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segunda-feira, 8 de junho de 2020

NASSERISMO


Ao consultar números antigos do Jornal do Brasil, encontramos um interessante artigo de Newton Carlos, no qual o famoso jornalista comentava a recepção e as repercussões da passagem do general Charles de Gaulle, Presidente da França, pela América do Sul em setembro-outubro de 1964. O discurso de De Gaulle, que naquele momento era o expoente de uma política externa independente em relação aos dois blocos (ocidental e socialista), teria encontrado boa recepção entre militares e nacionalistas de tendência “nasserista”:
Embora as reações dos Presidentes constitucionais e dos dirigentes militares não produzam resultados políticos de importância, para a incursão francesa na América Latina, De Gaulle está tendo um outro auditório, além do povo nas ruas. São grupos de capitães, majores e coronéis, militares saídos da classe média que animam uma tendência em geral chamada de “nasserista”. Essa tendência, já forte em alguns países latino-americanos, como a Venezuela, a Colômbia e o Peru, é estimulada pela tentação do nacional-progressismo, outro ramo da esquerda contemporânea. No Oriente Médio, a tentação voltou-se, especialmente, contra interesses europeus. Na América Latina, seu alvo natural são os Estados Unidos. 
 O caráter profético deste comentário – de fato, no final da década de 1960 governos com militares à frente, de tipo nasserista surgiriam em alguns países da América Latina – nos fez pensar na dimensão universal do conceito de nasserista, isto é, na possibilidade das expressões nasserismo e nasserista poderem ser utilizadas para caracterizar um tipo de governo com militares  presentes em diferentes contextos nacionais e regionais, e não apenas no Egito de Nasser e no mundo árabe. Consequentemente, pensamos também na possibilidade de serem localizados na história brasileira fenômenos militares que se encaixariam neste perfil, questão que consideramos pertinente na medida em que o Brasil se destacou durante muito tempo por uma forte presença militar em sua vida política.                                     
 O fenômeno nasserista está relacionado com a figura do tenente coronel Gamal Abdel Nasser, que governou o Egito entre 1952 e 1970. O seu governo tem como origem um golpe de Estado que pôs fim à monarquia do rei Faruk I em julho de 1952 e que foi comandando pelo próprio Nasser e por seu grupo dos Oficiais Livres, movimento de jovens militares nacionalistas e reformistas cujo objetivo era modernizar e regenerar o Egito, livrá-lo da dominação inglesa – o Egito era praticamente um protetorado da Inglaterra – e torna-lo capaz de enfrentar o principal inimigo do mundo árabe, o Estado de Israel. O regime nasserista destacou-se por políticas voltadas para o reformismo socioeconômico (reforma agrária, projetos de infraestrutura e de industrialização acelerada, legislação social), por uma forte militarização do Estado (oficiais do Exército assumindo postos de direção em diversos órgãos e empresas estatais) e por uma política externa que pregava a independência em relação aos blocos ocidental e comunista, uma união dos países em desenvolvimento em torno do conceito de terceiro-mundismo e a união do mundo árabe em torno do conceito de pan-arabismo. No entanto, as contradições internas do governo e algumas inconsistências de seu modelo econômico levaram a um desgaste que se manifestou nos seus resultados econômicos pífios e no mau desempenho militar nas guerras de 1956, contra Inglaterra, França e Israel, e de 1967 contra Israel . Com a morte de Nasser em 1970, o seu sucessor, Anwar Al Sadat, também saído do grupo dos Oficiais Livres, romperia com a política nasserista, iniciando uma política social e econômica muito mais conservadora e uma política externa assumidamente pró-ocidental.  
 A definição mais comum de nasserismo consiste em sua associação com o nacionalismo árabe (ou pan-arabismo). Nós, entretanto, vamos nos apoiar em outra abordagem, que interpreta o nasserismo como um fenômeno militar. É o que faz Rodrigo Borja nos verbetes nasserismo e militarismo de sua Enciclopédia de Política  nos quais encontramos uma associação do conceito de nasserismo com regimes militares tecnocráticos com preocupações sociais; Borja faz, consequentemente, uma distinção entre os regimes militares de tipo nasserista e os governos militares conservadores, cuja intervenção consistiria em defender o país da tomada socialista apoiado e financiado pela URSS. 
Os governos militares de tipo nasserista, que teriam surgido também no contexto latino-americano (Ovando na Bolívia, Velasco Alvarado no Peru, Omar Torrijos no Panamá e Rodríguez Lara no Equador), se caracterizariam pela presença no poder de jovens oficiais assessorados por tecnocratas desenvolvimentistas, por tentativas de desalojar as oligarquias tradicionais do poder e pela realização de políticas sociais com o objetivo de melhorar as condições de vida das camadas sociais mais desfavorecidas, embora a tendência geral é que estes governos tenham se tornado cada vez mais conservadores com o tempo e tenham perdido progressivamente a seu componente social.
