Rogério da Veiga
Tive recentemente a oportunidade de conhecer a estrutura e funcionamento das instituições alemãs e, notadamente chamou atenção a forma de funcionamento do seu federalismo, os arranjos institucionais para a conciliação dos interesses e coordenação das políticas.
Importante ressaltar que o federalismo alemão é resultado de processos históricos que datam da unificação alemã em fins do século XIX, duas grandes guerras, guerra fria e reunificação em fins do século XX. Esta ressalva é relevante para se ter em conta a complexidade do processo e evitar conclusões precipitadas relacionadas à aplicação do modelo em outros países sem levar em conta estas especificidades históricas.
A Alemanha é constituída por 16 estados (landen), dentre os quais três são cidades-estado. Na divisão de responsabilidades entre os níveis da federação, os Estados são responsáveis pela execução dos principais serviços públicos, como educação, saúde e segurança social. Diferentemente do Brasil, a participação do governo federal é minoritária, não existindo em quantidade considerável universidades federais ou escolas federais, tampouco a coordenação é responsabilidade exclusiva do nível federal, uma vez que, como veremos adiante, os estados possuem estruturas próprias para a coordenação entre si.
As especificidades do modelo alemão começam na organização de seu parlamento, formado de uma câmara baixa – Bundestag – em moldes similares a nossa Câmara dos Deputados e às câmaras baixas nas democracias ao redor do mundo. O que os diferencia em maior grau é a câmara alta, que seria o equivalente no Brasil ao Senado Federal. No Brasil, são 3 senadores por Estado, eleitos para mandatos de oito anos, em eleições majoritárias em cada Estado, independente do tamanho do Estado. Na teoria, o Senado é a casa em que cada Estado tem a mesma força, de forma a equilibrar a representação desigual na câmara baixa. Na Alemanha, a câmara alta, Bundesrat, é formada por representantes dos governos estaduais, em número distinto por Estado, de forma a dar maior número de votos aos estados maiores, mas em proporção menor que as diferenças de população entre os Estados.
Assim, os representantes do Bundesrat não são eleitos pela população, mas representam o governo do Estado, este sim, eleito pela população. Esta peculiaridade faz com que o sistema busque maior sincronização entre as prioridades do governo estadual e o processo legislativo. Ademais, este processo tende a levar a um maior comprometimento do governo estadual, uma vez que ele participa diretamente do processo de construção das leis. Esse comprometimento é extremamente necessário, uma vez que as execução das principais políticas públicas estão no âmbito estadual e pouco se consegue fazer sem a sua participação, além de ter controle de uma gama de recursos que lhe assegura uma certa autonomia do governo federal e demais estados. Na maneira que está organizado, teoricamente, o senado alemão funciona como uma correia de transmissão entre os interesses do Estado e o legislativo federal.
No funcionamento do dia-a-dia do Bundesrat, outra coisa que gostaria de destacar é que não pode haver divisão dentro dos votos do Estado. Se um Estado A possui 6 votos, ou seja, 6 representantes, os 6 representantes devem chegar a um consenso, pois a posição do Estado deve ser única em cada questão. Neste sentido, seria um único voto do Estado, com peso 6. Em termos de analogia, seria a aplicação dentro do sistema política do ditado que “roupa suja se lava em casa”. As diferenças de idéias e opiniões internas ao governo local, que certamente existem, devem ser discutidas, negociadas e consensuadas localmente, sem levar estas divisões para o nível federal.
Este modelo faz com que o jogo político-partidário seja diferente do jogo político no Brasil. A disputa político-partidária no Estado ocorre na eleição estadual, onde são definidas as linhas mestras da atuação do governo tanto em nível local quanto em nível federal. Este arranjo impossibilita que os governos locais tenham uma linha e a representação no Senado, outra, tal qual ocorre no Brasil. O Estado de São Paulo, por exemplo, é governado há 20 anos pelo PSDB, mas nestes mesmos 20 anos, dois de três senadores deste Estado eram da oposição ao Governo Estadual (Mercadante e Suplicy, e agora, Marta e Suplicy). A Alemanha unificou estes processos, tornando claras as relações existentes entre os diversos poderes, levando a discussão nacional para o nível de cada Estado. Se a câmara alta existe para que os interesses locais estejam representados no parlamento e se as eleições estaduais definem as prioridades dos governos locais, estas prioridades também são objeto das eleições estaduais e o papel do Estado na Federação.
