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terça-feira, 20 de setembro de 2011

HITLER E OS ALEMÃES

Hitler e os Alemães... não é um assunto do passado!

Em 14 de junho de 2007 faleceu Kurt Waldheim, antigo secretário-geral da ONU entre 1972 e 1981, e presidente da Áustria entre 1986 e 1992, eleito com 54% dos votos. Uma Comissão Internacional examinou a sua vida militar entre 1938 e 1945, concluindo que teve conhecimento de crimes de guerra praticados pelas unidades militares a que pertenceu, mas neles não participou pessoalmente. Devido à polêmica sobre o seu passado nazi, a sua presença foi boicotada pelos países europeus e pelos Estados Unidos.

Em agosto de 2006 o escritor Guenther Grass, Prêmio Nobel de Literatura, desencadeou uma polêmica ao admitir ter sido voluntário da Divisão Frundsberg das Waffen-SS. Como escreveu o historiador conservador Joachim Fest: “Após 60 anos, esta confissão vem um pouco tarde demais”.

Hitler e os Alemães... não é um assunto do passado porque a consciência humana vive na tensão permanente entre o tempo e os valores espirituais eternos. E o que está eternamente vivo tem de ser preservado e defendido no presente.

Talvez, por isso, todo alemão culto conheça a frase escrita pelo poeta Heinrich Heine em 1821: “Onde queimam livros, acabam por queimar pessoas”. E mais do que todos, conhe­cia-a Eric Voegelin ao abandonar em 1938 a sua segunda cidade natal – Viena de Áustria – em cuja Universidade era professor, após a Gestapo ter apreendido a 1ª edição do seu livro As religiões políticas. A fuga levou-o ao exílio nos Estados Unidos onde reconstruiu sua vida como professor nas Universidades de Louisiana e de Stanford e onde redigiu a melhor parte da sua obra de grande filósofo político do século XX.

Vinte anos depois, Eric Voegelin regressou aos países germânicos para lecionar na Universidade Ludwig Maximilian de Munique entre 1958 e 1968, onde fundou o Instituto de Ciências Políticas. É nessa Universidade que irá proferir, no semestre de verão de 1964, as Conferências Hitler e os Alemães, aqui reunidas em volume e que constituem a sua análise mais rigorosa e frontal da cultura alemã contemporânea.

O Curso não é uma história das origens, evolução e queda do regime nacional-socialista, muito embora Eric Voe­gelin tenha presente algumas das análises clássicas. O tema é a cumplicidade dos alemães no regime nazi. O desafio mais importante não é fazer história narrativa e “dominar o passado” (Vergangenheitsbewältigung), mas sim fazer história crítica e “dominar o presente”. O que estava, e continua a estar, em jogo é o significado da Ditadura e do Holocausto na história da Alemanha, da Europa e do mundo, e que lições extrair dessa meditação sobre o mal nazi.

O Tribunal de Nuremberg possibilitou a condenação dos criminosos de guerra em 1946 nos termos dos “crimes contra a paz” e “iniciativa de guerra agressora”. Faltava uma base inderrogável ao Direito internacional nestas matérias, ficando no ar a dúvida da violação do princípio nulla poena sine lege (não há penalidade sem lei). Mas se a justiça podia ser criticada por motivos jurídicos, a verdade histórica era flagrante. As provas das atrocidades, expostas pelo Tribunal, contribuíram para a desilusão póstuma dos alemães com o nacional-socialismo. A esmagadora maioria reconhecia a culpa de centenas de criminosos de guerra. Mas teria sensibilidade política e moral para reconhecer “que tudo fora possível” com a cumplicidade da população e da maior parte das elites?