A partir desta colocação, fica claro para nós que o nasserismo enquanto conceito designando um tipo de fenômeno político-militar, ultrapassa as fronteiras do Egito e do mundo árabe. Em outras palavras, além do Egito e de outros exemplos no mundo árabe – Muammar al-Gaddafi na Líbia, Amin al-Hafez e Salah Jedid sucessivamente na Síria e Gaafar Nimeiry no Sudão –, encontraremos experiências de tipo nasserista em outras partes do mundo, entre elas a América Latina.     
 O militarismo nasserista consiste, para nós, numa intervenção política característica do mundo em desenvolvimento (África, Ásia, América Latina) na segunda metade do século XX, por parte de setores militares que se apoiavam num projeto nacionalista e reformista cujo objetivo era modernizar, industrializar e fortalecer um país atrasado do ponto de vista social e econômico. Estes governos nasseristas se apoiavam também num acentuado reformismo social (projetos de reforma agrária, de legislação social e trabalhista) que procurava ao mesmo tempo melhorar as precárias condições de vida das camadas mais desfavorecidas da população e integrá-las à política do Estado – com o objetivo, inclusive, de evitar uma possível revolução popular contra a ordem burguesa –, e neutralizar os setores oligárquicos mais retrógrados comprometidos com o modelo agro exportador e com o atraso do país. O nasserismo possui uma forte componente pequeno-burgues e tecnocrático, isto é, uma linha de pensamento que se apoia na ideia de que as reformas necessárias para tirar um país do atraso e de sua posição de vulnerabilidade só poderão ser realizadas por uma elite tecnocrática cuja posição de mando se deveria à sua competência técnica. Segundo esta linha de pensamento, que estava acompanhada de uma descrença na capacidade  das classes populares em se autogovernar, as reformas sociais e econômicas deveriam ser feitas pelo alto, isto é, pelas mencionadas elites técnicas saídas da pequena-burguesia. Os seguintes elementos caracterizam a ideologia e a política dos governos militares de tipo nasserista: nacionalismo, militarismo, política externa não-alinhada, desenvolvimentismo, reformismo social, hostilidade às oligarquias tradicionais, elitismo tecnocrático de caráter pequeno-burguês.                                                
Como dissemos atrás, governos militares que possuíam basicamente as mesmas características do regime de Nasser surgiram também na América Latina, e alguns deles, como o de Velasco Alvarado, assumiram orgulhosamente a influência nasserista. Alain Rouquié, cujo famoso trabalho sobre o militarismo na América Latina dedica um capítulo inteiro ao nacionalismo militar reformista, analisa de perto os governos militares de Velasco Alvarado (1968-1975) no Peru, Alfredo Ovando (1969-1970) e Juan José Torres (1970-1971) na Bolívia, Rodríguez Lara (1972-1976) no Equador e Omar Torrijos (1968-1981) no Panamá e apresenta as seguintes características comuns a todos eles: nacionalismo, que se traduz na busca de uma política externa independente e em desapropriações de empresas dominadas por grupos norte americanos; desenvolvimentismo, cujo principal item é a industrialização de um país ainda essencialmente agrário; reformismo social, com projetos de reforma agrária e de legislação social e trabalhista. Estas características estão sempre acompanhadas de um discurso anti oligárquico acentuado e de um autoritarismo que se traduz na defesa de um reformismo pelo alto – as classes populares, neste contexto, deveriam ser beneficiadas pela política do Estado, mas não poderiam participar diretamente e autonomamente do processo político, que deveria ser controlado por uma elite tecnicamente apta e politicamente esclarecida. De qualquer forma, não podemos deixar de notar a curta duração da maioria desses regimes, o que nos faz pensar num contexto regional desfavorável para a consolidação desta tendência militar: elites agrárias atrasadas, mas politicamente fortes, hegemonia norte-americana no conjunto da América Latina, forças armadas em sua maioria conservadoras e alinhadas com os Estados Unidos. Assim, por falta de bases sólidas de apoio e por erros próprios de planejamento e de gestão, o militarismo de tipo nasserista foi derrotado definitivamente na América Latina durante a década de 1970. 
No caso brasileiro, que já tinha uma tradição de militarismo reformista e tecnocrático com o positivismo republicano de fins do século XIX e com o tenentismo do início da década de 1930, o militarismo nasserista se manifestou com o que chamamos de linha nacionalista, dissidência interna cuja atuação marcou os bastidores do governo com presidente militar e a própria vida política nacional durante o período 1965-1969. Com certeza a sua compreensão ajudará bastante a entender a própria natureza dos governos com presidentes militares no Brasil (1964-1985).
