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terça-feira, 26 de maio de 2020

Temos o direito de dizer tudo?

O risco de conflitos culturais tem ampliado, em várias partes do mundo, os casos em que se considera legítimo punir quem emite certas opiniões. Mas além de restringir uma liberdade, esta prática pode acabar premiando os defensores de teses retrógradas.
Agnes Callamard – (29/04/2007)
Desde de 2000, o exercício e a definição da liberdade de expressão estão em cheque. Provas disso são as polêmicas e violências causadas, em diversos países, após a publicação das caricaturas de Maomé na Dinamarca; a prisão do escritor britânico David Irving na Áustria por “negacionismo” [1]; a controvérsia em torno da lei francesa que proíbe contestar a verdade sobre o genocídio armênio.
A discussão é antiga. A vontade de suprimir as divergências de opiniões e tudo o que é julgado como imoral, herético ou ofensivo sempre atravessou as histórias social, religiosa e política. Ela reapareceu pelo efeito de dois estímulos: a revolução dos meios de comunicação e os acontecimentos de 11 de setembro, que recrudesceram as tensões internacionais.
A liberdade de expressão, da qual o acesso à informação faz parte, é um direito internacional reconhecido (ver nessa edição) e pilar da democracia. Amplia os conhecimentos acessíveis e a participação de cada um na sociedade, e permite lutar contra um Estado arbitrário que se nutre do secreto.
Até onde vai a pressuposta liberdade
A questão pressupõe pontos de vista. Alguns sustentam que a liberdade de expressão não tem limites. Por outro lado, o limite entre o que é e o que não é permitido sempre foi discutido. Esse direito depende do contexto, e sua definição normalmente fica a cargo dos próprios Estados. Segundo o direito internacional, a liberdade de expressão não é absoluta e pode ser submetida a algumas restrições. As finalidades seriam “proteger os direitos ou a reputação de outrem” e salvaguardar “a segurança nacional, ordem, saúde ou moral públicas”. Aplicadas sob a condição de que isso seja “necessário em uma sociedade democrática e expressamente assegurado pela lei” [2]. Essa formulação figura tanto no artigo 19 do Pacto Internacional relativo aos direitos civis e políticos adotada pela ONU, em 1966, quanto na Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais de 1951. É com base nesses textos que são elaboradas as leis sobre difamação, segurança nacional e blasfêmia. A formulação continua suficientemente vaga para que deixe os Estados livres para decidir como deverão limitar a liberdade de expressão dentro dos fins determinados.
O direito internacional impõe apenas um dever “positivo” aos Estados: a proibição da incitação ao ódio e a propaganda em favor da guerra (artigo 20 do pacto de 1966). Nenhuma outra definição precisa é dada nesses termos e, freqüentemente, são os próprios Estados que violam a segunda obrigação. Para a primeira, os procedimentos variam de um país a outro. Nos Estados Unidos, mesmo um discurso que apele à violência e contenha insultos raciais poderá ser autorizado contanto que ele não demonstre ter conseqüências concretas e imediatas. Por outro lado, os franceses ou os alemães optaram por fortes medidas de restrição com base no artigo 20: proibição da incitação ao ódio racial.
Do caso de Salman Rushdie ao das caricaturas dinamarquesas, a blasfêmia suscita novas polêmicas. Em setembro de 2005, a publicação, em um jornal canadense, de desenhos mostrando o profeta Maomé com uma bomba sobre o turbante levantou imediatamente uma onda de protestos e, no começo de fevereiro de 2006, motins e violência explodiram no Oriente Médio. Em resposta, a mídia ocidental e as organizações de proteção dos direitos do homem se apressaram em defender o que consideravam como uma liberdade de expressão ameaçada pelo obscurantismo.
Os governos reagiram de outro modo. Na Europa, muitos se contentaram em pedir para mídia que se comportasse de maneira “responsável”. Outros insistiram no fato de que a liberdade de expressão é um direito essencial. Alguns ressaltaram que a ofensa feita aos religiosos era um motivo legítimo de preocupação e que os crentes deveriam ser protegidos [3]. No mundo islâmico (Iêmen, Jordânia, Malásia), os jornalistas e chefes de redação que haviam reproduzido as caricaturas foram presos e/ou suas publicações proibidas ou suspensas. Outros Estados trabalharam com sucesso para que numa prévia da resolução da Assembéia Geral das Nações Unidas, que estabeleceu o novo Conselho dos Direitos do Homem, figurasse um parágrafo ressaltando que “Os Estados, organizações regionais, organizações não governamentais, organismos religiosos e mídias têm um papel importante a desempenhar na promoção da tolerância, respeito às religiões, convenções, liberdade de religião e de convicção [4]”.