Ao constituir-se a República Federal Alemã (RFA) em maio de 1949, a responsabilidade da perseguição dos criminosos de guerra e da desnazificação foi transferida para as autoridades alemãs. Se a isso acrescentarmos as medidas contra funcionários, segundo o princípio legalmente dúbio de que o acusado tinha de provar a sua inocência, os alemães ficaram sob suspeita de terem contribuído pessoalmente para um regime que levara a cabo crimes sem nome, a que Hannah Arendt chamou “massacres administrativos”. Falava-se da “culpa coletiva alemã” (Kollektivschuld). E toda esta experiência traumática contribuía para silenciar a cumplicidade pessoal com o Terceiro Reich. Nesses anos 50, a maioria dos alemães rejeitava a desnazificação como ineficaz e a “culpa coletiva” como indiscriminada, começando a esquecer que os crimes do regime nacional-socialista exigiam um exame de con­sciência pessoal. Iriam cair por terra as expectativas dos que encaravam o colapso do hitlerismo como uma oportunidade de reconstrução moral da Alemanha?

É aqui que entra em cena Eric Voegelin. Regressa à Alemanha em 1958 “para ajudar a nova geração”. E no Curso de 1964, contra o risco de amnésia coletiva, vem propor uma forma de anamnese que tem tanto de terapêutico como de profético. A responsabilidade humana começa na consciência individual e, por isso, Voegelin, Jaspers e Arendt rejeitam a “culpa coletiva”. A liberdade individual permite escolher entre agir de modo moral ou imoral. Thomas Mann, Karl Kraus e Heimito von Doderer souberam denunciar o nazismo em tempo útil e mantiveram intactos seu espírito e sua moralidade. [1] Outros como Alfred Delp e Dietrich Bonhoeffer foram mártires, e outros, colaboradores, como Martin Heidegger e Carl Schmitt.

No imediato pós-guerra, o nacional-socialismo era interpretado como “hitlerismo”. A maioria dos alemães ocidentais era de opinião que o nacional-socialismo fora uma idéia boa, mas mal executada devido à vontade criminosa de Hitler! Ganhava também terreno uma outra idéia: a de que os eventos históricos resultavam de manobras das elites políticas e econômicas. De um lado, o nazismo como obra pessoal de Hitler. Do outro, visões estruturalistas dos eventos como desencadeados por fatores sociais, políticos e econômicos. Em ambas as versões, os alemães eram as primeiras vítimas do nazismo, a desnazificação era “injusta” e Hitler transformava-se em álibi.

Eric Voegelin rompe com essa “comédia de enganos” e demonstra que tanto a diabolização de Hitler como a sua neutralização diminuíam a responsabilidade individual, atrofiavam as forças de conversão moral e impediam o recobro moral. A recusa dos alemães em tratar abertamente a questão da culpa individual e a invocação de Hitler como um álibi provocavam a reprimenda da culpa coletiva. Hannah Arendt interrogava-se sobre essa indistinção entre criminosos e inocentes.[2]

No início da 1ª Conferência, Voegelin introduz “o problema alemão central do nosso tempo: a ascensão de Hitler ao poder”. Como foi possível? E que conseqüências tem hoje? A sua resposta ao longo deste livro gira em torno do “princípio antropológico”; uma sociedade é um ser humano “em ponto grande” e a sua qualidade está determinada pelo caráter moral dos seus membros. Ora, a Alemanha dos anos 30 revelava uma profunda deficiência espiritual, intelectual e moral. Como escreveu Hermann Broch, existia uma misteriosa cumplicidade no mal dos que não pareciam ser maus.[3]Como Karl Kraus e Thomas Mann escreveram, uma população tornara-se “populaça” ao esquecer a capacidade humana de procurar a verdade acerca da existência e de viver segundo essa verdade. Havia falta de humanidade, “estupidez radical”, “falta de reflexão”, segundo Hannah Arendt.[4]

