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quinta-feira, 29 de novembro de 2018

A desonestidade intelectual de Olavo de Carvalho

“Desonestidade intelectual é você fingir que sabe aquilo que não sabe e que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem.”
                                           Olavo de Carvalho
A inépcia assombrosa de Olavo de Carvalho em assuntos relativos a economia e relações internacionais é conhecida de todos que o acompanham há algum tempo. Nem por isso o polemista fazedor-de-ministros perde a oportunidade de pontificar, com a maior arrogância possível, sobre esses e outros assuntos que ignora. Essa atitude demonstra, acima de qualquer dúvida, que é um homem intelectualmente desonesto segundo seus próprios critérios.
Em entrevista recente ao jornal O Estado de São Paulo, Olavo faz declarações tão estapafúrdias sobre a política e o comércio exterior brasileiros que a tentação é dizer, como fez celebremente o físico Wolfgang Pauli, que suas opiniões não estão sequer erradas. Não fossem ditas em uma publicação de grande circulação por alguém que lamentavelmente se tornou, neste triste momento brasileiro, uma das pessoas mais influentes do país, provavelmente seriam ignoradas como baboseiras indignas de qualquer atenção, exceto pelo seu caráter cômico.
Além dos seus já conhecidos expedientes de ofensas, desqualificações e mesmo ameaças ao interlocutor, Olavo dá diversos exemplos daquilo que o torna tão pernicioso ao debate público: enxurradas de informações falsas; uma ignorância vergonhosa acerca de conceitos elementares para qualquer cidadão bem informado; chutes infundados e hipóteses ad hoc sobre a realidade das relações exteriores do Brasil, aparentemente com o objetivo de encaixá-las à força em suas próprias interpretações, generalistas e excessivamente ambiciosas, da política internacional contemporânea.
Logo no início da entrevista, Olavo afirma que “o presidente (Donald) Trump disse que tem US$ 267 bilhões esperando para investir no Brasil”, dando a entender que essa cifra representa uma alternativa às nossas relações comerciais com a China. Na realidade, “Trump” não tem um único centavo “esperando” para investir no Brasil, pois o que está em questão são transações entre países, não entre governos. Com todo o respeito, um indivíduo que não sabe a diferença entre contas nacionais (transações de uma nação com outras) e contas governamentais (que dizem respeito a recursos públicos) deveria simplesmente abster-se de opinar com tamanha arrogância sobre economia internacional. Ademais, não se trata de “investimentos”, mas de uma estimativa otimista do quanto um acordo bilateral comercial com os Estados Unidos poderia propiciar, anualmente, em transações totais (de compra e venda) entre ambos os países. Portanto, esse valor não representaria, necessariamente, um “ganho” para o Brasil, muito menos uma possível alternativa ao comércio com a China, como se os governos pudessem escolher com quem as empresas dos seus países irão transacionar (crença curiosa, vinda de alguém que se diz adepto do liberalismo econômico mais estrito).
Em seguida, Olavo faz a afirmação risível de que a China só comercia com o Brasil porque nosso governo estaria “distribuindo dinheiro” para os “amigos” deles, mencionando Angola, Cuba e Venezuela, em um montante que supostamente totalizaria 1 trilhão de dólares. Como já vimos, trata-se de um indivíduo que não sabe diferenciar estoque e fluxo, muito menos contas governamentais e contas nacionais, portanto é impossível saber o que ele pretendeu dizer com “distribuindo dinheiro”, muito menos de onde tirou uma cifra tão impressionante, correspondente a mais da metade do PIB nacional. De qualquer forma, é ridículo atribuir o comércio sino-brasileiro a motivações ideológicas dos governos desses países. Talvez Olavo tenha dificuldade de entender que o mundo se move por considerações e necessidades que transcendem em muito as suas paranoias conspiratórias, mas a verdade é que esse comércio se deve à elevada complementariedade entre as duas economias. Cresceu apesar de, e não devido às, preferências políticas de seus governantes. É, na realidade, um exemplo típico da especialização comercial decorrente de vantagens comparativas e do livre-cambismo, doutrina defendida pelos economistas liberais desde David Ricardo e que Olavo supostamente endossa — embora, evidentemente, não compreenda.
