O “caso Maria Bethania” movimentou a rede ontem. Estive no seminário do Instituto Millenium — ainda voltarei ao assunto — e não tive tempo de escrever a respeito. Faço-o agora. Tomo o episódio como um sintoma. Todo mundo deve saber da história a esta altura, mas vai uma síntese: o Ministério da Cultura autorizou a cantora a captar, via Lei Rouanet, R$ 1,3 milhão para um blog em que aparecerá declamando poesias. A direção do projeto é de Andrucha Waddington. O tema, e nem poderia ser diferente, mobilizou ontem as redes sociais. A esmagadora maioria das pessoas que se manifestaram criticou a autorização. “Captação” quer dizer renúncia fiscal — a empresa vai abater do imposto que deve parte do que “investiu” em “cultura”. É DINHEIRO PÚBLICO, SIM!
Waddington reagiu às críticas. Na Folha de hoje, ele afirma: “Se fosse documentário ou filme para ser visto por cinco mil pessoas no cinema, ninguém estaria reclamando. Parece que internet não é um meio válido. Lá [no blog], os vídeos vão ser vistos por milhões, e de graça. Preciso trabalhar com uma equipe, com o mesmo padrão de qualidade dos meus filmes.” Ninguém aqui duvida da competência do moço e de suas exigências técnicas. O ponto, definitivamente, não é esse. Antes que chegue a ele, noto que Waddington também parece não ver com bons olhos os “filmes para cinco mil pessoas” feitos com capilé oficial. Nisso, estamos juntos!
Acho que o cineasta não está ligando a crítica à coisa. Vozes da sociedade brasileira têm reagido mal à facilidade com que nomes estelares das, vá lá, “artes” conseguem incentivos para seus projetos. A Lei Rouanet virou o “Bolsa Família” de nomes consagrados. Artistas que lotam casas de espetáculo dia após dia recorrem à lei para montar os seus shows. Faturam uma dinheirama — é justo; trabalharam por isso — sem que tenham, e nisto está o privilégio, investido um centavo na empreitada, toda ela saída da tal lei de incentivo. É injusto. Nós trabalhamos para isso. Em outras palavras: o custo é socializado com todos os brasileiros, mas o lucro, evidentemente, é privado.
Se o blog vai ter mesmo milhões de acessos, por que uma artista do porte de Bethania precisa recorrer ao dinheiro público para montar o seu projeto? Empresas certamente estariam interessadas em anunciar os seus produtos na página. Waddington erra também quando fala da gratuidade. Ao contrário: todos estarão pagando pelo blog, até mesmo aqueles que não são fãs de Bethania e que não acessarão a sua página. Essa é uma confusão, aliás, muito típica quando se fala em leis de incentivo: fica parecendo que o dinheiro não sai de lugar nenhum.
É claro que estamos diante de um exemplo de falta de critério — ou de critério torto. Sou contrário a incentivo de qualquer natureza, deixo claro. Mas como sei que seria malhar em ferro frio, advogo que ele obedeça a algumas regras. Pergunto: incentivo a quê e a quem? O “quê” remete à obra que vai contar com um empurrãozinho do estado. Entendo que o trabalho deveria ter a marca de uma consistente inovação, o que, definitivamente, não é o caso de Bethania. A avaliação seria um tanto arbitrária? Sem dúvida! Não menos do que hoje — mas, ao menos, estaria comprometida com o novo. O “quem” remete ao artista agraciado. Que sentido faz “incentivar” medalhões que dispõem de recursos, muitos deles com óbvios sinais exteriores de riqueza, para montar seus projetos? Tenham paciência!
Querem ver? Se o cantor Latino decidir criar um blog para o exercício de sua “arte”, há alguma chance de o Minc lhe dar autorização “para captar”? Não! A concessão do benefício obedece, no caso, a um critério de gosto e influência. “Está comparando Latino a Bethania?” Estou, sim! Nenhum deles precisa de dinheiro público para exercer o seu ofício. O fato de um transitar entre os bem-pensantes — e até pode ser por bons motivos —, e o outro não é que acaba fazendo a diferença. De resto, tentem me convencer de que a contribuição de Bethania à poesia, com o seu blog, será superior à de Latino à música…
Trata-se de um patrocínio despropositado — e não é o único —, sintoma de um tempo. O seminário do Millenium de ontem debateu liberdade de expressão. Eu participei do painel sobre o politicamente correto. Em todas as conversas, pairava, monstruosa, a sombra do Estado, que, parece, é onde os brasileiros cedo ou tarde acabam se abrigando. Estamos fazendo uma nação de estado-dependentes. Não acho que isso possa dar em boa coisa, mas não quero dar relevo ao profeta que não sou. Não são só os artistas que estão nessa. Boa parte do empresariado está pendurado nas tetas do estado.
O Brasil é mesmo um país sui generis. Nos EUA, por exemplo, o showbizz arrecada impostos; aqui, ele come impostos. “Ah, mas olhe o tamanho da economia lá etc”. Sim, olho! Eu diria que a nossa indústria do entretenimento é, proporcionalmente, menor do que a sua economia. Aqueles que deveriam ser os empreendedores preferem as facilidades oficiais. Este é um país de aristocratas — agora, dos aristocratas progressistas!
Pausa.
Estou no avião. Há uma revistinha chamada “Brasil - Almanaque de Cultura Popular”. Tem o apoio do Ministério da Cultura — lei de incentivo, vocês sabem, como Bethania… É feita para circular nos aviões da TAM. A primeira página dupla de anúncio é da CEF. A segunda pagina dupla de anúncio é da Petrobras. A terceira página dupla de anúncio é do Banco do Brasil. É uma publicação da “Andreato Comunicação e Cultura”. O diretor editorial é Elifas Andreato. O diretor executivo é Bento Huzak Andreato. A editora de imagens é Laura Husak Andreato.
É um manual mesmo, como os de antigamente, com pílulas de curiosidade sobre isso e aquilo… A gente não sente falta de nada porque qualquer coisa poderia estar ou não estar ali. Tento ler tudo o que me cai às mãos, até bula de remédio — como Gabriel Chalita lendo Sartre aos oito anos, “não entendo nada, mas adoro…”.
Volto ao manual da Família Adreato patrocinado pela Família Brasil. Há uma notinha com este título: “Nem todos os adultos podem ver as revistas ‘para adultos”. O texto é este:“Claro que, se a Biblioteca Nacional recebe todos os periódicos publicados no Brasil, sua coleção de impressos eróticos e pornográficos é bastante extensa. Playboy, G Magazine, Sexy e títulos mais inusitados como Homem Macho, dos anos 1930, ou a fotonovela Carol Blue, dos anos 1980, estão todos armazenados. Comprovam costumes e tradições ao longo das épocas. Entretanto, não estão disponíveis para o público comum. Para consultá-las é preciso ser pesquisador e apresentar documento oficial da instituição acadêmica.”
O almanaque não me foi de todo inútil. Taí algo que eu não sabia. Existe tambéma a aristocracia do onanismo.
Quanto tempo vai demorar para que isso seja uma República?
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