Esta explicação antropológica do nazismo é conforme à Filosofia política clássica e conduz Voegelin a rejeitar as explicações de Carl J. Friedrich, Zbigniew K. Brzezinski e Hannah Arendt sobre o “totalitarismo”. Apresentar o indivíduo como indefeso perante os mecanismos de manipulação e intimidação é determinismo sociológico. E, por isso, na recensão sobre “As origens do totalitarismo”, escreve Voegelin que “…as situações e as mudanças exigem, mas não determinam, uma resposta”(...) “O caráter humano, a escala e a intensidade das suas paixões, os controles exercidos pelas suas virtudes, e a sua liberdade espiritual, constituem determinantes”.[5]

Voegelin também não aceita o determinismo histórico. Não há uma fatalidade na cultura alemã que conduza ao hitlerismo e ao Holocausto. O hitlerismo foi uma escolha perversa, não foi um destino imposto pela estrutura cultural. No ensaio de 1944 “Nietzsche, a crise e a guerra”, Voegelin defende Nietzsche da acusação de ser culturalmente responsável pelo advento do nacional-socialismo. O filósofo niilista diagnosticara com precisão o núcleo doentio da cultura européia; segundo Voegelin, a terapêutica alternativa ao suicídio cultural da Europa do fim de século deveria ser uma conversão espiritual inspirada pela periagoge platônica, senão mesmo pela metanoia cristã.[6]

No Curso de 1964, Eric Voegelin não debate o racismo já denunciado em obras anteriores,[7] nem a correlação entre explosão espiritual, império e historiografia ecumênica, tema típico da sua obra tardia. O seu foco é no princípio antropológico segundo o qual a sociedade é uma expressão dos indivíduos que a formam. O princípio implica o mútuo condicionamento da parte e do todo: “o homem é uma cidade em ponto pequeno” e “a cidade é um homem em ponto grande”.[8]

A personalidade moral do indivíduo não é determinada pelas estruturas sociais em que se insere, mas a mediocridade do caráter pessoal facilita a corrupção das estruturas sociais. As componentes pessoais, sociais e históricas do povo alemão na década de 1930 tiveram o seu papel no hitlerismo, mas o resultado final foi determinado pela falta de caráter moral e espiritual da população e dos líderes. O que faltou na Alemanha dos anos 20 e 30 foram pessoas responsáveis com o sentido da busca da verdade. O que sobrou foram fanáticos fundamentalistas, convictos da “sua” verdade.

É neste contexto que Eric Voegelin nos legou um parágrafo célebre sobre Adolf Hitler, cujas deficiências espirituais, morais e culturais iam a par com o gênio das oportunidades políticas. Ele tinha “...a combinação de uma personalidade forte e de uma inteligência enérgica com uma deficiência de estatura moral e espiritual; de consciência messiânica com o nível cultural de um cidadão da era de Haeckel; de mediocridade intelectual unida à auto-estima de um soba provinciano; e do fascínio que uma tal personalidade poderia exercer num momento crítico sobre pessoas de espírito provinciano e com mentalidade de súditos”.[9]

Este esboço mostra Adolf Hitler como o alemão representativo dos anos 30, espiritualmente degradado. Em contraste com a imagem convencional do sedutor inexplicável ou genial, e admirado pelos provincianos de todo o mundo – a “Internacional da Estupidez” –, Eric Voegelin mostra-nos Hitler como nem mais nem menos que o homem da rua, o “Zé Ninguém” de Wilhelm Reich, mas capaz de intoxicar um povo com a grandeza intramundana. Que um homem assim se tenha tornado o representante do povo alemão só mostra que o declínio e a ascensão espirituais são caminhos sempre em aberto na História.

