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quinta-feira, 21 de maio de 2020

Como o intervencionismo estatal social democrata está destruindo o mercado de saúde privado brasileiro

Embora seja negligenciado pelo debate público, o intervencionismo no setor de saúde privada tem causado perversos reflexos econômicos e sociais.
Na década de 1990, o mercado privado de saúde vinha se desenvolvendo rapidamente. A crescente demanda, o colapso do serviço público de saúde e a parca regulamentação[1][2] — isto é, a relativa ausência de barreiras de entrada no mercado[3], o que estimulava a livre concorrência — permitiram uma forte expansão do setor.
Contudo, isso mudou com a ascensão do intervencionismo no setor ao final da década de 1990, que se deu por diferentes formas. Após quase duas décadas de crescente regulação estatal, temos atualmente (a) um sistema oligopolizado, (b) uma jurisprudência que, ao relativizar contratos, incentiva a judicialização de ações, (c) uma grande escassez na oferta de planos de saúde individuais, e (d) o cerceamento da livre concorrência, sendo esta a causa última do encarecimento dos planos de saúde.
Por tudo isso, o diagnóstico das consequências do intervencionismo no setor é essencial para a proposição de mudanças nos arranjos institucionais.
O intervencionismo na Lei dos Planos de Saúde
A intervenção do estado na saúde privada passou a se dar de forma mais intensa a partir da promulgação da Lei nº. 9.656/1998, conhecida como Lei dos Planos e Seguros de Saúde. Ela impôs uma nova forma de dirigismo contratual aos Planos de Saúde. Seu art. 10, por exemplo, instituiu o "plano-referência", que estipula os serviços mínimos a serem ofertados compulsoriamente pelas operadoras de planos de saúde.
Já à época, a legislação foi bastante criticada por se arvorar como completa, detalhando até mesmo os procedimentos. Apontava-se que ela faria o setor se tornar obsoleto, pois enrijeceria as relações de consumo, aprisionando o consumidor[4]. O dirigismo estatal começava ali a limitar a liberdade de estipular produtos diferenciados e personalizados para a necessidade de cada consumidor, cerceando a livre concorrência e, com isso, fazendo o setor tender naturalmente à oligopolização.
Evidência disso é que, no ano 2000, havia 3.577 operadoras de plano de saúde atuando no Brasil. Uma década depois, o número caiu para menos da metade: 1.628, sendo que apenas 12% delas concentram mais de 80% dos usuários. E, em março de 2017, o número já era de apenas 1.076 operadoras.
Boa parte desta queda na oferta e aumento da concentração foi causada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), criada em 2000.
O intervencionismo da Agência Reguladora
A despeito das críticas à época, o intervencionismo no plano da saúde privada se intensificou com a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) pela Lei 9.961/2000[5]. Entre suas competências está autorizar o registro e o funcionamento das operadoras de plano de saúde, exercendo ampla normatização e fiscalização sobre suas atividades. A ANS estabelece, inclusive, as condições gerais para o exercício de cargos de direção dessas empresas.
Naturalmente, a soberania do consumidor passou para segundo plano, pois as operadoras passaram a se preocupar apenas em cumprir as normas da agência reguladora para poderem continuar no mercado.
Todos os contratos individuais passaram a ser regulados e hoje têm seus preços reajustados pela ANS. Ignorando uma vasta literatura econômica que explica que controle de preços causa escassez[6], os índices de reajuste autorizados muitas vezes são desatrelados de critérios técnicos[7] e menores que a inflação de serviços médicos. Consequentemente, a maioria das operadoras parou de oferecer a modalidade de contrato individual, concentrando-se nos contratos empresariais, que hoje correspondem a mais de 80% do mercado.
Ademais, atualmente a ANS estabelece um rol obrigatório de 3.216 procedimentos e eventos em saúde para que uma operadora de saúde possa funcionar, o que faz com que os clientes sejam obrigados a arcar — diretamente ou não — com custos de serviços que não tenham sequer interesse em utilizar.
Pior: tal imposição impede planos de saúde de terem modelos de negócios especializados em determinadas áreas médicas.
O intervencionismo nos contratos de plano de saúde no Judiciário
Outra forma de intervencionismo, desta vez indireto, ocorreu por meio da legislação[8] que permite ao Poder Judiciário relativizar contratos, mitigando o dogma da autonomia da vontade, princípio clássico da teoria contratual.
Os planos de saúde, como qualquer organização empresária, visam ao lucro, o qual é imprescindível para a viabilidade econômica da atividade. No entanto, parcela da doutrina jurídica tem considerado a existência de cláusulas restritivas de cobertura como abusivas, entendendo que o Judiciário deve obrigar as seguradoras a incluir procedimentos médicos não-previstos contratualmente. O impacto disso na operação dos planos de saúde é que essa despesa não-prevista afeta a operação econômica de custeamento de toda a cadeia de contratantes.
