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segunda-feira, 13 de abril de 2020

“Um presidente da república está limitado pela ciência.” — Mas que ciência?

Um grupo de importantes professores de direito recentemente se manifestou, em artigo publicado em O Globo1, no sentido de que as ações do poder executivo federal no enfrentamento da pandemia de coronavírus não seriam legais (ou, mais ainda, constitucionais) se “contrariassem a ciência”. Confirmando o ditado de que great minds think alike, tal posicionamento foi exteriorizado em harmoniosa sincronia com pronunciamentos públicos de autoridades do legislativo2 e do Supremo Tribunal Federal3 no mesmíssimo sentido. 
Em tal artigo, os autores amparam a sua tese no exemplo poético de que o presidente “não pode decretar que o sol nasça no poente e se ponha no (sic) nascente”, donde decorreria a impossibilidade de “negar evidências científicas seguras, tampouco orientar que sua administração assim o faça”. O chefe do executivo, que deve governar “para além de sua câmara de eco ou de seus robôs”, não pode contrariar a ciência “porque está limitado pela realidade”. 
A discussão, é claro, não surgiu do acaso: o pano de fundo são as divergências entre o presidente da república e governadores de Estados quanto ao término ou continuidade da quarentena (e/ou outras medidas de isolamento social), e sua abrangência. 
Há vários e graves problemas no modo como a questão está colocada. 
O primeiro é o da legitimidade das posições no debate. Quem se apresenta como defendendo a ciência (chegando ao ponto de tomá-la como um termo idêntico ao de realidade) pretende na verdade ganhar a discussão antes de a iniciar. Quem está “do lado da ciência”, está do lado da realidade, da verdade, do bem e do belo. Adota-se um valor sagrado e religioso para a ciência, impedindo de antemão qualquer discussão como herética.
Quanto a este aspecto, cabe destacar a absoluta impropriedade de tomar a ciência como sinônimo da realidade. Isto é um grave erro metodológico (e mesmo ontológico), pois a realidade é que é o padrão de validade da ciência, nunca o inverso. Se assim não fosse, toda “descoberta” científica seria definitiva, impassível de modificação, aprofundamentos e revisões. 
E mais: o consenso científico é sempre contrariado pelas novas descobertas. O consenso científico no mundo era o geocêntrico até o advento das teses de Galileu; o da época da publicação dos Principia de Newton era o da física euclidiana; e aquele instaurado pelo paradigma newtoniano foi deposto em 1905 por um Einstein então desconhecido. Todos que se apoiam na equiparação de consenso científico com a verdade mais cedo ou mais tarde são desmentidos.  
Reduzir a realidade à ciência é um grave vício positivista, que resulta no homem achatado, o homunculus condenado a viver apenas do mundo visível. Abafando a dimensão metafísica da existência, o indivíduo se vê obrigado a projetar imaginativamente aquela dimensão neste mundo material: cria uma segunda realidade, em substituição à primeira realidade (a realidade de verdade, em que todos vivemos), em que a redenção e o paraíso se terrestrializam. Imanentiza-se o schaton: o juízo final será o advento do domínio absoluto da ciência, e a redenção o “governo dos sociólogos” de Comte, em que nenhuma decisão moral será mais necessária e a política, como a conhecemos hoje, será definitivamente varrida da face da terra. Crer que a Ciência é o valor supremo da existência humana é algo que se insere neste caldo de cultura, e como destacou Eric Voegelin, denota na melhor das hipóteses uma psicose honesta, e na pior, uma grave desordem espiritual4. 