 A expressão linha dura surgiu logo no início do governo militar instaurado em 1964 para designar toda uma oficialidade participante ativa da conspiração contra o governo João Goulart e que em pouco tempo passou a se indispor com o governo Castelo Branco por considerá-lo demasiadamente hesitante em realizar uma depuração mais radical da elite política brasileira, especialmente no que diz respeito aos setores ligados à esquerda e à situação deposta.  No entanto, dentro deste agrupo havia uma oficialidade, representada por nomes de peso como Albuquerque Lima, Sílvio Heck, Augusto Rademaker, entre outros, que não se limitava a criticar a política depuradora vacilante do novo governo, mas também as suas orientações relativas ao desenvolvimento econômico e à política externa. Assim, encontramos duras críticas a uma política econômica “antinacional” – isto é, uma política favorável a grupos econômicos estrangeiros e prejudicial aos interesses capitalistas legitimamente brasileiros – e a uma política externa subserviente aos Estados Unidos – daí o lema “nem Washington nem Moscou”. Durante o período 1965-1969 a equipe econômica do governo – especialmente os ministros Roberto Campos, Octávio Gouveia de Bulhões, Delfim Netto e Hélio Beltrão – cuja política econômica liberal-saneadora era vista como prejudicial ao setor produtivo nacional, seria  particularmente visada. Escolhemos, portanto, a expressão linha dura nacionalista para designar este subgrupo da linha dura, para que ele não seja confundido com a oficialidade (exemplos: Osnelli Martinelli e Ferdinando de Carvalho) cuja preocupação central era a depuração política e a luta contra o socialismo. A atuação da linha dura nacionalista representa o momento em que as diretrizes do governo militar brasileiro foram mais contestadas dentro do próprio grupo militar no poder.                                                     
Dentro da linha dura nacionalista, o caso do general Afonso de Albuquerque Lima merece um destaque especial, na medida em que a atuação deste oficial nacionalista, que em janeiro de 1969 renunciou ao seu posto de Ministro do Interior do governo Costa e Silva por discordar da política de Delfim Netto na pasta da Fazenda, representa a versão mais acabada do militarismo nasserista no Brasil; aliás, a sua candidatura frustrada à Presidência da República no mesmo ano de 1969 foi ao mesmo tempo o apogeu e o momento final deste fenômeno no país. Em seu documento-programa lançado durante a campanha para a eleição presidencial e publicado no jornal Tribuna da Imprensa, Albuquerque Lima apresentava o seu projeto nacionalista, desenvolvimentista e reformista no qual encontramos: uma política de desenvolvimento da produção nacional com o esforço conjunto do Estado e da empresa privada nacional, com o capital estrangeiro restrito a uma necessária função complementar; uma maior integração entre as forças armadas e a indústria nacional; uma política externa independente livre dos imperialismos ocidental e socialista; uma política de integração da Amazônia; a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas; uma reforma agrária como condição para a criação de um mercado interno e, consequentemente, de um desenvolvimento industrial mais sólido . Entretanto, Albuquerque Lima, que se intitulava o “Nasser da direita” e que tinha uma base numerosa de apoio tanto no Exército, como na Marinha e na Aeronáutica – ele era muito popular, inclusive, entre a jovem oficialidade –, teve a sua candidatura impugnada por uma razão meramente institucional – era general de três estrelas num momento em que a graduação mínima para ser elegível passou a ser a de general de quatro estrelas. Esta razão, muito conveniente para a cúpula do governo que temia o nacionalismo do candidato, pôs fim à participação de Albuquerque Lima no pleito presidencial entre militares que elegeu Emílio Médici Presidente. Assim terminava melancolicamente a única tentativa séria de “nasserização” do regime militar brasileiro.            Com base no que expusemos de forma bastante resumida, elaboramos as seguintes conclusões que estão longe de ser definitivas na medida em que poderão ser ou não confirmadas por uma pesquisa mais longa e aprofundada: 
 1) O fracasso do militarismo nasserista no Brasil se deveu em grande parte à situação política do país, ao fato de que esses militares “nasseristas” tomaram parte, em 1964, num movimento conservador e pró-americano que era a negação do próprio nasserismo; este fato já colocava esta oficialidade nacionalista e reformista em posição de relativa fraqueza. A organização centralizada do regime militar impediu que os “nasseristas” se autonomizassem a ponto de conseguir empreender uma tentativa golpista contra o grupo no poder. 
 2) Considerando que a política econômica do governo com presidentes militares – orientação monetarista e anti-inflacionária, elevação dos juros, endividamento externo, incentivo à centralização do capital bancário – privilegiava o setor financeiro (nacional, associado e internacional) em detrimento do setor industrial, acreditamos que um dos principais objetivos desta oficialidade “nasserista” era trazer a política econômica do regime para o lado da indústria e contra um setor financeiro visto como especulativo e improdutivo. Assim, diante de uma insatisfação crescente, embora contida, da burguesia industrial em relação ao governo militar, a ação desta oficialidade nacionalista estava voltada de certa forma para uma recuperação da política econômica industrializante do período varguista. A não-consolidação de uma aliança burguesa industrial/militares nacionalistas ajudou a selar a sorte do militarismo nasserista no Brasil. 

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