A soja brasileira não foi comprada em peso pelos chineses porque o Partido Comunista do país estava feliz com as nossas boas relações com Cuba e Venezuela, mas porque seus numerosos criadores de suínos demandaram elevadas quantidades desse grão para alimentar seus rebanhos. O minério de ferro produzido pela Vale, por sua vez, foi um dos viabilizadores da urbanização acelerada da China — país paupérrimo em recursos minerais e dependente de imensas importações desses insumos para prosseguir com seu desenvolvimento. Note-se, ainda, que tanto em um caso como em outro estamos falando de bens indiferenciados (commodities) cuja cotação é determinada internacionalmente em mercados que se aproximam da situação teórica de concorrência perfeita. Portanto, na realidade, ninguém, muito menos o governo, “escolhe” de quem o país irá comprar baseando-se em critérios ideológicos. O Brasil é um dos maiores produtores mundiais desses bens, e, por isso, foi beneficiado enormemente pela explosão na demanda por eles que o crescimento chinês proporcionou. Não fosse por esse crescimento, o Brasil seria hoje um país muito mais pobre, viveria crises recorrentes em suas contas externas e a formidável expansão do agronegócio — ironicamente umas das principais bases de apoio do governo Bolsonaro — jamais teria acontecido. Fica, então, a pergunta: já que Olavo acredita que o comércio com a China é “escravidão” e propõe que ele cesse — já que supostamente decorre apenas de uma “vantagem política” que irá acabar com o governo Bolsonaro — qual é a alternativa que sugere ao Brasil? Devemos esperar que “o Trump” venha comprar a nossa soja e o nosso minério, uma vez que a China saia de cena? Ou devemos aceitar ficar muito mais pobres, apenas para nos preservarmos de qualquer contato comercial com o perigoso “esquema russo-chinês”?
O show de absurdos não acaba aí. Pouco depois, Olavo afirma que a riqueza da China é “quase toda construída com dinheiro americano”. Ora, seria um exagero, porém mais próximo da verdade, dizer que isso é o inverso do que realmente ocorre. Pois são os Estados Unidos que têm déficits imensos em transações correntes há mais de 30 anos, beneficiando-se do privilégio exorbitante de serem os emissores da moeda de reserva internacional (Dólar). Isso significa, em jargão econômico, que os norte-americanos dependem da absorção de poupança externa para fechar suas contas e financiar seu crescimento. A China, em contraste, é um dos países que mais poupam no mundo; exatamente por isso se tornou exportador de capitais e está comprando tantos ativos em outros países. Em outras palavras, boa parte do consumismo norte-americano, frequentemente exaltado pelo senhor Olavo de Carvalho, é pago por poupança do resto do mundo, principalmente da China. É essa a razão, aliás, de os chineses serem hoje os maiores credores da dívida norte-americana. Mais uma vez, o oráculo da Virgínia demonstra a cegueira decorrente de seu fanatismo americanófilo e liberal-conservador, distorcendo os fatos com uma cara-de-pau impressionante.
Outro momento interessante da entrevista vem em seguida, quando Olavo afirma, indignado, que a China está “comprando o Brasil a preço de banana”. Aqui, pela primeira vez, estou de acordo com ele, ao menos no sentimento: de fato estamos criando um passivo preocupante com o país asiático. Porém, vindo de um defensor radical do governo Bolsonaro e de sua agenda de privatizações e liberalização econômica, essa preocupação é no mínimo intrigante. Afinal, quando se coloca à venda um ativo — ainda mais um ativo público, supostamente sujeito à impessoalidade do Estado — o comprador é aquele que dispõe de capital suficiente e oferece o melhor preço. Sendo o objetivo declarado da política econômica “atrair investimentos” — apresentados como a panacéia para os nossos problemas — o apetite dos capitais chineses merecia ser comemorado, não lamentado! Vejam, caros leitores, a irracionalidade (ou cinismo) dos atuais governistas brasileiros: colocam o país à venda e, em seguida, reclamam que ele está sendo comprado! Aparentemente, Olavo deseja criar uma regra ad hoc segundo a qual os capitalistas chineses, especificamente, ficariam impedidos de comprar estatais e ativos privados brasileiros. Só capitais “do bem” — suponho que norte-americanos e israelenses — seriam bem-vindos. Com a sua paranoia antichinesa, Olavo favorece os interesses norte-americanos e omite o que realmente está em jogo: não só “a China”, mas capitalistas de diversos países, estão “comprando o Brasil a preço de banana” pelo fato de terem a visão estratégia e de longo prazo que nossos governantes não têm.
Olavo de Carvalho não faz ideia do que está falando. Está  apenas empenhado, como sempre, em promover os interesses da pátria norte-americana que escolheu para si, agindo sem qualquer pudor, respeito pela realidade ou humildade intelectual. É — reitero — um homem intelectualmente desonesto segundo sua própria definição do termo. Em situações normais, seria merecedor apenas de risadas, mas, em vista do gravíssimo perigo que representa sua influência desmedida no atual momento brasileiro, não resta alternativa senão respondê-lo com seus próprios métodos:
CALA A BOCA, BURRO!
Ricardo Carvalho é economista

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