Sociedade Solipsista
Absorta a decidir qual tema discorrer,
veio à mente a ânsia em provocar os leitores, mais uma vez, sobre a importância
dos seres na vida do ser.
Chuck Noland, interpretado por Tom
Hanks, ao encarnar de forma magistral, “O NÁUFRAGO”, destacou um dos mais
fortes instintos de todo ser humano, quando, para afastar iminente loucura,
personificou uma bola, o senhor Wilson.
Jacobina, protagonista do conto “O
espelho”, de Machado de Assis, também nos conclama a refletir sobre esse mesmo
instinto gregário, ao relatar a potencialidade de um colapso nervoso, diante da
solidão. Porém, esse segundo personagem traz algo há mais: Jacobina revela os
dois “eus”, as duas almas, os dois seres que habitam em um mesmo corpo. O “eu”
interior e o “eu” que é construído por quem nos rodeia. O espelho lhe irrompe o
âmago e o faz “renascer”.
Esses dois exemplos mostram que, por
vezes, precisamos parar para refletir sobre o óbvio, sobre o que sempre ouvimos
e já sabemos, mas que parece se apagar no nosso “eu interior”: “ninguém é tão alguém que não precise de ninguém” (autor
desconhecido).
Ora, se todo ser, para se sentir vivo e
se desenvolver como tal, não prescinde de outrem, é basilar que todos se
respeitem mutuamente e reconheçam que o direito que é avocado a si termina onde
termina os dos outros. Sim, o meu direito termina exatamente onde termina os
dos demais indivíduos, porque se os direitos subjetivos tiverem “barreiras
individuais”, o desconhecimento das vidas individuais, interiorizadas nos
“cercados alheios” levará, por ignorância total, aos desrespeitos dos outros.
Outrossim, se o direito de um terminasse
onde começasse o do outro, impossível o estabelecimento de regras
comportamentais gerais e abstratas, exigíveis compulsoriamente, a fim de ser
mantida a unidade do grupo social no qual nos inserimos.
Agora, entendendo-se que os direitos
subjetivos têm as mesmas balizas, o CONvívio
se torna possível porque apreensíveis e compreensíveis são as necessidades de
todos; os “eus interiores” abrem espaços para os “eus exteriores”, porém, sem
que aqueles desapareçam. Se cada “eu interior” for dizimado (e sempre o é e será por decisão e vontade do próprio
indivíduo) em prol do “eu exterior”, com
o tempo, em nome do instinto gregário, outro, de suma importância – a liberdade
–, sucumbirá letalmente, transformando o indivíduo em um ser abiótico.
Assim, as consciências individuais
formatam, em conjunto, quais os “bens da vida”([1])
são prementes para o indivíduo e, por certo, assim decidem para todos os “eus
exteriores” que CONvivem.
Porém, como já dissemos n’outro artigo, como o ser humano é um DEVER-SER, a
história revela que em todo grupo social há “aquele(s)” que diverge(m) e não
aceita(m) as regras comportamentais eleitas pela maioria.
Assim, a depender do grau de comprometimento
da vida do grupo como um todo, regras comportamentais há que são transformadas
em normas jurídicas; equivale dizer: o cumprimento da regra já não é mais
anímico e/ou meramente volitivo senão imperativo. Porém, como não existem
verdades absolutas, a evolução tecnológica trouxe junto a revolução
psicológica, invertendo a primazia dos “eus”: o “interior” passou a suplantar o
“exterior” e as normas não mais têm servido para manter a ordem social.
A instituição “casamento”, por exemplo,
surgiu para preservações de interesses meramente patrimoniais. Não se nega a
força espiritual enigmática que cerca um casamento, mas, para o que nos
interessa nesse colóquio, nos centramos, primeiro, na parte “material” dessa
construção matrimonial porque, até 1977, o casamento era uma instituição legal
INDISSOLÚVEL. Separações, de fato ou de direito, não conduziam às condições de
“ex-cônjuges”, PORÉM, isso não impediu que os “eus interiores” levassem os
indivíduos, separados, a travarem novos relacionamentos, nem que nos mesmos
tivessem outros filhos. Os “eus interiores” sublimaram a emoção de tal porte,
com tamanha força, que alterados foram os “eus exteriores” ao ponto de, em
1977, os matrimônios terem passado a solubilidades.
Como se pode ver, uma norma não é a
vontade do legislador nem a sentença externa a do juiz. A norma externa a
vontade da vida que o grupo social entende como a necessária ao CONvívio.
As normas, portanto, devem refletir os
“eus exteriores” que, espontaneamente, residem, no mesmo corpo, com cada “eu
interior”, porque, somente pela legitimidade, que é conferida por cada um
ao comportamento imperativo imposto, é que se conseguirá manter a unidade do
grupo, a ordem e, consequentemente o desenvolvimento social como um todo.
O Direito Positivo não pode ser
entendido e imposto sem o nexo filosófico que imanta o ser, nexo esse que se
encontra revelado pela história. O homem, outrora, pensava a vida a partir do
objeto e hoje pensa a partir do sujeito.
Não se iluda o leitor porque essa
subjetividade crescente não tem levado os grupos sociais a reviverem o “período
formulário” romano, onde os anciões, pela respeitabilidade que lhes conferiam
os demais do grupo, pré-fixavam as hipóteses conflitivas e respectivas
soluções, a partir do ser. NÃO! O incremento do “eu interior” que vimos
vivenciando nas últimas décadas, exatamente porque privilegiado o próprio EGO,
sequer tem permitido que o “eu exterior” aflore e, com isso, nas últimas quatro
décadas, no mínimo, um sem-número, cada vez maior, de indivíduos, vêm impondo
os seus “significantes”([2]),
ignorando a história e as tradições.
Ora, se as pessoas vivem em grupo e
assim o fazem por lhes ser premente, não se pode ter um CONvívio social pacífico se cada um exigir a sua própria
visão de vida, ignorando as dos outros.
Derivada do grego idea ou eidea, IDÉIA,
originariamente, significa IMAGEM. Ora, considerando-se a análise psicanalítica
de Jacques Lacan, se cada um decidir elaborar o seu próprio significante e, a
partir dele impor a sua própria idéia, dela não abrindo mão para se compor com
as dos demais, essas imposições de milhões de “verdades anímicas” levarão ao
cáos social por completo já que não existem, no planeta, tantas ilhas que
possam abrigar todos os solipsistas que vêm se apresentando.
[1] “BEM DA VIDA”, segundo
Carnelutti, é tudo que for passível de apreensão para a satisfação de uma
carência.
[2] Sob a percepção psicanalítica de
Jacques Lacan, as relações intersubjetivas têm cerne na “estrutura da
subjetividade humana”, a partir do processo inconsciente de aprendizado, pelo
qual toda criança, quando nasce, começa a aprender os significados das coisas
(= signos) a partir dos significantes que lhes dão os terceiros (pai, mãe,
avós, irmãos, etc...) que a rodeiam.
Significado, portanto, é o entendimento sobre o signo a
partir do conteúdo significante que lho dá o indivíduo. Logo, são os
inconscientes individuais quem conferem aos significantes as relevâncias
conceituais e que, por isso mesmo, assim são muito mais relevantes, em termos
de compreensão da realidade, que meras conjugações de fonemas que compõem as
palavras.
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