Leis devem restringir o direito de expressão?
A penalização da blasfêmia continua uma realidade na maioria dos países [5], inclusive em algumas democracias, apesar de pouco usual. No Reino-Unido, por exemplo, desde 1923, apenas duas ações judiciais foram perpetradas por esse motivo; a Noruega teve seu último caso em 1936 e a Dinamarca, em 1938. Outros países, dentre eles a Suécia e a Espanha, anularam suas leis sobre o tema. Nos Estados Unidos, onde a liberdade de expressão é bastante ampla, a Corte Suprema anula qualquer lei do tipo, por medo de que os censores bem intencionados sejam também tentados a favorecer uma religião em relação à outra, e por que “isto não é assunto do governo [6]”
Por outro lado, a Corte Européia dos Direitos Humanos (CEDH) considerou que as leis sobre a blasfêmia entrariam no contexto do que os Estados podem legitimamente julgar como “necessário em uma sociedade democrática [7]”. Segundo ela, o Estado estaria mais apto do que um júri inernacional para avaliar a legitimidade de uma restrição à liberdade de expressão destinada a proteger os seus cidadãos daquilo que pode chocá-los. Várias organizações de direitos humanos e liberdade de expressão – Artigo 19 – [8], não concordam com a decisão.
A utilização abusiva das leis sobre a blasfêmia têm conduzido à violação do direito de escolher sua religião e à opressão das minorias. Além disso, nada prova que tais leis permitam proteger a liberdade de religião. Por exemplo, não significa que, por meio dessa liberdade, esta ou aquela religião será mais protegida. Os Estados tem a obrigação de assegurar a liberdade individual de escolha de sua religião [9]. A própria CEDH julga que a adoção de leis que protejam os crentes contra os insultos ou propósitos ofensivos não é necessária para esse fim. A jurisprudência internacional estende a liberdade de expressão não só às “informações” ou “idéias” favoravelmente recebidas mas também àquelas que chocam, contrariam ou distorcem.
Conseqüentemente, na ausência da incitação explícita ao ódio, a censura aos jornais que publicaram as caricaturas dinamarquesas não era legítima. O caráter ofensivo de uma proposta ou a blasfêmia não bastaram para restringir a liberdade de expressão.
Até onde o negacionismo deve ser julgado
Na mesma época das caricaturas dinamarquesas, o escritor britânico David Irving foi detido e preso na Áustria por “negacionismo”. Isso confundiu e tensionou ainda mais a polêmica sobre o discurso criminal e as proteções. Desde o começo dos anos 90, leis que sancionavam a negação do genocídio de judeus proliferaram pela Europa. No começo de 2007, a Alemanha chegou a propor que toda a UE as adotasse. Em novembro de 2006, o Parlamento francês incorporou uma lei que qualificava a contestação da existência do genocídio armênio de 1915 como delito. É sancionada em cinco anos de prisão e com fiança de 45 mil euros.
Tais medidas não parecem ter a luta contra possíveis ações de genocídio como finalidade. Tratam-se mais de declarações de princípio, de caráter político. Nesse caso, são inúteis, pois a legislação existente que proíbe a incitação ao ódio já bastaria.
Proibir a negação deste ou daquele acontecimento histórico levanta muitas questões e pode ter conseqüências lastimáveis.
Em primeiro lugar, este tipo de lei vai além do que preconiza a regulamentação internacional: institui um acontecimento histórico como dogma e proíbe algumas declarações, sem considerar seu contexto ou impacto. O que é particularmente verdadeiro na lei francesa sobre o genocídio armênio é que ela pode impedir pesquisas ou publicações potencialmente controversas.
Em segundo lugar, as perseguissões que ela pode desencadear valorizam os “historiadores revisionistas” fonecendo-lhes as tribunas e os elevando a opositores da ordem estabelecida. Há um enfraquecimento da autoridade moral do Estado democrático. Assim, a prisão e condenação do britânico David Irving na Áustria o beneficiou de uma notoriedade internacional que ele jamais teria – tornou-o um mártir aos olhos de seus simpatizantes.
Em terceiro lugar, estas leis podem ser utilizadas com fins políticos. Em Ruanda, acusações de negacionismo (sobre o genocídio de 1994) são freqüentemente lançadas contra pessoas ou a mídia independente – julgados hostís ao governo.
