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quarta-feira, 27 de abril de 2011

Dilemas morais da economia política

Um amigo, professor de Oxford, me confidenciou o que ele considera uma das características mais perversas de nossa profissão: apenas nós, os professores, envelhecemos!
– Já reparaste como nossos alunos permanecem com a mesma idade? Desde que dou aula eles têm entre 20 e 24 anos. Já do lado de cá, cada ano que passa eu fico mais velho!
É a pura verdade, preciso reconhecer. Mas não me parece um motivo suficiente para que eu me arrependa da escolha feita ainda numa tenra idade. O que me espanta, semestre após semestre, é o fato de que chegam à metade do curso superior conhecendo apenas os argumentos dos críticos do capitalismo, como se vivessem numa sociedade degenerada, em claro declínio! Sabem de cor críticas às injustiças do sistema baseado na liberdade econômica e na propriedade privada – pobreza, desigualdades sociais e políticas, exploração econômica do homem pelo homem, dependência dos países mais pobres em relação aos mais ricos, tendência à deterioração dos termos de troca das commodities, etc.
Meus melhores alunos, quase sem exceção, pouco ou nada sabem sobre processos e tendências históricas que demonstram justamente o oposto: que tendem a crescer os níveis de bem-estar dos cidadãos das sociedades nas quais as liberdades individuais são ampliadas. Quanto mais livres são os cidadãos para definir os contornos de suas próprias vidas e as bases de suas interações sociais, políticas e econômicas com os demais, melhores tendem a ser os resultados agregados, medidos por indicadores econômicos, sociais e políticos abrangentes – PIB per capita, exportações líquidas, Índice de Desenvolvimento Humano, Índice de Liberdade Econômica, Índice de Liberdade Política, Índice de Liberdade de Imprensa, Índice de Liberdade de Expressão, Índice de Liberdade de Organização, etc.
Essa coincidência entre expansão das liberdades e da prosperidade se explica pelo fato de que o crescimento econômico de uma sociedade ou país é função da soma da prosperidade de cada um de seus membros. E esta depende de três elementos básicos: sorte, trabalho árduo e capacidade para elevar a produtividade (individual ou geral) via inovações – técnicas ou gerenciais.
Defrontar-me, semestre após semestre, com o imperativo de ter que desconstruir o “marxismo vulgar” neles inculcado pelos mecanismos de socialização presentes em nossa sociedade – família, escola, igreja, imprensa e política – é o que me parece mais perverso em minha profissão. Sempre imagino o quanto poderíamos avançar se ao menos eu não tivesse que gastar tantas horas preciosas de meus cursos apenas para desfazer as visões equivocadas sobre a perversidade do capitalismo, que esses jovens esposam. Tão grave quanto essa crença de que o capitalismo é um sistema perverso é a expectativa, igualmente falsa e ingênua, de que a redenção para a vida social virá por meio da política – a revolução ou as eleições, por meio das quais uma nova classe de bem-aventurados governantes chegará ao poder e promoverá mudanças profundas nos fundamentos da interação social – nas instituições, quando não na própria natureza humana, por meio da elaboração de planos que visam subordinar cada um a um papel numa enorme engrenagem orientada à realização de um objetivo coletivo.
Nos últimos anos, desenvolvi um argumento razoavelmente eficaz para explicar-lhes, por um lado, por que a dinâmica da interação social nas sociedades abertas é conducente ao aumento da prosperidade e do bem-estar da maioria, senão de todos; e, por outro, por que isso necessariamente implica desacreditar a política como via de salvação coletiva – exceto enquanto mecanismo para promover o aumento das liberdades individuais. Trata-se dos “dois dilemas morais da economia política”, os quais passo a expor.
Em qualquer sociedade, os preços relativos de cada um dos bens e fatores de produção (terra, trabalho e capital) alteram-se ao longo do tempo. Tais mudanças são provocadas por cada um e pelo conjunto dos seguintes elementos, também variáveis: (i) as condições de escassez relativa; (ii) os gostos dos consumidores; (iii) o conhecimento e tecnologia disponíveis para produzir; (iv) as regras que estruturam as escolhas das pessoas (consumidores, trabalhadores, aprendizes, gestores, empresários, comerciantes, etc.), as quais dependem dos valores e do jogo político em torno delas; e, (v) as condições físicas (geografia) em que se dá a produção.
Pois bem, se os preços relativos dos bens e dos fatores de produção mudam com o tempo, é natural que variem também as rendas e a capacidade de consumo (bem-estar) dos proprietários desses fatores. Deriva desse processo uma verdade inescapável, confirmada na história humana: no longo prazo, não há renda garantida para qualquer indivíduo ou grupo social. Renda e bem-estar serão funções (1) da inclinação, da capacidade e da sorte de cada um para ajustar-se às mudanças exógenas que afetam a variação de suas respectivas rendas, ou (2) da capacidade que tenham para impor aos demais membros da sociedade algum mecanismo político de transferência de renda. O ajuste, se e quando ocorrer, dar-se-á sob informação imperfeita – o que está longe de ser uma boa condição para assegurar o êxito da empreitada. Já a transferência política da renda implicará, automaticamente, perda para aqueles se forem obrigados a abdicar de seu próprio bem-estar para viabilizar o de outrem.