Em segundo lugar, ainda que se justificasse a posição que atribui um valor absoluto à ciência, existe o problema de saber qual é o paradigma científico vigente e quem o detém. É claro que os autores, mais cautelosos, não responderam, mas os seus colegas do congresso e do STF não têm dúvidas: no caso da atual pandemia o detentor da autoridade para determinar qual é a verdade científica é a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o paradigma científico a ser considerado é o que ela disser. Ergo, tudo o que o presidente da república ou seus ministros fizerem de contrário a tal autoridade e aos seus ditames não só poderá como deverá ser invalidado pelo Congresso e, se preciso, pelo STF (só para garantir).
Ocorre que o padrão escolhido simplesmente não existe. Primeiro porque se trata de uma doença desconhecida, para cujo enfrentamento há muitas dúvidas e muito poucas certezas. A OMS tem sido mais uma compiladora de informações de países do que agente de avanço no enfrentamento da pandemia. Não se deve esquecer que a veneranda instituição dirigida pelo senhor Tedros Adhanom foi enganada por semanas pela China, que resistiu o quanto pôde à divulgação das informações que detinha sobre o surto inicial no país (e ainda hoje não se sabe se as informações divulgadas pelo país são confiáveis). A pandemia só se tornou um problema mundial quando o contágio se transferiu aos países democráticos, que passaram a divulgar informações verdadeiras sobre o que se passava. 
No caso da atual pandemia, não existe um consenso estabelecido: o que há são linhas de ação mais ou menos eficazes que vão sendo testadas pelos governos nacionais com base na tentativa e erro, trade-offs entre opções de ação, e um vasto campo de problemas ainda não resolvidos. É fato que “a ciência” em quem os autores depositam toda a sua confiança sabe muito pouco até o momento. 
Com efeito, essa falta de substância se revela de forma exemplar na ação que o Conselho Federal da OAB ajuizou no STF contra a União (ADPF 672, relator Alexandre de Moraes). A ação, como se sabe, pretende constranger o governo federal a obedecer ao suposto consenso científico sobre a pandemia. Curiosamente, a OAB não incluiu em sua petição inicial nenhum estudo científico que amparasse a sua posição. Nenhum. Todos os 21 documentos anexados à petição se resumem a notícias veiculadas na mídia (sim, dessas notícias de portal escritas por estagiários de jornalismo que, como se diz, não conseguem fazer um “o” com copo). Uma ação que se fundamenta no suposto desrespeito do presidente da república a um consenso científico mundial, colocando em risco a vida de 210 milhões de brasileiros, não consegue anexar nem um mísero estudo científico sobre a matéria. Nada. A OAB pretende, portanto, apenas com base em tais notícias, convencer o STF a determinar ao presidente da república “o cumprimento do protocolo da OMS, replicado pelo Ministério da Saúde, no sentido da adoção de medidas de isolamento social”. O suposto “consenso científico” aqui não é nem o da OMS, é pior (como se fosse possível): é o da redação da Folha de SP e congêneres — e o trágico é que o STF já piscou o olho dizendo que pode concordar com a pantomima. 
Há que se ter honestidade intelectual e reconhecer que o presidente, até o momento, não defendeu nenhuma solução contrária a qualquer consenso científico sobre a matéria porque tal consenso não existe. Decidir entre um maior ou menor grau de isolamento social, ou mesmo entre impor ou não a quarentena, é um dilema que está sendo enfrentado por todos os países, do Zimbábue à Dinamarca, com soluções diversas sendo adotadas de acordo com a avaliação conjetural de cada país. Sopesar os danos (inclusive à saúde pública e aos mais pobres) decorrentes da paralisação geral das atividades econômicas com as vantagens de uma quarentena rígida é algo que está na pauta de todos os governos em todos os países. O único consenso, se existe, é este: nenhum país do globo foi estúpido o suficiente para destituir o seu governo e atrelar o seu destino aos humores do Sr. Tedros Adhanom ou de algum jornalista semi-letrado brasileiro. 

