Breslau, 1880, 2a. ed. en 1902. Althusius silenciou até hoje pela maioria dos historiadores da ciência política, mas já era mencionado por Edmond de Beauverger em seu Tableau historique des progrès de la ohilosophie politique (1858, pp.64-81).

[31] Politica metodice digesta, ed. según la edición de 1614 por Carl Joachim Friedrich, Harvard University Press, Cambridge, 1932; Politica, Liberty Fund, Indianapolis, 1995, versão traduzida e anotada por Frederick S. Carney, prefacio de Daniel J. Elazar.

[32] Margarida Barroso: “Johannes Althusius, 1557-1638”, em Denis de Rougemont y François Saint-Ouen (ed.): Dictionnaire international du fédéralisme, Emile Bruylant, Bruselas, 1994, p.165.

[33] Althusius escreve em seu prefácio: “Eu sustento que a propriedade e usufruto desses direitos de majestade, para serem legítimos, devem remeter ao reino ou ao povo inteiro, incluso até o ponto de que este não pode renunciar a vontade a tais direitos, transferí-los a algum outro ou aliená-los de nenhum modo, do mesmo modo que não podemos comunicar a outro a vida que possuímos”.

[34] A partir desse momento –estima Denis de Rougemont –“ a soberania do Estado já não pode servir somente para rechaçar o que se detesta. Já não é onipotência, mas potência para rechaçar, e bloqueio de toda solução incompatível com a pretensão que arbitrariamente se alega. Já não é vontade, mas não-vontade, que é querer o não, querer o nada” ” (Op. cit., vol.2, p.795).

[35] L’empire du roi. Idées et croyances politiques en France, XIII-XV siècles, Gallimard, 1994.

[36] “Le concept de Empire”, em Maurice Duverger (ed.): Le concept d’Empire, PUF, 1980, pp.10-11. Cf. também John Gilissen: “La notion d’Empire dans l’histoire universelle”, em Les grands empires, Société Jean Bodin, 1970.

[37] “L’Empire revient”, em Commentaire, primavera 1992, p.19.

[38] Essais politiques, op. cit., p.83.

[39] Depois do impulso do burro ao Sol invicto (Sol invictus), a expressão será instorucida pelo Comodo na titularidade imperial: o imperador se converterá assim no “Sol senhor do Império” (Sol dominus imperii).

[40] “L’empire romain comme modèle”, en Commentaire, primavera 1992, p.28.

[41] Ibid., p.32.

[42] Ibid., p.29.

[43] Ibid., pp. 34-35.

[44] L’histoire, un essai d’interprétation, Gallimard, 1951, p.349.

[45] “Principe fédératif et réalités humaines”, en Edward Hallett Carr, Wilhelm Röpke, Robert Aron et al.: Nations ou fédéralisme, Plon, 1946, p. 268.

[46] Histoire de l’empire des Habsbourg, 1273-1918, Fayard, 1990.

[47] Le libéralisme économique. Histoire de l’idée de marché, Seuil, 1989, p.124.

[48] “Fédéralisme et autonomie”, en Plans, Agosto-Setembro 1932, p.1.

[49] L’invention de la France. Atlas anthropologique et politique, Pluriel, 1981.

[50] Op. cit., p. 141. Sob a Ocupação, em 1943, Simone Weil acrescenta: “Os atuais colaboradores têm, a respeito da nova Europa que forjaria uma vitória alemã, a mesma atitude que se lhes pede ter aos provençais, aos bretões, aos alsacianos, ou aos contadinos a respeito do passado, a respeito à conquista de seu país pelo rei de França. Por que a diferença de épocas haveria de mudar o bem e o mal?” (Ibid., pp.184-185).

[51] Op. cit., p.126.

[52] Sauver nos régions. Écologie, régionalisme et sociétés locales, Sang de la Terre, 1991, p.48.

[53] L’Ancien Régime et la Révolution (1856), Gallimard, 1964, vol.I, p.65.

[54] Le Dix-Huit Brumaire de Louis-Napoléon.

[55] De la souveraineté. A la recherche du bien politique, Th. Génin-Libr. de
Médicis, 1955, p.237.

[56] L’État en France, de 1789 à nos jours, Seuil, 1990, p.100.

[57] Ibid., pp.102-103.

[58] Cité par Mona Ozouf: L’école de la France. Essai sur la Révolution, l’utopie et l’enseignement, Gallimard, 1984, p.33.

[59] “É sobretudo sobre nossas fronteiras – precisa o abade Grégoire – onde os dialetos, comuns aos povos de limites opostos, estabelecem com nossos inimigos relações perigosas, enquanto que, na extensão da República, cada jargão é uma barreira que impede os movimentos do comércio e atenua as relações sociais”.

[60] Op. cit., p.157.

[61] Qu’est-ce que le Tiers-Etat?, PUF, 1982.

[62] Cf. Pierre Rosanvallon: L’État en France, de 1789 à nos jours, op. cit.

