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quinta-feira, 26 de março de 2020

Mundo Moderno

Em tempos em que o Brasil sofre da mais tenebrosa escassez intelectual em matéria de humanidades, e as cátedras universitárias usurpam o espaço da real filosofia em favor de auto-ajudas e platonismos baratos, resta recorrer à rica historiografia da intelectualidade nacional no anseio de pôr em vigência, novamente, as análises e valores daqueles responsáveis por elaborar verdadeiras e respeitáveis filosofias que atendam às demandas da atual crise filosófica nacional. Valho-me do ensejo, portanto, para prestar aqui minha singela contribuição ao resgate da memória de Mário Ferreira dos Santos, este que, tendo sido sistematicamente silenciado pelos acadêmicos brasileiros durante mais de meio século, recebe agora – ainda que não com a devida intensidade – seu merecido reconhecimento póstumo.
Na obra “Invasão Vertical dos Bárbaros”, o mais proeminente filósofo brasileiro do século XX, empreende um denso estudo relativo aos rumos tomados pela civilização brasileira frente ao processo de perda dos valores e tradições legado pelo espírito da modernidade e intensificado pela globalização. A problemática da degeneração é abordada nos termos de uma “invasão bárbara vertical”. O autor justifica a opção pela terminologia segundo o argumento de que as invasões bárbaras, outrora frontais e declaradas, hoje manifestam-se mediante infiltrações culturais e sucessões de ataques aos valores tradicionais e nacionais.
Nos termos do filósofo, hoje, “os bárbaros” portam-se como nós, vestem-se como nós, fomentam a anti-cultura de dentro para fora da sociedade: nas academias, na mídia impressa e televisionada, na política, etc. São eles os promotores de toda espécie de atentado contra o pudor público e os valores do povo vendidos sob o rótulo do “progresso” e de “aceitação das novas conjunturas”. O bárbaro é aquele que, mesmo desconhecendo o fim último dos valores que põe em vigência, atende às agendas escusas do capital apátrida internacional mediante o fomento daquilo o que hoje poderíamos denominar como “progressismo” ou, segundo uma categorização mais abrangente, “liberalismo”. 
Mário Dias Ferreira dos Santos (1907 – 1968) nasceu em Tietê, São Paulo. Tradutor e filósofo brasileiro, traduziu várias obras clássicas diretamente de seus idiomas originais. Alguns dos autores traduzidos pelo mário foram Aristóteles, Pitágoras, Friedrich Nietzsche, Immanuel Kant, Blaise Pascal, Tomás de Aquino, Duns Scott, Henri-Frédéric Amiel e Walt Whitman além de ter escrito muitos livros sobre várias disciplinas, publicados com recursos próprios sob o nome “Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais”. Créditos da Imagem: Reprodução.
Assim, as seguintes paráfrases subscritas e acrescidas de comentários pessoais de Invasão Vertical dos Bárbaros, sumarizam o entendimento da degeneração social segundos os termos de Mário Ferreira dos Santos quanto a diversos tópicos vigentes na política e, sobretudo, na vida social. Observe como a cadência filosófica de Mário Ferreira, para além de meras abstrações metafísicas, abre margem à aferições antropológicas relativas ao comportamento do brasileiro médio as quais, a despeito de suas limitações temporais intrínsecas à abordagens relativas a tópicos contingentes, permanecem extremamente atuais e cava vez mais pertinentes:

Quanto ao papel degradante da grande mídia

“Os meios de vulgarização intelectual de nossa época, periodismo, rádio, televisão, o teatro e o livro estão infestados da mais desenfreada propaganda do inferior e do primitivo[…]. É espantoso a supervalorização do crime violento[…]. Há periódicos que se especializam na divulgação pormenorizada e até sádica dos crimes violentos. A figura do criminoso é acentuada de tal forma que se torne exemplar, e muitos desejam alcançar a notoriedade que tais criminosos conseguem. O criminoso […] é exaltado como inteligente, e a astúcia é apresentada como virtude. A audácia desenfreada é índice de heroicidade.
A vida de um jogador de futebol tem importância biográfica superior à de um Pasteur. Seus passos são examinados, seus gestos são descritos,seus gostos imbecis são acentuados, suas preferências ridiculamente tolas apresentadas como expressões do mais elevado gosto, sua saúde faz trepidar de medo as multidões[…]. Não é evidente a intenção de explorar o que há de mais baixo no homem?”
É quase impossível para brasileiro médio, atento à crítica de Mário Ferreira quanto a exaltação da casta criminosa, não lembrar-se, por imediato, da figura de Suzane Von Richthofen, cujo crime hediondo chocou o Brasil em 2002 e, por ação da grande e velha mídia, não cessa de ser rememorado ano após ano em seus mínimos detalhes no obsceno “aniversário do crime”. Para o deleite dos jornalistas carniceiros, a tão incessantemente reportada tragédia protagonizada por Suzane, agora promete consagrar-se na memória nacional em uma deliberada romantização do crime mediante a execução de um longa-metragem de suspense baseado nos fatos reais do ocorrido. A situação torna-se ainda mais abjeta quando lembramos do sofrimento de Andreas Albert voz Richtofen: o irmão de Suzane von Richtofen que, sem qualquer perspectiva de vida, jamais recebeu qualquer atenção por parte da mídia.
Análogo a cobertura jornalística dos caso Richtofen, convém retomar o empreendimento sádico da mídia tradicional para com a cobertura de demais tragédias nacionais, como o rompimento da barragem de Brumadinho, momento no qual, a preocupação maior da mídia televisiva, era capitalizar o sofrimento dos desabrigados; no massacre ocorrido em um colégio de ensino fundamental e médio, na Cidade de Suzano, em 2019, abutres travestidos de repórteres disputavam uma entrevista com os pais do assassino no anseio íntimo de suprir suas demandas sádicas do entendimento de uma mente doentia; dentre inúmeros outros casos que aqui poderiam ser citados.