Que, no longo prazo, não haja renda garantida para ninguém em razão da própria dinâmica da interação social em qualquer tipo de sociedade (feudal, capitalista, socialista, agrícola, industrial, pós-industrial, etc.) é uma verdade que implica ao menos dois dilemas. Primeiro, o que o conjunto da sociedade, por meio do estado, deve fazer para promover o aumento do bem-estar de cada um dos seus membros no longo prazo? Segundo, o estado deve tentar impedir que declinem as rendas de alguns membros específicos da sociedade, mesmo que em detrimento das rendas de outros membros?
Os dois dilemas morais da economia política têm a ver com a questão de ser ou não desejável ao conjunto da sociedade – por meio do estado – provocar uma mudança exógena (elaborar um plano...) para lidar com o fato inescapável de que a própria dinâmica espontânea da sociedade elimina a possibilidade de garantir renda para qualquer indivíduo ou grupo particular por muito tempo.
Para responder a esses dilemas é necessário considerar (a) como funciona o estado, (b) a possibilidade de que seus integrantes sejam capazes de elaborar algo que viole a tendência referida de alteração de todas as rendas relativas no longo prazo e, diante dessa impossibilidade, (c) quais seriam as justificativas para que o estado arbitrasse entre os níveis de renda e bem-estar de diferentes (grupos de) cidadãos, garantindo mais renda a alguns em detrimento dos demais.
De modo bastante simplificado, o estado é uma coleção de agências ou órgãos administrativos, separados e agregados por temas e/ou funções e compostos internamente por cargos hierarquicamente estruturados e ocupados temporariamente por indivíduos eleitos e/ou nomeados para desempenhar funções gerais ou específicas, seguindo rotinas e normas de conduta e prestando contas a seus superiores políticos e/ou hierárquicos. Como indicou Max Weber, o aspecto distintivo desse grupo de indivíduos que integram o estado em relação a todos os demais grupos da mesma sociedade é que a implementação de suas decisões pode valer-se do uso da força, legitimamente. Weber também nos ensinou que tais indivíduos podem viver “da política” ou “para a política”, sendo o primeiro o subgrupo dos funcionários do estado e o segundo dos seus dirigentes. Todos os agentes do estado querem obter renda do exercício de suas funções, mas os dirigentes se destacam pela busca adicional de prestígio e de poder – a capacidade de fazer com que os demais (funcionários e cidadãos) tomem decisões que interessam mais aos dirigentes que a si mesmos.
As decisões do estado são tomadas no âmbito daquelas agências. Elas resultam do enfrentamento de interesses e visões de mundo (ideias) conflitantes, representadas pelo corpo de dirigentes; das rotinas burocráticas; das restrições materiais e institucionais; e do acaso. Essas decisões são tomadas sob informação imperfeita e sob a pressão de indivíduos e grupos interessados em influenciá-las em função de seus interesses e ideias particulares. Uma vez implementadas, condicionam as escolhas dos cidadãos comuns porque alteram as estruturas de recompensa [payoff structures] presentes na vida social, (artificialmente) promovendo cursos de ação mais rentáveis do que os que tenderiam a ser privilegiados caso elas não existissem. Para serem efetivas nesse sentido, as decisões estatais precisam amparar-se em mecanismos de monitoramento e punição dos comportamentos dos cidadãos que violam seus preceitos. Por isso custam recursos do contribuinte e provocam ineficiências.
Olhando sob essa perspectiva – que foi muito avançada pelos economistas da tradição institucionalista, tais como Friedrich von Hayek, James Buchanan, Mancur Olson Jr. e Douglas North – vemos que nada nos leva a crer que as decisões das agências estatais venham a ser, necessariamente, as mais corretas ou desejáveis. Ajudam-nos, isso sim, a entender os fracassos dos grandes planos e os dos regimes autoritários e totalitários com suas ideologias abrangentes.
Nada do que venham a fazer os dirigentes do estado – em sistemas democráticos ou autoritários – pode alterar o fato elementar da escassez e nem um princípio também elementar da ação humana sob informação imperfeita, qual seja, a busca por mais renda. Sendo assim, tudo de substantivo que as ações dos estados podem provocar é, de um lado, universalizar bons incentivos ao contínuo ajuste dos planos individuais à dinâmica incerta da vida social (é o ideal liberal); ou, alternativamente, criar mecanismos artificiais de transferência de renda (regulações, políticas públicas, jurisprudência, etc.) segundo alguma justificativa moral parcial e contestável, e sob o contexto político descrito nos parágrafos acima. Essa é a natureza do processo político nos países mais intervencionistas.
Em ambos os casos, indivíduos e grupos sofrerão quedas relativas de renda quando ocorrerem mudanças nos preços relativos dos bens e dos fatores de que são proprietários. Mas enquanto nos países em que os Estados assumem uma postura mais liberal esses declínios tenderão a ser mais breves e provocar os próprios ajustes nos planos que podem revertê-los, nos países com governos mais intervencionistas o conflito político em torno dos mecanismos políticos de transferência de renda tendem a se intensificar e a propagar o declínio da renda para mais e mais gente, por muito mais tempo. Foi por isso que o socialismo foi rejeitado em todas as sociedades em que foi imposto por dirigentes autoritários. E é por isso que as sociedades abertas são mais prósperas e democráticas.
Mas que só os professores ficam mais velhos com o passar dos anos também é uma verdade dura de aceitar, ao menos para os que ficam do lado de cá...

Carlos Pio é doutor em Ciência Política, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Professor Titular do Instituto Rio Branco e autor do livro Relações Internacionais – economia política e globalização (Brasília, Funag/Ibri, 2001).

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