E mesmo que o presidente viesse a defender alguma ação contraindicada, ou que depois se revelasse menos eficiente, isto por si só não significa que deva ela ser revista ou que possa ele ser responsabilizado. Como impõe o art. 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), introduzido por obra de alguns dos autores, “na interpretação de normas sobre a gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”, determinando o parágrafo primeiro que “em decisão sobre a regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”. Com efeito, é difícil se cogitar de situação mais difícil ou de obstáculos maiores do que os enfrentados pelos chefes de governo que, no mundo todo, têm de tomar decisões em prol do bem-estar dos respectivos povos no bojo da presente crise. Por que é que só ao presidente brasileiro não se deveriam reconhecer tais dificuldades? 

Há ainda uma razão de direito internacional que impediria (ainda que houvesse um consenso científico mundial e que este consenso tivesse por autoridade suprema a OMS) a sua imediata aplicação no Brasil. Como determina o art. 17 da LINDB, “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.” Mais: o art. 4º da Constituição elenca como princípios das relações internacionais a autodeterminação dos povos e a não-intervenção (III e IV) — tais princípios valem em mão-dupla: condicionam as ações do Brasil em relação a países estrangeiros e vice-versa. A Constituição, como se sabe, ainda consagra a tradicional exigência de que as normas de direito internacional a que o país se obrigue por meio de tratados e convenções celebrados pelo executivo devem ser ratificados pelo Congresso Nacional como condição para possuírem força obrigatória no Brasil (art. 84, VIII, c/c art. 5º, §3º), inexistindo “cláusula geral de recepção automática de atos internacionais, mesmo daqueles fundados em tratados de integração5. Percebem a torção hermenêutica que se exige para sustentar ser possível que os atos do senhor Tedros Adhanom (conforme interpretados pela imprensa nacional, segundo sustenta a OAB) possuam aplicação imediata e vinculante sobre o Estado brasileiro? 
Por último, a questão da deferência: quem está em melhor posição para tratar do tema da saúde pública: a administração pública ou o judiciário (ou ainda a OAB ou um grupo de professores de direito)? No julgamento da ADI 5035, em que se questionava a constitucionalidade do programa Mais Médicos, e se colocavam gravíssimas preocupações relacionadas à saúde pública (em especial a atuação de médicos possivelmente sem qualificação, colocando-se em risco a vida de milhões de pessoas), o tribunal, se posicionou, acompanhando o voto do ministro Alexandre de Moraes, no sentido de que “pod[eria] não ter sido a melhor opção do ponto de vista técnico para alguns, mas foi uma opção de política pública válida, para, pelo menos, minimizar esse grave problema6”. O que mudou de lá para cá? 
Certamente que haveria um problema na conduta do presidente (e de qualquer outra autoridade), em hipóteses extremas: se houvesse uma cura para a doença, que o governo não reconhecesse; se houvesse um medicamento eficaz, que o governo não permitisse que fosse comercializado; ou se o governo adotasse um tratamento letal ou manifestamente ineficaz no SUS. O presidente não disse ou fez nenhuma dessas coisas. Muito pelo contrário, ele foi um dos maiores entusiastas das pesquisas envolvendo medicamentos como a hidroxicloroclina (que até demonstração em contrário tem se mostrado eficiente no combate ao coronavírus), que recentemente recebeu a adesão de países estrangeiros (como os EUA) e da comunidade científica7. O argumento ad hitlerum que os autores procuram construir padece de contato com a realidade. 
O problema não é jurídico, nem mesmo científico. Esta discussão, do modo como está colocada, é meramente política (e falo aqui de política no seu sentido menos lisonjeiro). Se o presidente fosse minimamente reticente quanto à cloroquina, muito provavelmente a mídia estaria em frenesi à procura dos casos de sucesso no tratamento com o medicamento. Se ele fosse um rígido defensor da quarentena, diria que ele é um ditador que quer destruir a economia do país e que é contra a ciência (porque afinal não há prova científica de que seja a melhor opção). Em todos os casos, haveria quem levantasse, como se faz agora, o argumento aparentemente jurídico de que “um presidente da república está limitado pela ciência” (e que, assim a frio, conta com a adesão geral). Por que o debate chegou a um ponto tão baixo? A resposta parece estar em Montaigne, quando este explica sua amizade por La Boétie: “porque era ele, porque era eu”. 
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1 O artigo, intitulado “Um presidente da República está limitado pela ciência”, é assinado por Carlos Ari Sundfeld, Floriano de Azevedo Marques Neto, Gustavo Binenboim, Egon Bockmann Moreira, Vera Monteiro, Jacintho Arruda Câmara, José Vicente Mendonça e Eduardo Jordão. Disponível emhttps://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-um-presidente-da-republica-esta-limitado-pela-ciencia-24355634 . Acesso em 07.04.2020.
2 Recente matéria do jornal Valor Econômico menciona manifestação de Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados: “O deputado criticou quem se propõe a falar sobre medidas de combate ao contágio que contrariem as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde. ‘Palpiteiro de crise que pode gerar mortes não me parece uma decisão adequada e responsável de qualquer um de nós’, afirmou” (ver a matéria completa em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/04/03/maia-empresas-que-querem-fim-da-quarentena-vao-pagar-por-isolamento-de-idoso-em-comunidade.ghtml. Acesso em 07.04.2020.
3 O ministro Gilmar Mendes afirmou, em entrevista recente, o seguinte: “Tenho muita dúvida se algum tribunal vai validar eventual decisão do governo federal que contrarie as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde). Acho que nenhum juiz do Supremo Tribunal Federal vai validar este tipo de entendimento.” (A entrevista está disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/gilmar-mendes-diz-que-ha-vacuo-no-poder-que-brasil-retrocedeu-1-24354785. Acesso em: 07.04.2020). O mesmo ministro, por ocasião do julgamento da ação que questionava a constitucionalidade do atual Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) declarou que argumentos científicos eram “mero achismo”, o que lhe rendeu a animosidade da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da Academia Brasileira de Ciências (ABC), entre outras entidades. O caso, que talvez tenha servido para modificar a posição do ministro com relação à “ciência” pode ser rememorado em detalhes no seguinte link: https://www.oeco.org.br/blogs/salada-verde/cientistas-rebatem-declaracao-de-gilmar-mendes-sobre-codigo-florestal/ (Acesso em 07.04.2020).
4 Eric Voegelin, “The eclipse of reality”, in Collected works, vol. 28 (Columbia, MO: University of Missouri Press, 2003), 111-162.
5 STF, CR 8279 AgR/AT-Argentina, relator Celso de Mello, julgamento em 17.06.1998, DJ 10.08.2000.

7 Ver: Cientistas publicam carta aberta ao Ministro da Saúde (https://brasilsemmedo.com/cientistas-publicam-carta-aberta-ao-ministro-da-saude/. Acesso em 08.04.2020.

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*Amauri Feres Saad

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