Por conseguinte, caso não sejam observadas as restrições às coberturas acordadas em contrato, a operação pode se tornar inviável economicamente — ou então os custos serão repassados a todos os outros clientes.
Assim, amparada pela doutrina, sedimentou-se uma jurisprudência tendente a impor serviços médicos além daqueles contratados. A consequência lógica foi a criação de um perverso incentivo: consumidores passaram a ingressar com demandas judiciais para pleitear prestações não cobertas contratualmente.
Como evidência, os custos com processos judiciais nos planos de saúde dobraram entre 2013 e 2015, superando a marca de R$ 1 bilhão.
Tudo isso gera aumento na insegurança jurídica e nos custos de transação, uma vez que os contratos não mais estão sendo corretamente obedecidos. Inevitavelmente, todos estes custos são repassados ao restante da carteira de clientes.
Ao intervir desta forma, o Judiciário afeta todo o ambiente econômico, impactando empresas, agentes e o próprio mercado, criando incertezas e custos desnecessários[9].
Os dados mostram que há uma tendência, entre os magistrados, de deferir pedidos liminares mesmo sem pedido de informações complementares. Ou seja, nestes casos de judicialização dos planos de saúde, o Judiciário decide favoravelmente ao consumidor, mesmo em segunda instância, em 3/4 das ações, com decisões que desconsideram seu reflexo econômico[10].
Por conseguinte, o Poder Judiciário tem amparado suas decisões não na abusividade, mas sim em razões humanitárias, com o intuito de proteger o consumidor supostamente desamparado, formando-se assim uma "jurisprudência sentimental"[11].
Além disso, destoando do entendimento majoritário de que meros descumprimentos contratuais não ensejam danos morais, é comum magistrados ainda condenarem as operadoras a pagarem danos morais a seus clientes por terem negado a cobertura de um evento médico não-contratado inicialmente, estimulando ainda mais essas judicializações.
O intervencionismo é tamanho que, até mesmo quando operadoras dos planos de saúde cumprem as normatizações definidas pela ANS, elas ainda assim são condenadas pelo poder Judiciário. Exemplo disso foi entendimento do STJ de que seria abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado[12], conflitando com uma resolução da agência reguladora[13] que estabelece a regularidade de limitações acima de 30 dias.
Assim, enquanto o ideal é que os contratos ofereçam "garantias de que os direitos poderão ser plenamente exercidos, reduzindo riscos futuros e gerando cooperação entre os contratantes"[14], o intervencionismo estatal logrou produzir incentivos negativos ao ambiente econômico em relação aos contratos de planos de saúde, o que resulta em uma maior ineficiência alocativa dos recursos.
Conclusão
A intenção de todo e qualquer intervencionismo é modificar a ação humana com o intuito de supostamente alcançar resultados melhores do que aqueles que seriam obtidos pelo livre mercado. No entanto, as consequências não-previstas do dirigismo estatal sempre se manifestam. E de forma a piorar o arranjo.
No final, os agentes empreendedores sempre se adaptam a mudanças institucionais, especialmente em meio a um ambiente institucional desfavorável. O melhor exemplo disso foi, como demonstrado, o abandono pelas operadoras de plano de saúde do oferecimento dos planos individuais, uma vez que estes se tornaram pouco viáveis economicamente diante das regulamentações, e a priorização do oferecimento de planos corporativos, que possuem arranjo institucional mais adequado à livre iniciativa.
Adicionalmente, a imposição do serviço referencial mínimo impediu a personalização dos serviços de acordo com a necessidade dos consumidores, aumentando os valores dos planos e assim prejudicando principalmente a camada mais pobre da população, que fica refém do SUS (atualmente, 2/3 dos brasileiros).
Diante da mitigação da autonomia da vontade, houve a consolidação de uma jurisprudência sentimental nos tribunais pátrios, no sentido de que praticamente toda cláusula de exclusão de cobertura é tida como abusiva. Este primado do sentimentalismo ignora os reflexos econômicos a serem suportados pelas operadoras de saúde — as quais, como era inevitável, reduziram a oferta e aumentaram os preços.
Os defensores do intervencionismo buscam por meio dele a satisfação de sua ânsia por 'justiça social'; no entanto, quanto maior o grau de dirigismo, maiores suas consequências não-premeditadas: as quais vão desde um eventual desequilíbrio contratual até o completo solapamento do sistema de saúde suplementar, prejudicando toda a coletividade de usuários do sistema.
Diante de tamanho intervencionismo, é compreensível que o mercado de saúde brasileiro enfrente tão grave crise. Parafraseando Aldous Huxley, os fatos não deixam de gerar consequências somente porque são ignorados pelo debate público.
Luan Sperandio

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