Mas não basta desmistificar Hitler. Existem certamente milhares de livros e artigos e centenas de filmes e documentários sobre ele, recheados de detalhes históricos corretos e importantes. Mas essa informação só é útil se for colocada a questão crucial sobre os laços de representação entre um povo e os seus governantes. Só assim se poderá recuperar a força teórica e espiritual com que a consciência se robustece e que teria impedido a ascensão de Hitler ao poder. Mas intelec­tuais alemães como o cardeal Faulhaber, o bispo Neuhäusler, o pastor Niemöller e Rudolf Bultmann falharam em comunicar esse realismo espiritual. Na ausência de fins transcendentes para a existência, o apocalipse intramundano tomou conta do povo alemão – como sucedera na revolução russa – e a “humanidade transformou-se em sinônimo de internados de um campo de concentração apocalíptico”.[10]

Voegelin nem perde tempo a atacar os nazis inveterados, mas critica duramente os alemães “melhores” como Percy E. Schramm, e as celebridades como Heidegger. A aceitação do passado pessoal e a avaliação autocrítica das culpas individuais é o pré-requisito para uma sociedade verdadeiramente livre e democrática em que os cidadãos não alberguem suspeitas mútuas. Só uma sociedade assim pode declarar culpados os governantes criminosos, confirmando que a culpa é sempre individual e nunca coletiva.

Esta lição central de Voegelin nas conferências de 1964 mantém toda a atualidade quando se erguem novas ideologias em busca de um reconhecimento. O nazismo nem sequer tinha a reivindicação de universalidade; era a ideologia de uma nacionalidade que tinha a “atração luciferina” de uma ordem ideológica em que o povo alemão purificado se considerava como uma sociedade perfeita intramundana, fechada a outros povos e “raças”.[11] A vigilância contra o nazismo como fenômeno político continua a ser importante na Europa. Os partidos da extrema-direita européia que se assentam no ódio aos imigrantes são considerados residuais na atualidade; mas as suas brasas dispersas podem repentinamente ser reacesas por uma calamidade que provoque um incêndio.

Mas outra das razões da grande atualidade de Hitler e os Alemães é que o livro constitui não apenas um exorcismo dos “demônios” que praticam crimes, como dos “estúpidos” que os permitem e esquecem. Tal como Alexandre Soljhenitsyn em Arquipélago Goulag, Voegelin quer tirar do esquecimento tanto os que resistiram como os que ofenderam. É o mesmo esforço de anamnese, a “dominar o presente” para elevar o nível espiritual mediante a linguagem da filosofia que permite julgar a ordem e a desordem históricas concretas.

Talvez nestas páginas ásperas de Eric Voegelin alguns vejam uma antipatia profunda para com os seus antigos compatriotas. Talvez esteja a ajustar contas com os que permitiram a ascensão do nacional-socialismo e o forçaram a emigrar. Talvez duas décadas a viver nos EUA e a cidadania americana o tivessem distanciado definitivamente da Europa. Talvez! Mas ao causticar o declínio espiritual, nunca acusa os alemães de uma culpa coletiva pelas atrocidades cometidas. Está a apelar a uma atitude de renovação.

Em 1990, ao estagiar no Instituto de Ciências Políticas Ge­schwister Scholl, nomeado em honra dos irmãos do Movimento de Resistência da Rosa Branca e fundado por Voegelin, pude comparar a cidade de Munique com o campo de concentração de Dachau, a 60 quilômetros. O inferno estava muito perto da terra. Mas 60 anos após a guerra, Berlim acolhe o Museu do Holocausto; o Estado alemão continua a indenizar os descendentes dos judeus do genocídio; o Tribunal Federal acautela o envio de tropas alemãs em missões de guerra; a opinião pública alemã e seus governantes são contrários às guerras imperiais contemporâneas; e, como se viu nos episódios da exautoração de Guenther Grass e de Kurt Waldheim, a estultícia e a estupidez foram vencidas.

Uma parte desse recobro moral do povo alemão deve-se a individualidades como Eric Voegelin com a grandeza e a solidão dos profetas que retratou em Israel e a Revelação. É um papel muito difícil. Como profeta, tem de destruir as ilusões de uma sociedade, e dar-lhe novos horizontes. Por isso dele se pode justamente afirmar o que Alfred de Vigny lembrou após visionar Moisés a desaparecer no alto de um monte: “Josué s’avançait pensif et pâlissant, Car il était déjà l’élu du Tout-Puissant”.[12]

Fonte:
http://www.midiaamais.com.br

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