A separação das eleições apartam discussões que muitas vezes deveriam caminhar juntas. Nas eleições estaduais, a discussão sobre as questões nacionais é pequena, porque o que se discute são as questões locais. E fico com dúvida até que ponto isso é mais ou menos democrático, embora tenhamos uma eleição a mais. Isso porque o Estado possui uma estrutura local para “ouvir” as bases, coisa que um Senador separadamente não tem. E responsabilizar os governos locais pelos seus posicionamentos em nível central também pode ter um efeito benéfico. Além disso, colocar as máquinas dos Estados para assessoramento dos trabalhos dos senadores pode elevar a qualidade do debate e tornar mais claros e transparentes os interesses envolvidos.
Eleições separadas para a Câmara, o Senado, os Governos Estaduais e Legislativos Estaduais fazem com que as influências do local sobre o nacional fiquem menos transparentes e o debate não ocorra publicamente. As fragmentações locais e as personalização da disputa, principalmente nas majoritárias, tendem a tornar mais complexo o arranjo federativo. Isso porque não estão claras as relações entre senadores e os governos locais e como se dá a representação dos interesses no parlamento. Como, na regra, cada uma das esferas são autônomas, estes arranjos ocorrem dentro dos partidos, no processo de escolha dos candidatos e nas negociações inter e intra partidárias locais, tornando o processo mais opaco.
Uma outra característica do federalismo alemão são os instrumentos de coordenação mantidos pelos próprios Estados. Nesta mesma oportunidade, pude conversar com uma pessoa que trabalha em uma secretaria de educação para os territórios (o nome exato eu não tenho aqui). Trata-se de uma estrutura mantida pelos governos estaduais e que responde pelas principais ações de articulação de todo sistema. Por exemplo, as estatísticas educacionais da Alemanha são feitas por este órgão, sem vínculo formal ou hierárquico com o governo Federal. Os Estados entram em acordo sobre as informações que serão coletadas por todos, as avaliações que serão feitas e este organismo reúne e sistematiza as informações do sistema educacional alemão. É também neste fórum que definem ações conjuntas que devem empreender na busca da melhoria da educação. No Brasil, seria o equivalente ao Consed – Conselho dos Secretários de Educação – assumir o papel do Inep, por exemplo, na elaboração das estatísticas educacionais, nas avaliações e na sistematização das informações ou assumir o papel da Secretaria de Educação Básica na definição de algumas políticas para a aprendizagem. A existência desta instituição voltada à cooperação entre os Estados, com orçamento próprio e funcionamento como se fosse um órgão integrante do Estado, subordinado a todos os Estados membros, por si só representa uma característica interessante do Estado Federado Alemão e seus arranjos institucionais para levar à cabo as políticas pública.
Alterar a organização de nosso regime federativo não é uma tarefa fácil, tamanha a inércia e mecanismos envolvidos. Trata-se de uma discussão necessária, no entanto, pois está no seio da qualidade da nossa democracia. Que democracia estamos construindo? E pensar isso não é uma tarefa para os pragmáticos, que precisam de um norte para seguir. O pragmático nunca se arriscaria a colocar essa discussão. No entanto, não são os pragmáticos que mudam o mundo. Tampouco a academia vem respondendo a este desafio, embora também não esteja acompanhando muito a discussão sobre federalismo na Academia. Estudar outros modelos pode ser um caminho, embora a análise aqui empreendida esteja longe de ter sido realizada com a profundidade necessária
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