Quanto a valorização do tribalismo

“As multidões desenfreadas nas ruas, que são o caminho para as grandes brutalidades e injustiças, manifestações do primitivo, mais um exemplo de horda, movidas por paixões, sobretudo o medo, aguçadas pelos exploradores eternas de suas fraquezas, pelos demagogos mais sórdidos, passam a ser exemplo de superioridade humana […]. São elogiados como manifestações de “consciência social”, da “vontade popular”, etc. Não há aí nada de grandioso…”

Quanto ao reflorescimento de credos primitivos

“Outro aspecto que revela a barbarização é a floração crescente dos credos primitivos. As religiões dos ciclos florais inferiores, a maneira primária de conceber a divindade, os rituais mais primitivos encontram campo livre […] tais fatos se multiplicam em uma mistura de cristianismo, espiritismo, feitiçaria, umbandismo e apresentam as formais mais bizarras. […] O despertar do primitivo bárbaro sob a pseudomorfose cristã é um dos aspectos mais terríveis em nossa terra.”
Se Mário Ferreira estivesse hoje vivo para constatar a atual situação dos credos primitivos no Brasil, certamente ele morreria de desgosto diante do agravamento da conjuntura: toda a profética obra do papa Bento XVI, “Ser Cristão no Neopaganismo”, configura-se na realidade mediante a deliberação pelo escárnio público da fé cristã e, de forma inversamente superior, a supervalorização de todo o tipo de espiritualidade que avilte contra a dignidade humana. Em 2020, no Brasil, enquanto a Mangueira e demais escolas de samba promovem a mais sórdida propaganda anti-cristã na Sapucaí, qualquer mínima consideração relativa aos sacrifícios infanticidas praticados por indígenas em reservas naturais, é logo ostracizada na condição de “racista”. Todo o tipo de manifestação não-cristã de religiosidade é indiscutivelmente equiparada a religião fundadora do modelo ocidental de civilização e diga de maior reverência e reconhecimento.

Quanto a valorização de todo o tipo de inferioridade

“Há uma valorização desenfreada que se faz na baixa dos valores. Não se trata apenas de uma desenfreada especulação que se faz no que é baixo (crime, delinquência, vício, sensualismo excessivo, acentuação das formas viciosas, baixa literatura, supervalorização do herói popular, afagado pelas multidões e recebendo as mais altas pagas, etc.), mas, sobretudo, pela inversão que se faz de tais valores, a ponto de se pretender estabelecer que o mais alto consiste em ser mais baixo […].
Humoristas, pobres humorista sem poder criador, apontam o casamento sempre como uma desgraça que cai sobre o homem, descrevem o sábio como um charlatão, o honesto como um hipócrita, a sogra como uma megera, o religioso como um tartufo, o ladrão, o malandro como exemplos de acuidade mental…”
No estrato a cima, o filósofo destaca, com ilustre brilhantismo, uma das mais perigosas idiossincrasias da produção cultural brasileira: a glamourização de todo tipo de comportamento desordeiro e anti-ético, a inversão absoluta de todos os valores que permeia mesmo os sectos mais elevados da alta cultura nacional. Esse discurso tipicamente progressista que, após anos de legitimação cultural, agora efetiva-se na prática pelas bocas imundas de congressistas e legisladores.
Se, à título de exemplo, fosse empreendida uma busca historiográfica acerca da representação que o crime organizado recebe na literatura brasileira, observaria-se que, desde Jorge Amado em “Capitães da Areia”, passando Mário e Andrade no vergonhoso “Macunaíma”, até as telenovelas de Dias Gomes, uma longa trajetória marcada pelo esforço de consagrar os criminosos na qualidade “vítima social” ou, no caso de Jorge Amado, na qualidade de guardiões da moral. Seria absurdo supor que, no longo prazo, essa produção cultural envenenou o consciente coletivo no sentido de legitimar toda a criminalidade indiferença frente aos nossos semelhantes?
Eduardo Salvatti

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