O tênue limite entre fato e opinião
Por último, é extremamente difícil definir precisamente o que significa a negação de um fato. A maioria das leis relativas ao genocídio de judeus vai além dos acontecimentos-chaves reconhecidos pelos grandes tribunais, como a existência das câmeras de gás. Por exemplo: a CEDH julgou como ingerência do excercício daqueles que requeriam seu direito à liberdade de expressão o caso da condenação de François Lehideux e Jacques Isorni no Supremo Tribunal de Paris, em 26 de janeiro de 1990. Esses eram acusados por “apologia a crimes de guerra ou delitos de colaboração”, devido a um encarte publicitário que apresentava como salutares algumas ações do Marechal Philippe Pétain (veiculado, em julho de 1983, no jornal Le Monde) [10].
Em outubro de 2006, no dia em que a Assembéia Nacional Francesa votou a lei sobre o genocídio armênio, a Academia Sueca concedia o prêmio Nobel de literatura ao escritor turco Orhan Pamuk. O Comitê recompensou sua obra literária e honrou um fervoroso defensor da liberdade de expressão. Alguns meses antes, Orhan Pamuk teria sido perseguido por insultar a “identidade turca”. Ele havia escrito sobre o genocídio armênio de 1915, o maior tabu do direito turco e da cultura política do país.
No mesmo outubro de 2006, dois pontos de vista foram confrontados: um celebrou a liberdade de expressão e abriu caminho a um debate público sobre o passado e a uma possível reconciliação. O outro nos confinou em interpretações dogmáticas e nos afastou do apaziguamento ou da comprensão mútua.
Em janeiro de 2007, o jornalista turco de origem armênia Hrandt Dink foi assassinado diante de seu escritório em Istambul por um suposto nacionalista. Dink teria sido acusado de “insulto à identidade turca”. No entanto, no mês que precedeu sua morte, havia criticado vivamente a lei francesa sobre a negação do genocídio armênio. “Nós não devemos aceitar ser peões no jogo internacional dos dois Estados. Eu estou sendo perseguido na Turquia porque disse que houve um genocídio, o que é minha própria convicção. Mas eu irei à França para denunciar essa loucura e violarei a lei francesa, se julgar necessário, e a infrigirei por passar adiante da sua justiça [11].
Liberdade de expressão … amordaçada pelos interesses hegemônicos
Desde 11 de setembro de 2001, vários países reforçaram suas leis anti-terroristas: Austrália, Marrocos, Argélia, Tunísia, Tailândia, Malásia, Filipinas, Reino-Unido, Estados Unidos, Turquia, Rússia, Jordânia, Egito etc. Alguns adotaram uma definição bastante ampla de “terrorismo”. O Comitê de Direitos Humanos da ONU criticou os Estados Unidos por ter incluso nas leis os comportamentos de dissidência política que, mesmo ilegais, não podem em nenhum caso ser considerados como condutas “terroristas”.
As “novas” legislações também contém, em alguns países – Reino-Unido, Dinamarca, Espanha, França -, um outro assunto digno de atenção: a condenação da apologia ou incitação ao terrorismo. Em janeiro de 2007, 34 países assinaram uma convenção do Conselho Europeu que segue o mesmo raciocínio.
A definição dos delitos é tão vasta e frágil que as liberdades de associação, expressão e imprensa podem ser atingidas. Mesmo a incitação, que poderia levar a atividades extremistas ou à possibilidade de violência, é condenada [12]. Entretanto, é essencial que toda a restrição aos direitos fundamentais efetuadas em nome da segurança nacional seja estreitamente ligada à prevenção da violência iminente. Esse é o sentido dos princípios de Joanesburgo sobre a segurança nacional adotado pelo colóquio mundial dos juízes de 18 a 20 de agosto de 2002 [13].
A experiência mostra que limitar a liberdade de expressão raramente protege contra abusos, extremismo e racismo. Na verdade, as restrições são geral e eficazmente utilizadas para amordaçar oposições, vozes dissidentes e minorias. Reforça a ideologia e o discurso político, social e moral dominantes.
A liberdade de expressão deve ser um dos direitos mais consagrados, particularmente frente às pretensões hegemônicas de Estados alimentados pelo medo e pela ameaça de violência. Ela não está aí para proteger a voz dos poderosos, dos dominantes ou o consenso. E, sim para proteger e defender a diversidade – de interpretações, opinoões e pesquisas.
FONTE: Arquivo Le Monde Diplomatique

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