[63] “Dépérissement de la nation?”, art. cit., p.104.

[64] Nations et nationalisme, Payot, 1989, p.88.

[65] Essais sur l’individualisme, Seuil, 1983, pp.20-21. Mauss estimava igualmente que a nação não pode desenvolver-se senão em um contexto individualista (Cf. Marcel Mauss: “La nation”, em Oeuvres, vol.3, Minuit, 1969, pp. 573-626).

[66] La nation, essor et déclin des sociétés modernes, Fayard, 1987, p.231.

[67] Citado por Jean-Yves Guiomar: L’ideologie national. Nation, représentation, propriété, Champ Libre, 1974, p.185.

[68] Como é sabido, os revolucionários se consideravam herdeiros tanto dos galeses como dos romanos. Assim se inscreviam em um debate sobre a pluralidade dos componentes da França (a “querela das duas raças”) que durante séculos opôs prtidários e adversários dos Galorromanos e dos francos, cuja “fusão” não havia tido lugar até aproximadamente o ano 1000. Sob o Antigo Regime,a nobreza salientava frequentemente sua proveniência franxa ao mesmo tempo que “troiana”. A tese inversa, de origem galesa, é sustentada por Etienne Pasquier e Guillaume Postel desde o século XVI, enquanto que Bodino, na mesma época, descreve os francos como antigos celtas que atravessaram o Reno antes de voltar a se instalar em sua pátria original. Sob a revolução, a tese de origem franca da nobreza foi conservada, mas em uma ótica desvalorizadora: justamente porque os nobres descendem dos “invasores francos”, podem ser considerados como “estrangeiros”. O mito germânico retornará no século XIX. Em sua Histoire de France, Michelet oporá o “princípio aristocrático da Germânia” à “idéia de igualdade” propagada pelos galeses. Em 1912, em sua lição inaugural no Colégio de França, Camille Jullian afirma ainda que com o advento da França burguesa começou a carreira de uma nação galesa. Na mesma época, historiadores e investigadores seguem enfrentando-se para determinar o caráter “céltico” ou “germânico” de Alsácia.

[69] Cf. Hélène Dupuy: “Un processus paradoxal: la continuité à l’oeuvre dans la constitution du nationalisme français sous la Révolution”, en History of European Ideas, Agosto de 1992, pp.313-318, e Jean-Pierre Gross: “La politique militaire française de l’an II et l’éveil du nationalisme”, ibid., pp.347- 353.

[70] Essai sur la France, L’Aube, 1990, p.29.

[71] Resposta ao edito de coroação do imperador Henrique VII.

[72] Le peuple (1846), Flammarion, 1972, p.246.

[73] Quand les Français ne s’amaient pas, p.296.

[74] Sophie Wahnich: “L’‘étranger’ dans la lutte des factions”, en Mots, marzo 1988, p.127.

[75] Sem entrar nesta problemática, limitêmo-nos a recordar que Fichte, um dos principais precursores do “pangermanismo”, foi toda sua vida fiel aos ideais da Revolução (Cf. Martial Guéroult: Études sur Fichte, Aubier, 1974 e 1977). Sobre a maneira em que podem conduzir ao etnocentrismo tanto o “universalismo francês”, alienado sobre a idéia de “civilisation”, como o “nacionalismo alemão”, alienado sobre a idéia de “Kultur”, cf. Louis Dumont: Homo AEqualis II. L’ideologie allemande: France-Allemagne et retour, Gallimard, 1991.

[76] Op. cit.,p.187.

[77] É interessante assinalar que, sob a Ocupação, um dos tenores da Colaboração, Marcel Déat, não hesitou em traçar um paralelo entre a Revolução Francesa e a revolução nacional-socialista, ambas derivadas para ele de uma mesma “corrente autoritária, centralizadora, hierárquica, organicista”. O Estado jacobino – escrevia Déat – é a sua maneira totalitário, como o Reich. O federalismo girondino é duramente combatido, a unificação do país é enérgicamente levada ao fim, inclusive desde o ponto de vista linguístico. é um azar que Adolf Hitler tenha prosseguido ao mesmo esforço desde 1933?” (Pensée allemande et pensée française, Aux armes de France, junio 1944, p.21). Déat continua comparando Hitler com Robespierre, a Waffen SS aos voluntários do ano II, as assembléias revolucionárias ao partido único, e conclui: “A Revolução Francesa tendeu ao nacional-democratismo e nós tendemos hoje a um nacional-socialismo. Mas o primeiro movimento era tão revolucionário como o segundo, tinha o mesmo sentido, ia na mesma direção. É absolutamente falso querer contrapô-los” (ibid., pp.38-39). O caráter apologético da frase a faz ainda mais chamativa.

[78] Cf. por exemplo Justus Beyer: Die Ständeideologien der Systemzeit und ihre Ùberwindung, Damstadt, 1942.

[79] Essais politiques, op. cit., p.62.

[80] Révolte contre le monde moderne, op. cit., p.124.

[81] “Roma – assinala Pierre Chanu- recorreu à herança de Alexandre (...). Alexandre havia recorrido à herança aquemênida (...). Mas Roma fabricou verdadeiramente o Império. E será o modelo romano o que preencherá dois milênios da consciência mediterrânea e européia, e depois, por desculturização, a consciência universal a partir do século XIX” (”Empires déments, empires avortés”, em Jean-Paul Charnay, éd.: Le bonheur par l’Empire ou le réve d’Alexandre, Anthropos, 1982, p.131).

[82] Na Alemanha, sobretudo sob a República de Weimar, se assistiu a uma verdadeira afloração de publicações sobre o tema do Império e do “pensamento do Reich” (Reichsgedanke). Sem embargo, entre todos os autores que trataram a matéria existe uma grande divergência acerca da significação da noção de Império, assim como sobre a relação entre o Reich medieval germânico e o imperium romano.Cf. Paul Goedecke: Der Reichsgedanke im Schriftum von 1919 bis 1935, tesis, Marburg/L., 1951.

[83] Mes idées politiques, Albatros, 1983, p.281.

[84] Enquête sur la monarchie, 1900-1909, primeira edição em livrarias Nouvelle Librairie Nationale, 1909, p.XIII.

[85] Scandale de la vérité. Nous autres Français, Seuil-Points, 1984, p.70.

[86] Au-delà du nationalisme, Gallimard, 1938.

[87] Cf. Julien Benda: Esquisse d’une histoire des Français dans leur volonté d’être une nation. Segundo Benda, como já assinalou Jacques Nanteuil, “França é uma idéia anterior aos franceses, interior a cada um deles e que tende a realizar as condições necessárias para sua existência” (Cahiers de la Nouvelle Journée, 25, Bloud et Gay, 1933, p.241). Mais radical, Henri Lefebvre estimava que, neste livro, Benda adota “a definição fascista da nação” (Le nationalisme contre les nations, Méridiens-Klincksieck, Paris, 1988, p.99).

[88] Em 10 de Julho de 1986, Jean-Claude Martínez, deputado do Front National, declarava o seguinte sobre a Nova Caledônia: “O princípio de autodeterminação é uma norma persersa, uma máquina de trapacear povos. Atenta contra a integridade do território e contra a unidade da República. O sangue e fogo temos devolta ao seio da França a Vendée dos chuanes, o Languedoc dos cátaros, as Cévennes das camisas, a Comuna, e os federalistas e os girondinos. Vamos agora abrir uma porta em Nova Caledônia para a independência?

[89] Décadence de la nation française, Rieder, 1931, p.41.

[90] Jean Chesneaux: “Désastre de la mondialisation”, Terminal, Julho-Agosto 1989, p.10.

[91] A fórmula que descreve o Estado moderno como “por sua vez demasiado grande e demasiado pequeno” foi lançada pelos “não-conformistas dos anos 30”, e mais precisamente pelo grupo da revista L’Ordre Nouveau (Alexandre Marc, Robert Aron, Arnaud Dandieu, Daniel-Rops), publicada a partir de 1933. A revista tomava seu título ao socialista francês Victor Considérant, e foi também, na Itália, o título da revista de Gramsci: Ordine Nuovo (1919-1920). Em sua Carta aberta aos europeus (1970), Denis de Rougemont retoma a mesma fórmula a propósito dos Estado-Nação unitários: “Todos, sem exceção, são por sua vez demasiado pequenos se se os mira a escala mundial, e demasiado grandes se se os julga por sua incapacidade para nimar suas regiões a oferecer aos seus cidadãos uma participação real na vida política que pretendem monopolizar”. E concluia: “Porque são demasiado pequenos, os Estados-Nação deveriam federar-se a escala continental, e porque são demasiado grandes, deveriam federalizar-se em seu interior”.

[92] La fin de la démocratie, Flammarion, París, 1993.

[93] Le Point, 8 Janeiro 1990.

[94] Cf. Claudio Magris: Le mythe de l’Empire dans la litterature autrichienne moderne, L’Arpenteur-Gallimard, 1991.

[95] Art. cit., p.17. A conclusão do autor é que o Império poderia ser por sua vez um exemplo e um mito para os europeus do final do século XX.

[96] “L’empire latin”, La Règle du jeu, 1, Maio 1990, p.94.

[97] Le vertige de Babel. Cosmpolitisme ou mondialisme, Arléa, 1994, pp.49-50.

[98] Op. cit., pp.71-72.

[99] “Todo esforço descentralizador que venha de um Estado-Nação –escreve Daniel Rops – não tem oportunidade alguma de sair bem, pois o propósito do Estado-Nação é ser centralizador” (“Principe fédératif et réalités humaines”, art.cit., p.268).

[100] Les hommes au milieu des ruines, op.cit., p.41.

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